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O deserto dos gringos

Olavo de Carvalho

Digesto Econômico, julho/agosto de 2009

Se para cada página que se escreveu alertando contra a internacionalização da Amazônia fosse retirada daquele território uma área de vinte metros quadrados, a Amazônia já seria internacional faz muito tempo. O terror da cobiça estrangeira incorporou-se ao imaginário nacional pelo menos desde a presidência Arthur Bernardes (1922-1926), alimentado menos pela iminência de perigos reais do que pela má-consciência de possuirmos um território bem maior que a nossa capacidade de defendê-lo, só preservado como unidade, precisamente, pelo desinteresse blasé dos presumidos invasores que, como os tártaros de Italo Calvino, não se fazem notar senão por sua longa, humilhante, insuportável demora em atacar-nos.

A tagarelice que ainda hoje e com intensidade crescente fomenta o perpétuo e jamais recompensado estado de alarma contrasta, da maneira mais patética, com a incapacidade nacional de fazer face às duas únicas ações efetivas empreendidas até agora para violar a nossa soberania naquele pedaço do planeta: a transferência de imensas faixas de terra para “nações indígenas” biônicas e a intensa presença das Farc na região amazônica. Tanto se gritou contra ameaças imaginárias, que nada se pôde fazer contra as agressões efetivas, principalmente porque não vieram da direção tradicionalmente esperada – o tão execrado e temido “imperialismo ianque” –, mas do flanco simetricamente oposto: a esquerda internacional. Que esta era de fato a única fonte possível de arranhões e fraturas na nossa integridade territorial, eis uma obviedade que eu já vinha advertindo faz mais de uma década, sem merecer atenção, é claro, de ouvidos programados para ouvir tão-somente o contrário.

O caso Raposa Serra do Sol ilustra, da maneira mais deprimente, a facilidade com que os organismos internacionais, diretamente ou através da imensurável rede de partidos de esquerda, ONGs militantes e órgãos de mídia cúmplices, nos impõem as mudanças que bem entendam, sem suscitar senão reações débeis e impotentes. Com a mesma desenvoltura arrogante com que nos proíbem de fumar, de ler notícias tidas como indesejáveis, de ter armas para defesa da nossa vida e propriedade, de usar certas palavras em público ou de julgar as coisas segundo a nossa própria religião, elas removem milhares de brasileiros de suas terras para entregá-las a ongueiros travestidos de índios, e todo o clamor nacional contra isso, ao esbarrar na vontade implacável de nossos mandantes estrangeiros, vai definhando, definhando, até esvair-se num lamento inaudível.

Quanto às Farc, senhoras absolutas do narcotráfico na América Latina inteira graças ao Plano Colômbia do Sr. Bill Clinton, que as deixou intactas enquanto removia do caminho os seus concorrentes, suas atividades no Brasil, sob o patrocínio político e moral do Foro de São Paulo, estendem-se deste a floresta amazônica, onde entram e saem como se fosse sua própria casa, trazendo drogas, comprando armas, matando uns brasileiros, recrutando outros, até as escolas onde vendem cocaína impunemente às nossas crianças; desde os altos escalões da República onde seus parceiros brilham nos ministérios e no comando do PT, até as ruas das grandes capitais onde seus agentes terceirizados do Comando Vermelho e do PCC mantêm a população sob o regime do terror, contribuindo com uma quota significativa para o nosso recorde mundial de 50 mil homicídios por ano.

É chocante comparar a passividade nacional ante esses duas desgraças efetivas e presentes com o reiterado empenho alarmista voltado contra a fantasiosa e a rigor impossível “invasão ianque”, empenho movido, sobretudo, pelos próprios membros, amigos, simpatizantes e idiotas úteis do Foro de São Paulo. Que os invasores reais mantenham a nação hipnotizada e sonsa, desviando suas atenções para o temor de invasões hipotéticas, é mais que compreensível: a mentira e a camuflagem são da essência mesma da estratégia. Mas que elites políticas, intelectuais, econômicas e militares sem nenhum interesse direto nesse engodo se deixem iludir por ele, é sinal de um estado de alienação que o mero comodismo não explica.

Este fenômeno não pode ser compreendido sem um breve exame das peculiaridades do nacionalismo brasileiro.

