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A lógica do terrorismo

Olavo de Carvalho

Época, 6 de outubro de 2001

Ela não é difícil de captar, se você tem acesso às premissas

Em todo plano terrorista que se preze há uma continuidade entre a preparação da atmosfera, o ataque propriamente dito e o aproveitamento das repercussões. O jargão comunista designa os atentados como “propaganda armada”. A razão é óbvia: visam menos a um resultado militar específico que à ostentação espetacular do temível. Para isso devem articular-se com a propaganda desarmada, que antecipa, orienta e multiplica seus efeitos.

A maior descarga de propaganda armada de todos os tempos foi atirada sobre o WTC e o Pentágono poucos dias depois de estrear, do outro lado do planeta, o show de propaganda desarmada montado pela ONU na Conferência de Durban para desmoralizar Israel e os Estados Unidos. Caídas as torres, seguiu-se o aproveitamento das repercussões: uma campanha mundial, abrilhantada por Fidel Castro, para lançar sobre a vítima a responsabilidade dos atentados e, pela primeira vez na história humana, negar a um país atacado o direito de reagir, pressionando-o a transferir para a ONU a autoridade de decidir seu destino nacional.

A identidade ideológica dos diretores de cena nos dois espetáculos, o que antecedeu e o que se seguiu ao ataque, é rigorosamente a mesma: a internacional esquerdista, entrincheirada na ONU e fortalecida pela exclusão da presença americana na Comissão de Direitos Humanos. A premissa maior e a conclusão do silogismo são, portanto, bem nítidas. Desencavar daí a premissa menor implícita é tarefa simples, mas que se torna difícil quando tantas vozes, explorando a ambigüidade congênita do terrorismo islâmico, se empenham em realçar-lhe a identidade religiosa para encobrir-lhe a identidade política. Pela religião, a quadrilha de Bin Laden integra-se num dos últimos baluartes do conservadorismo religioso no mundo. Politicamente, alinha-se com a internacional esquerdista. Se a face política do terror evidencia a unidade de propaganda armada e desarmada, completando o silogismo, a face religiosa as diferencia e separa, camuflando a premissa menor. Daí que tanta gente na mídia procure associar Bin Laden antes ao Islã, que só tem a perder com suas ações terroristas, que à esquerda mundial, que tem tudo a ganhar com elas.

Quando Bin Laden diz que há uma trama para desencadear a guerra entre o Ocidente e o Islã em proveito de Israel, ele deixa entrever a verdade no fundo da mentira. A trama existe, mas, dessa guerra, Israel não poderia esperar senão sua própria destruição. Outro tanto cabe dizer dos EUA e do próprio Islã. Só quem pode esperar algo melhor é a internacional esquerdista. Aliás, nem precisa esperar. Batendo com mão islâmica e fazendo-se de amiga da vítima para usurpar seu direito de reagir, ela já está ganhando, e aliás quintuplamente: esquiva-se de arcar com a culpa da propaganda desarmada, joga um contra o outro os conservadorismos religiosos judaico-cristão e muçulmano, ganha munição para novas campanhas de imprensa, vence mais um round em sua luta de cinco décadas para dar à ONU o estatuto de governo mundial e ainda lança os débitos de sua monstruosa ambição global na conta dos EUA – tudo isso sem precisar mostrar-se no palco, exceto no papel de guardiã da paz. Jamais a pergunta Quia bono? (Quem ganha com o crime?) teve resposta tão eloqüente. Alguns dados suplementares talvez tornem tudo ainda mais claro. Por que fazer uma Conferência contra o Racismo num país em plena “faxina étnica” contra a minoria branca, se justamente esse item estava excluído do programa de debates? Parece absurdo, não? Mas na aparente loucura há um método. A África do Sul, governada por um partido comunista, tem estreitas ligações com o Taleban e com Cuba, quartéis-generais do terrorismo mundial. E, segundo Anthony LoBaido – um dos mais tarimbados correspondentes estrangeiros no país –, a elite de Durban está infestada de radicais muçulmanos simpáticos a Bin Laden, entre os quais o chefe de polícia e o delegado local da Interpol. A efusão de propaganda desarmada não poderia brotar de um terreno mais fértil.

‘Os pedar da bicicreta’

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 2 de agosto de 2001

Uma famosa dama do show business, no meio de ruidosa festa na boate carioca People’s, tentava se comunicar, aos berros, pelo telefone: “Fulaninho? Eu estou aqui no Pipo. Pipo! Píiiiiiiipo! Pê-i-pê-ó, seu burro! Pipo!”

