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Os amigos da onça

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 01 de outubro de 2007

Meus alunos mais velhos são testemunhas de que há quase vinte anos eu já anunciava: “Querem saber o que é entreguismo? Esperem o PT chegar ao poder.” A previsão, que se referia especificamente à internacionalização da Amazônia, não era mero palpite, nem efusão de retórica antipetista. Baseava-se em extensa pesquisa dos laços entre os movimentos de esquerda e os grupos globalistas bilionários que depois vim a denominar “metacapitalistas”.

Como todas as demais previsões políticas que fiz desde então, essa também veio a se confirmar. No último dia 21, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, anunciou o projeto governamental de entregar à gestão privada amplos trechos da floresta amazônica, equivalentes, segundo o repórter Josias de Souza, da Folha de S. Paulo, a noventa mil estádios de futebol.

A iniciativa confirma também o alerta distribuído em 14 de junho pelo CEBRES, Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos, que congrega vários membros do grupo militar dito “nacionalista”, entre os quais o general Durval de Andrade Nery, com o qual tive um arranca-rabo tempos atrás quando ele, decerto por não entender uma só palavra do que digo, me incluiu entre os globalistas que abomino e combato.

Jamais duvidei do patriotismo desses militares, mas, com relação à lucidez e objetividade das suas análises, tenho algo mais que mera dúvida. Tenho a certeza de que estão tragicamente enganados quanto à natureza e localização do inimigo. Simplesmente não é possível compreender o jogo do poder no mundo atual sem um conhecimento extensivo do debate político interno nos EUA, e esse conhecimento é praticamente inacessível a quem se limite aos meios de informação usuais no Brasil.

Já expliquei isso mil vezes, mas parece que estou falando com jumentos de pedra. A opinião pública americana divide-se em partes mais ou menos iguais entre os “progressistas” (liberals) e os conservadores (conservative). Esse equilíbrio reflete uma repartição equitativa do acesso aos meios de comunicação, os primeiros dominando os grandes jornais e a TV, os segundos os programas de rádio, especialmente os talk-shows de enorme audiência. Acontece que, dessas duas fontes, só a primeira atinge o público internacional. A segunda é de alcance estritamente local. Resultados:

1) Do Brasil à Zâmbia, tudo o que se sabe dos EUA vem pela mídia de esquerda, principalmente na sua versão light que por isso mesmo passa como expressão do pensamento americano dominante ou exclusivo.

2) Por toda parte, mas principalmente na América Latina, a reação contra os avanços globalistas ou neo-imperialistas assume por isso mesmo a forma do anti-americanismo, induzindo os nacionalistas a aliar-se com a esquerda local, cujos laços com o metacapitalismo global ignoram ou não compreendem.

3) Monitorados e manipulados de longe pela aliança da esquerda americana com os grupos bilionários, esses esforços patrióticos acabam trabalhando contra si próprios e naufragando na mais deplorável impotência. O manifesto do CEBRES é um exemplo de revolta patriótica mal dirigida, que só pode levar ao fortalecimento dos seus inimigos. Quando tento adverti-los disso, os membros do grupo “nacionalista” reagem com desconfiança paranóica, enxergando em mim um perigo que deveriam procurar antes em alguns de seus “companheiros de viagem” ou mesmo em alguns integrantes do próprio grupo (os mais empenhados em transfigurar em puro anti-americanismo o impulso patriótico dos restantes).

Quase dez anos atrás assisti no CEBRES à conferência de um teórico esquerdista, muito simpático e eloqüente, que pregava a aliança entre a esquerda e os militares contra o “neoliberalismo”. A platéia, — não muito grande, na verdade – aderiu entusiasticamente ao plano, em parte impressionada com a política antimilitar do governo Fernando Henrique, que ela tomava ilusoriamente como direitista e americanófilo, sem saber que a origem remota e o sentido último do tucanismo emergiam da mesma aliança entre os “progressistas” americanos e seus financiadores globalistas, que dava respaldo aos partidos de esquerda no Brasil. A confusão mental que se armara no modesto auditório do CEBRES era tão densa, que abdiquei de tentar desfazê-la, limitando-me a abanar a cabeça prevendo uma desgraça inevitável.