Por toda parte, a idéia nacionalista, desde que existe, está associada ao sentido histórico, ao culto de valores e símbolos consolidados por uma longa experiência comum e transmitidos de geração em geração. No Brasil não há nada disso. O desprezo pelo passado, o total desconhecimento das conquistas históricas e das grandes criações culturais que poderiam dar fundamento a um nacionalismo genuíno já se tornou um dado constante da mentalidade pública ao ponto de que a simples menção a esse patrimônio é recebida, nas escolas ou em qualquer conversa doméstica, com estranheza e chacotas. O elemento mais essencial de uma cultura nacionalista – o amor à língua – falta por completo nos nossos hábitos e afeições. Entre os intelectuais, o desprezo aos fundadores do país e aos heróis que consolidaram a nacionalidade é quase um dever moral, exceto quando o personagem, acidentalmente, pode ser aproveitado como símbolo do ressentimento esquerdista, como é o caso do marinheiro João Cândido ou da figura vaga e nebulosa de Zumbi dos Palmares.

No tempo dos militares, o primeiro e único filme brasileiro que glorificava em grande estilo os heróis da Independência foi recebido pela elite intelectual com nada menos que nojo, ao passo que o livro de Júlio José Chiavenato, “Genocídio Americano”, que acusava o país de uma infinidade de crimes hediondos imaginários, recebia aplausos e louvores.

Nada ilustra melhor o caráter paradoxal e autodestrutivo do nosso nacionalismo do que o Movimento Modernista de 1922, cuja máxima expressão literária, o “Macunaíma” de Mário de Andrade, retrata o caráter nacional com as feições mais abjetas e desprezíveis, enquanto a pretensa afirmação da “língua brasileira”, rompendo os laços culturais com Portugal, e privando-nos assim do influxo benéfico das poderosas conquistas culturais portuguesas do século XX, tornou-nos escravos da moda francesa e institucionalizou um linguajar de um artificialismo sufocante, miseravelmente datado.

Nessas condições, o mais lógico seria dizer que no Brasil não há nacionalismo nenhum, que a tendência nacional é para uma cultura de ódio à Pátria. Essa cultura, de fato, existe, mas, como camuflagem e compensação psicológica, colocou-se em cima dela um tipo peculiar de falso nacionalismo, voltado não para os valores espirituais da história, mas para a geografia e o valor material do território. Ao desprezo por tudo o que de mais elevado os brasileiros criaram ao longo dos séculos faz contraponto o culto idolátrico das terras, do minério, do potencial hidrográfico e, mais recentemente, da “biodiversidade” – tudo isso acompanhado, é claro, do temor de que os estrangeiros nos roubem essas maravilhas.

Expressão de uma mentalidade provinciana, deformada pelo materialismo mais vil, esse tipo de nacionalismo jamais poderia fomentar, nas almas que ele afeta, uma reflexão frutífera e realista sobre os problemas nacionais. Muito menos poderia alimentar, nelas, aquele tipo de vida intelectual superior que é necessário para que a classe dos formadores de opinião chegue a ter uma compreensão séria da posição do país na história política e espiritual do mundo.

O nacionalismo brasileiro é apenas uma forma quase demencial de alienação da realidade.

Esse gênero de deformidade mental aparece sobretudo quando a atividade das inteligências não é movida por um desejo sincero de conhecer a realidade, muito menos de elevar-se espiritualmente, mas passa a refletir motivações menores, oportunismos de momento. A tendência nacional para uma forma degradada e impotente de nacionalismo, que já existia pelo menos desde a proclamação da República, veio a ser fortalecida por quatro oportunismos sucessivos:

1. Quando Stalin, na década de 30, ordenou que os Partidos Comunistas explorassem as tensões entre nações ricas e pobres, bem como entre diferentes grupos étnicos, dando-lhes o teor de “luta de classes”, isto imediatamente gerou um falso nacionalismo de esquerda que se permitia depreciar todas as tradições nacionais, apenas odiando o “imperialismo americano” mais do que odiava a elas. A retórica gerada por esse tipo de nacionalismo fazia o possível para aviltar os heróis e símbolos nacionais, a religião majoritária que unificara o país, as Forças Armadas, etc., exaltando, ao mesmo tempo, o “povo anônimo” que, significativamente, nunca aparecia simbolizado por honestos trabalhadores, mas por bandidos e prostitutas.

2. A Revolução de 30 e a ditadura Vargas buscaram implantar, em oposição a isso, uma imagem nacionalista rósea, de agência de turismo, dando aos comunistas ainda mais motivos de desprezo e chacota.

3. Novo empenho nesse sentido foi feito pelos governos militares entre 1964 e 1978, sobretudo na base da publicidade maciça sustentada por slogans de uma estupidez sem par. Um governo que fora elevado ao poder por um movimento de reação anticomunista absteve-se, vergonhosamente, de toda luta cultural contra o comunismo, buscando, ao contrário, desviar as atenções para um patriotismo postiço incumbido de superar por mágica as tensões ideológicas.