Outro dia, num programa de perguntas e respostas, um famoso cantor, solicitado a desencavar do seu vasto repertório léxico o nome de algo que se encontrasse em academias de musculação e começasse com “e”, respondeu resolutamente: “Estrutor.”

Em idênticas circunstâncias, outra estrela, convidada a emitir com seus lábios de mel um vocábulo com inicial “i”, não hesitou um segundo: “Iscola.”

A vida imita a arte. “Os pedar da bicicreta” saíram da piada para entrar na História.

É falso alegar que esses personagens são almas simplórias, gente do povo.

São formadores de opinião, ganham rios de dinheiro e, entre banqueiros e senadores, é chique recebê-los em casa. A meninada os tem como ídolos, e um sorriso dos desgraçados, num anúncio de pasta de dentes, é considerado argumento infalível para a persuasão dos consumidores. Em programas de auditório, são consultados sobre política, sobre religião, sobre moral sexual, e ouvidos com a atenção reverencial que outrora se concedia aos sacerdotes e homens de ciência. Enfim, são modelos de conduta inclusive lingüística.

A progressiva admissão desses tipos nas altas rodas reflete algo mais que a força dissolvente da mídia. Reflete a vontade de esculacho, o crescente apetite de autodestruição de uma elite dominante que não parece ter outro empenho na vida senão penitenciar-se da ascensão de sua fortuna material mediante sacrifícios rituais da sua dignidade moral no altar do que existe de mais baixo e desprezível na sociedade.

Muitos, nesse meio, vão além do abjeto puxa-saquismo de cantores analfabetos e dançarinas de cabaré. Prosternam-se, respeitosamente, ante ladrões e traficantes, como quem confessasse haver mais honra e probidade no crime do que no enriquecimento normal e lícito de uma indústria, de um banco, de um escritório de investimentos.

Na verdade, a coisa veio num “crescendo” de auto-esculhambação masoquista desde os anos 50. O primeiro sinal de debilidade moral foi a abertura geral dos salões elegantes para a intelectualidade comunista que ia ali fartar-se do bom e do melhor, arrancar dinheiro do capitalista idiota e sair agourando a morte próxima do execrando anfitrião. O burguês, roubado e humilhado, se babava de gozo como um personagem de Nelson Rodrigues: “Me cospe na cara! Me cospe!.”

Tão vasto prestígio angariou nesses meios o intelectual comunista que, depois de um tempo, já não era preciso ser intelectual. Bastava ser comunista. A intelectualidade vinha por transferência de direitos.

Já na geração que se seguiu, a própria condição de comunista foi dispensada.

Bastava o sujeito ser um brega, um grosso, um símbolo qualquer do povão encardido, e já se tornava uma personificação bastante da vingança redentora, sem cuja presença ritual a burguesia se sentiria culpada. Foi nessa fase que a turma dos “pedar da bicicreta” começou a ser admitida.

Nos anos 70, a exibição de breguice revelou-se insuficiente para aplacar a sanha masoquista da elite. Para ser admitido nas altas rodas, o postulante precisava ostentar, além das marcas visíveis da esculhambação física, provas cabais de esculhambação mental. Foi a época da antipsiquiatria. Sem um certo grau de esquizofrenia comprovada, ninguém podia ter acesso ao “grand monde”.

No capítulo seguinte, a loucura mesma já não satisfazia. Era preciso a ilegalidade, a contravenção. Cafetinas e prostitutas eram ouvidas com devoção em programas de tevê, ao lado de padres e acadêmicos, como expressões respeitáveis da opinião nacional. Garotas de programa deixaram de ser amantes furtivas: passaram da clandestinidade ao estrelato, sendo exibidas como provas de “status”.

No fim já não bastava a contravenção. Era preciso a delinqüência grossa, o crime. Uma senhora da alta sociedade que não tivesse um namorado traficante ou seqüestrador sentia-se a mais miserável dos mortais.

Sem dificuldade pode-se conceber o próximo episódio: a classe rica já não se contentará em ser aviltada, enganada, roubada. Exigirá o próprio assassinato. Em vez de gemer apenas “me cospe!”, o burguês armará a mão do visitante e, entre espasmos de prazer, implorará: “Me mata!”

 

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