O manifesto de 14 de junho, descrevendo acuradamente a penetração internacionalista na Amazônia e clamando por uma justa reação contra ela, persiste no erro, entretanto, ao ver esse fenômeno como expressão do desejo de poder nacional das “grandes potências”, principalmente os EUA e a Inglaterra, ignorando que a iniciativa parte dos mesmos grupos globalistas que tudo têm feito para diluir a identidade nacional desses dois países, destruir sua soberania e subjugá-los a uma nova estrutura de poder mundial. A falha colossal do diagnóstico do CEBRES provém da sua obediência residual aos esquemas teóricos criados décadas atrás pelos analistas estratégicos da ESG, esquemas esses que, refletindo talvez longinquamente a influência da doutrina Morgenthau, encaravam os Estados nacionais como os agentes principais do processo histórico e assim lançavam uma involuntária cortina de fumaça sobre o novo esquema transnacional de poder que então já era discretamente – e hoje é quase ostensivamente – o verdadeiro protagonista da cena mundial. A luta dos patriotas americanos contra esse esquema é a maior ou única esperança de preservação das soberanias nacionais num futuro não muito distante. Ao voltar-se contra os EUA, em bloco e sem distinções, as reações nacionalistas nos países do Terceiro Mundo, especialmente o Brasil, só fazem dar um reforço gratuito à trama globalista-esquerdista que hoje busca dissolver os EUA num monstrengo chamado “Comunidade Norte Americana” (EUA, México e Canadá) e transferir a organismos internacionais o controle das águas territoriais estadunidenses, exatamente com o mesmo empenho com que tenta – e agora parece que vai conseguir – dominar a Amazônia.

Tanto por seu amor ao comunismo quanto por sua submissão aos interesses globalistas ou pelo seu obsessivo e mal disfarçado ódio antimilitar, o governo do PT vem aprofundando a incompatibilidade, já de si radical e insanável, entre a esquerda e as Forças Armadas –incompatibilidade que agentes de influência como o conferencista acima mencionado ou o ativíssimo grupo do sr. Quartim de Moraes tentam camuflar sob um manto de desconversas sedutoras e promessas lisonjeiras, buscando canalizar em benefício da estratégia globalista-esquerdista internacional a justa insatisfação dos homens de farda. O futuro do Brasil, ou mesmo do continente latino-americano inteiro, depende de que a presente geração de oficiais militares saiba desmascarar seus falsos amigos e recusar-se a servir de instrumento a uma das tramas mais perversas e astutas que a intelligentzia esquerdista já concebeu neste país.

Uma corda para Lênin

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 22 de março de 2007

Quando Georg Lukács proclamou que o inimigo prioritário a ser destruído pelos comunistas não era “o capitalismo”, mas “a civilização judaico-cristã” — sendo logo seguido nisso pelos frankfurtianos, por Antonio Gramsci e enfim por todo o movimento esquerdista mundial –, ele enviou aos adeptos do capitalismo uma mensagem que eles não parecem ter recebido até hoje: esvaziado dos valores civilizacionais judaico-cristãos, o livre mercado é o terreno ideal para o florescimento da revolução cultural marxista.

A experiência não cessou de lhe dar razão: quanto mais as sociedades capitalistas abandonam os princípíos que aprenderam com o judaísmo e o cristianismo, mais poder e autoridade ganham os movimentos de esquerda. Isso acontece por igual na Europa Ocidental, nos EUA e nos países periféricos em transe de “modernização capitalista”. Se a queda da URSS não diminuiu em nada a força do esquerdismo ocidental, é porque este tirava e tira sua energia das próprias condições locais, e não da ajuda soviética. Essas condições podem ser descritas sumariamente assim: expansão capitalista e destruição concomitante das bases morais e culturais do capitalismo. Entre os dois fatores, a ampliação dos meios de participação democrática é financiada pelo primeiro para acabar servindo cada vez mais ao segundo.

O liberalismo, erigindo o livre mercado no princípio máximo da vida social em substituição aos antigos valores civilizacionais que o possibilitaram, é o instrumento ideológico principal dessa transmutação masoquista do capitalismo em imimigo de si mesmo. No mínimo, a democratização liberal-capitalista em curso é o fato consumado, é a situação vigente, e por isso mesmo não pode ser um ideal de futuro. O liberalismo torna-se assim o advogado do status quo que o estrangula culturalmente, deixando aos esquerdistas o reino dos ideais e valores. Quando se apossa dos slogans “progressistas” da esquerda para tentar provar que se realizam melhor no capitalismo, tudo o que consegue com essa simulação de esperteza é subsidiar com o dinheiro capitalista o aumento do prestígio da esquerda, reduzindo o capitalismo a um meio e entregando à utopia socialista o monopólio do fins, o cetro da autoridade moral. Daí o paradoxo: quanto mais notório o sucesso econômico do capitalismo, mais espetacular a ascensão cultural e política do socialismo.

Lênin dizia: “O capitalismo nos fornecerá a corda com que o enforcaremos.” O liberalismo é essa corda.

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Milhares de pessoas deixaram de ser homossexuais por meio de tratamento ou devoção religiosa. Época jamais entrevistou uma delas. Mas bastou um pastor que trabalhava na área contar que era gay enrustido, e a revista fez o maior barulho em torno do charlatão confesso, dando a entender que todos os envolvidos em evangelização de homossexuais são como ele. Isso não é jornalismo. É propaganda. As duas maiores revistas semanais brasileiras, Veja e Época, são amostras patentes de como a defesa da economia de mercado pode coexistir com a adesão cega e subserviente às metas da revolução cultural  esquerdista.