4. Após a redemocratização, muitos militares, sentindo sua classe acossada e humilhada pela mídia, buscaram alívio na exploração de um discurso nacionalista que os aproximasse da esquerda. Nada podia aviltar mais as Forças Armadas do que essa tentativa de seduzir seus inimigos que, por seu lado, nada cediam, mas continuavam diariamente, na mídia e nas instituições de cultura, a mover guerra aberta contra a honra dos militares, recorrendo até ao expediente de acusá-los de crimes imaginários, impossíveis. Na revista de ESG sucediam-se artigos “anti-imperialistas” – muitos deles na base do alarmismo amazônico – que não se distinguiam em nada daquilo que se podia ler em publicações comunistas. Num círculo de oficiais nacionalistas, cheguei a ouvir o apelo de um conhecido líder esquerdista a que a antiga esquerda armada e os militares esquecessem suas antigas desavenças e se unissem num esforço comum contra “o imperialismo” e o “neo-liberalismo”. Os aplausos que se seguiram foram a prova de que a honra militar era coisa do passado. Aplausos idênticos vi e ouvi de quase setecentos oficiais militares, no Clube da Aeronáutica, quando da apresentação do então candidato presidencial Luís Inácio Lula da Silva. O ressentimento militar pelo corte de verbas durante o governo Fernando Henrique tinha levado aqueles homens a cortejar o apoio daqueles que diariamente cuspiam na imagem das Forças Armadas e não davam um minuto de descanso aos acusados de “tortura”.

Como é possível que um nacionalismo inspirado em oportunismos tão torpes e mesquinhos gere uma visão correta da realidade, um diagnóstico adequado da situação e a defesa eficaz dos interesses nacionais no quadro do mundo?

Um nacionalismo genuíno ainda está para surgir no Brasil. Como ele é o pressuposto de uma verdadeira compreensão do problema amazônico, esta compreensão ainda vai demorar um pouco. No momento, até mesmo oficiais militares, excitados ante a perspectiva de um caso de amor com seus inimigos de ontem, estão mais preocupados com as bases americanas na Colômbia do que com os quadrilheiros das Farc que já dominam grande parte do nosso território e, através do Foro de São Paulo, governam o Brasil. Nunca houve um só caso de ocupação permanente de um país estrangeiro por tropas americanas. Mas há casos e mais casos de dissolução de soberanias nacionais por penetração insistente de tropas guerrilheiras, mesmo não tão equipadas, ricas e politicamente bem sustentadas como as Farc. A constância com que os nossos pretensos patriotas cedem tudo para o lado mais ameaçador e se intoxicam de alarmas contra perigos inexistentes é a prova mais evidente de uma alienação que torna o país cada vez mais fraco, mais indefeso contra os perigos reais.

Os amigos da onça

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 01 de outubro de 2007

Meus alunos mais velhos são testemunhas de que há quase vinte anos eu já anunciava: “Querem saber o que é entreguismo? Esperem o PT chegar ao poder.” A previsão, que se referia especificamente à internacionalização da Amazônia, não era mero palpite, nem efusão de retórica antipetista. Baseava-se em extensa pesquisa dos laços entre os movimentos de esquerda e os grupos globalistas bilionários que depois vim a denominar “metacapitalistas”.

Como todas as demais previsões políticas que fiz desde então, essa também veio a se confirmar. No último dia 21, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, anunciou o projeto governamental de entregar à gestão privada amplos trechos da floresta amazônica, equivalentes, segundo o repórter Josias de Souza, da Folha de S. Paulo, a noventa mil estádios de futebol.

A iniciativa confirma também o alerta distribuído em 14 de junho pelo CEBRES, Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos, que congrega vários membros do grupo militar dito “nacionalista”, entre os quais o general Durval de Andrade Nery, com o qual tive um arranca-rabo tempos atrás quando ele, decerto por não entender uma só palavra do que digo, me incluiu entre os globalistas que abomino e combato.

Jamais duvidei do patriotismo desses militares, mas, com relação à lucidez e objetividade das suas análises, tenho algo mais que mera dúvida. Tenho a certeza de que estão tragicamente enganados quanto à natureza e localização do inimigo. Simplesmente não é possível compreender o jogo do poder no mundo atual sem um conhecimento extensivo do debate político interno nos EUA, e esse conhecimento é praticamente inacessível a quem se limite aos meios de informação usuais no Brasil.

Já expliquei isso mil vezes, mas parece que estou falando com jumentos de pedra. A opinião pública americana divide-se em partes mais ou menos iguais entre os “progressistas” (liberals) e os conservadores (conservative). Esse equilíbrio reflete uma repartição equitativa do acesso aos meios de comunicação, os primeiros dominando os grandes jornais e a TV, os segundos os programas de rádio, especialmente os talk-shows de enorme audiência. Acontece que, dessas duas fontes, só a primeira atinge o público internacional. A segunda é de alcance estritamente local. Resultados:

1) Do Brasil à Zâmbia, tudo o que se sabe dos EUA vem pela mídia de esquerda, principalmente na sua versão light que por isso mesmo passa como expressão do pensamento americano dominante ou exclusivo.

2) Por toda parte, mas principalmente na América Latina, a reação contra os avanços globalistas ou neo-imperialistas assume por isso mesmo a forma do anti-americanismo, induzindo os nacionalistas a aliar-se com a esquerda local, cujos laços com o metacapitalismo global ignoram ou não compreendem.

3) Monitorados e manipulados de longe pela aliança da esquerda americana com os grupos bilionários, esses esforços patrióticos acabam trabalhando contra si próprios e naufragando na mais deplorável impotência. O manifesto do CEBRES é um exemplo de revolta patriótica mal dirigida, que só pode levar ao fortalecimento dos seus inimigos. Quando tento adverti-los disso, os membros do grupo “nacionalista” reagem com desconfiança paranóica, enxergando em mim um perigo que deveriam procurar antes em alguns de seus “companheiros de viagem” ou mesmo em alguns integrantes do próprio grupo (os mais empenhados em transfigurar em puro anti-americanismo o impulso patriótico dos restantes).

Quase dez anos atrás assisti no CEBRES à conferência de um teórico esquerdista, muito simpático e eloqüente, que pregava a aliança entre a esquerda e os militares contra o “neoliberalismo”. A platéia, — não muito grande, na verdade – aderiu entusiasticamente ao plano, em parte impressionada com a política antimilitar do governo Fernando Henrique, que ela tomava ilusoriamente como direitista e americanófilo, sem saber que a origem remota e o sentido último do tucanismo emergiam da mesma aliança entre os “progressistas” americanos e seus financiadores globalistas, que dava respaldo aos partidos de esquerda no Brasil. A confusão mental que se armara no modesto auditório do CEBRES era tão densa, que abdiquei de tentar desfazê-la, limitando-me a abanar a cabeça prevendo uma desgraça inevitável.

O manifesto de 14 de junho, descrevendo acuradamente a penetração internacionalista na Amazônia e clamando por uma justa reação contra ela, persiste no erro, entretanto, ao ver esse fenômeno como expressão do desejo de poder nacional das “grandes potências”, principalmente os EUA e a Inglaterra, ignorando que a iniciativa parte dos mesmos grupos globalistas que tudo têm feito para diluir a identidade nacional desses dois países, destruir sua soberania e subjugá-los a uma nova estrutura de poder mundial. A falha colossal do diagnóstico do CEBRES provém da sua obediência residual aos esquemas teóricos criados décadas atrás pelos analistas estratégicos da ESG, esquemas esses que, refletindo talvez longinquamente a influência da doutrina Morgenthau, encaravam os Estados nacionais como os agentes principais do processo histórico e assim lançavam uma involuntária cortina de fumaça sobre o novo esquema transnacional de poder que então já era discretamente – e hoje é quase ostensivamente – o verdadeiro protagonista da cena mundial. A luta dos patriotas americanos contra esse esquema é a maior ou única esperança de preservação das soberanias nacionais num futuro não muito distante. Ao voltar-se contra os EUA, em bloco e sem distinções, as reações nacionalistas nos países do Terceiro Mundo, especialmente o Brasil, só fazem dar um reforço gratuito à trama globalista-esquerdista que hoje busca dissolver os EUA num monstrengo chamado “Comunidade Norte Americana” (EUA, México e Canadá) e transferir a organismos internacionais o controle das águas territoriais estadunidenses, exatamente com o mesmo empenho com que tenta – e agora parece que vai conseguir – dominar a Amazônia.