O guia genial dos povos

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 5 de maio de 2002

Aristóteles dizia que todo governo deve amoldar-se aos valores dominantes, ao ethos da população. Fracassada a tentativa de mudar o ethos pela ação do governo, que marcou história da primeira metade do século XX, a segunda metade, em vez de abandonar o projeto insano da “construção do homem socialista”, se empenhou em resgatá-lo mediante a simples inversão da fórmula. Lendo Lukács, Horkheimer, Adorno, Marcuse e sobretudo Antonio Gramsci, a esquerda internacional foi induzida a apostar na hipótese de mudar primeiro o ethos para que depois o novo ethos mude o governo: construir o homem socialista para que este construa o socialismo. Essa idéia pode ser denominada genericamente com a expressão gramsciana de “revolução cultural”.

Mas o fato é que, antes que qualquer desses pensadores sequer chegasse a enunciar o projeto, o próprio Stálin, com a ajuda de Karl Radek, já o havia detalhado e posto em prática, com a ressalva de que o utilizou para orientar somente a ação organizada da esquerda internacional, enquanto no plano interno continuava a usar o velho esquema do ethos estatal. Basta estudar as diretrizes que ele formulou na década de 30 para o Partido Comunista Americano — esquecer os proletários, concentrar-se na arregimentação de “companheiros de viagem” entre as celebridades e os formadores de opinião — para perceber que o “Velho” já servia o bolo quando Gramsci ainda perguntava o preço da farinha.

Sob esse aspecto, os autores que com suas idéias nominalmente heterodoxas deram novo alento a uma militância desiludida com o que então lhe parecia ser a pobreza intelectual do stalinismo, não foram senão stalinistas que se ignoravam a si mesmos. Stálin, antecipando-se de décadas a gerações inteiras de intelectuais pretensamente iluminados, realizou literalmente a promessa contida no título recebido de seu círculo de bajuladores mais próximos: ele foi realmente o “guia genial dos povos”. Nunca houve nem haverá um esquerdista mais inteligente que Stalin, e o motivo disto é simples: a verdadeira natureza do socialismo só se revela a quem a encare com frio realismo, despindo-se da ilusões humanistas e progressistas que ele mesmo dissemina “ad usum delphini”.

Toda a história política, social, psicológica, religiosa e intelectual desse período que se prolonga até hoje é apenas o conjunto das manifestações exteriorizadas da “revolução cultural” marxista, um movimento unitário e organizado de envergadura tão gigantesca que, aos olhos do observador leigo, se torna inabarcável e invisível ao ponto de seus efeitos acabarem sendo explicados como produtos da mera coincidência.

Em parte, essa impressão reflete apenas o fato de que movimentos desse tipo não se disseminam pela arregimentação formal de militantes organizados, mas por impregnação passiva da imaginação de milhares de idiotas úteis em resposta à iniciativa discreta de um número muito pequeno de agentes. Desde suas primeiras experiências de cooptação de intelectuais, Willi Münzenberg, o executivo principal do plano Stalin-Radek, ficou impressionado com a facilidade com que suas palavras-de-ordem se disseminavam entre os intelectuais — uma docilidade espontânea e inconsciente que jamais a propaganda comunista havia encontrado entre os proletários. Entre os letrados a ação comunista era tão fértil que Münzenberg a chamava “criação de coelhos”. Pode parecer estranho que logo as camadas “mais esclarecidas” sejam assim fáceis de manipular, mas o fenômeno tem uma explicação bem simples. Se as pessoas menos cultas resistem à manipulação porque são desconfiadas da novidade e apegadas a costumes tradicionais, os intelectuais capazes de iniciativa pessoal originária, de resposta direta e criativa aos dados da experiência real são muito raros: à maioria, que já não conta com a tradição para guiá-la nem tem forças para uma reação personalizada, só resta seguir a moda do dia. Nove décimos da atividade mental das classes letradas são imitação, macaquice, eco passivo de palavras-de-ordem que ninguém sabe de onde vieram nem para onde levam.

Essa proporção tende a aumentar na medida mesma da ampliação das oportunidades de acesso às profissões intelectuais, cada vez mais abertas a multidões de incompetentes — o “proletariado intelectual” como o chamava Otto Maria Carpeaux — cujo único teste para a admissão no grêmio é, justamente, a facilidade de impregnação dos cacoetes mentais mais típicos desse grupo social. Daí a proliferação de tantas modas intelectuais, artísticas e políticas cuja absurdidade grotesca é claramente percebida pelo homem das ruas, mas que aos de dentro do círculo parecem a encarnação mais pura do elevado e do sublime.

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