Tanto por seu amor ao comunismo quanto por sua submissão aos interesses globalistas ou pelo seu obsessivo e mal disfarçado ódio antimilitar, o governo do PT vem aprofundando a incompatibilidade, já de si radical e insanável, entre a esquerda e as Forças Armadas –incompatibilidade que agentes de influência como o conferencista acima mencionado ou o ativíssimo grupo do sr. Quartim de Moraes tentam camuflar sob um manto de desconversas sedutoras e promessas lisonjeiras, buscando canalizar em benefício da estratégia globalista-esquerdista internacional a justa insatisfação dos homens de farda. O futuro do Brasil, ou mesmo do continente latino-americano inteiro, depende de que a presente geração de oficiais militares saiba desmascarar seus falsos amigos e recusar-se a servir de instrumento a uma das tramas mais perversas e astutas que a intelligentzia esquerdista já concebeu neste país.

Réu confesso

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 3 de abril de 2005

No encontro que teve com Donald Rumsfeld, o vice-presidente dublê de ministro da Defesa, José Alencar, fez uma declaração que expressa, da maneira mais pura, o estado de completa inconsciência moral em que este país vive mergulhado desde há alguns anos.

Esquivando-se de revelar se considera ou não as Farc uma organização terrorista, ele admitiu que “não concorda com os métodos de arrecadação financeira do grupo guerrilheiro”.

Esses métodos, como até as crianças sabem e nem mesmo o senhor vice-presidente ignora, são o narcotráfico e os seqüestros. Sua Excelência não poderia mesmo concordar com essas porcarias, mas o problema é o seguinte: se uma autoridade testemunha a prática de um crime, tem ela o direito de limitar-se a “discordar” dele, em vez de mandar investigá-lo e puni-lo? A brandura quase carinhosa da expressão usada por Sua Excelência ante os feitos sangrentos das Farc sugere que, entre o crime e a lei, a diferença é de mera opinião, a ser dirimida educadamente num debate democrático entre o criminoso e o juiz, sem maior risco para o primeiro, exceto o de perder a discussão.

Os filósofos gregos chamavam, a essa monumental confusão de planos, “metábasis eis allo guénos”: passagem a outro gênero. Era algo como, numa discussão sobre equações trigonométricas, apelar a argumentos de biologia. Denotava, evidentemente, miolo mole. Mas o senhor Alencar não é propriamente um homem de miolo mole. É apenas um político de terceira ordem que, no empenho de se manter no cargo, assume compromissos contraditórios e acaba revelando, sem querer, a confusão mental em que se meteu ao aceitar responsabilidades superiores ao seu horizonte de compreensão. Dividido entre o desejo de se fingir de confiável ao visitante americano e o de se fazer de bonzinho ante um governo cujo compromisso de apoio mútuo com a narcoguerrilha colombiana é público e notório, seria injusto exigir que o senhor Alencar conservasse a lucidez de uma consciência íntegra.

Caprichando um pouco mais no show de incongruência, o vice-presidente declarou ainda que, no seu entender, ninguém deve se meter nos assuntos internos de outros países. Ora, Sua Excelência sabe perfeitamente bem que as Farc vendem 200 toneladas anuais de cocaína no mercado brasileiro, usam o nosso território como entreposto para a compra ilegal de armas, manipulam o narcotráfico nos morros do Rio de Janeiro, penetram a nossa Amazônia em busca de recrutas brasileiros e, como o comando do Exército volta e meia adverte, atiram nos nossos soldados dos batalhões de fronteira. Salvo engano, a defesa da nossa integridade territorial incumbe ao ministro da Defesa, isto é, ao senhor José Alencar. Pois bem, diante de tão óbvios ataques armados à nossa soberania, que é que faz o ministro? Pede a palavra no debate acadêmico. Ele sabe que uma conduta é criminosa, que ela põe em risco a soberania nacional e que ela está sob a sua jurisdição direta, mas nada faz para coibi-la além de declarar, com toda a ponderação diplomática imaginável, que não gosta muito dela.

Para qualquer observador que conserve ainda a capacidade de discernimento jurídico, é óbvio que, nesse instante, o senhor ministro e vice-presidente se tornou réu confesso do crime de prevaricação. Mas também é óbvio que, entre os poucos que conservam essa capacidade, quase todos trataram de atrofiá-la de propósito para sobreviver politicamente (ou até financeiramente) nesse labirinto de mentiras e alucinações que é o governo Lula. Por isso é certo que a confissão explícita, em vez de tirar o senhor Alencar da vice-presidência e do ministério e mandá-lo para a cadeia como aconteceria numa situação normal, só contribuirá para mantê-lo nos seus dois cargos e no confortável exercício de direitos que, desde quarta-feira, ele não deveria ter mais.

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