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A paz mortífera

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 6 de julho de 2006

A notícia saiu no Brasil com uma discrição que raia a invisibilidade: vinte e sete anos depois da queda do regime comunista, oito depois da morte de seu líder máximo Pol Pot, começou em Phnom Penh, segunda-feira, o julgamento dos culpados pelo genocídio no Camboja, que matou dois milhões de civis entre abril de 1975 e janeiro de 1979.

Desde as primeiras negociações para o tribunal, em 1997, a burocracia da ONU fez de tudo para adiar o julgamento até à morte do último acusado. Embora restem apenas septuagenários para ser julgados, a abertura dos trabalhos é uma vitória do povo cambojano contra a má-vontade internacional. Esta pode aliás ser explicada pelas seguintes razões:

1. Logo depois que os soldados americanos saíram do território vietnamita, o Vietnã do Norte invadiu o Vietnã do Sul e forneceu a base de apoio para a tomada do vizinho Camboja pelas tropas de Pol-Pot. A matança nos dois países somou três milhões de pessoas – mais de três vezes o número das vítimas da guerra. O resultado havia sido previsto repetidamente pelos “falcões” do Pentágono, que, contrariando a gritaria pacifista, denunciavam a retirada das tropas americanas como uma sentença de morte contra vietnamitas e cambojanos. A paz mais assassina que a guerra foi obra direta dos ativistas de esquerda dos anos 60 e 70, que até hoje tentam passar como benfeitores da humanidade por isso.

2. O regime de Pol-Pot foi ostensivamente apoiado por toda a elite esquerdista da Europa e dos EUA. Jean-Paul Sartre escreveu louvores ao ditador e Noam Chomsky fez o diabo para ocultar a realidade do genocídio.

3. O que está em jogo é portanto a segurança psicológica da esquerda internacional, que não suporta um novo confronto com a verdade e foge mais uma vez à contemplação do seu próprio rosto hediondo.

O socialismo, já disse e repito, matou mais gente do que todas as epidemias, terremotos e furacões do século XX, somados a todas as ditaduras de direita, mesmo se incluirmos nestas últimas o nazismo e o fascismo, o que é inexato. O socialismo é o fenômeno mais cruel e absurdo de toda a história humana, e nada, absolutamente nada pode justificar as tentativas de explicar sua constante e obsessiva fome de cadáveres como uma sucessão de coincidências fortuitas que em nada o comprometem moralmente.

Ser socialista, em qualquer grau ou medida, é ser duplamente criminoso: é ser cúmplice moral de cem milhões de homicídios e é reivindicar cinicamente para o regime assassino um novo crédito de confiança para o futuro, arriscando expor a humanidade a mais um banho de sangue pelo qual, é claro, nenhum socialista de amanhã se sentirá responsável. E tão criminoso quanto o socialista é o liberal ou conservador que, diante desses fatos, reclama que mencioná-los é falta de polidez para com o adversário, como se a pusilanimidade abjeta de debatedores pó-de-arroz devesse prevalecer sobre a verdade ou sobre o respeito para com os mortos.

As democracias capitalistas podem ser feias em comparação com o ideal imaginário de uma sociedade perfeita. Mas o socialismo é monstruoso em comparação com algumas das piores sociedades do passado. O total de vítimas da Inquisição Espanhola – vinte mil em quatro séculos – foi a quinta parte do que Fidel Castro matou em duas décadas, entre seus próprios compatriotas e correligionários. Gengis-Khan e Átila o Huno não conseguiriam inventar um pesadelo tão opressivo quanto o socialismo, muito menos teriam a baixeza de apresentá-lo como a mais bela esperança da humanidade.

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Segundo leio no site do Stephen Kanitz, sou o terceiro na lista dos formadores de opinião mais lidos no Brasil, logo abaixo do próprio Kanitz e do guru empresarial Tom Peters. Se tão honroso posto não equivalesse, de acordo com a mesma fonte, ao centésimo-septuagésimo-milésimo lugar no correspondente ranking mundial, eu começaria a achar que sou mesmo alguma coisa. Estar entre os mais lidos num país onde ninguém lê nada é ser campeão de caratê num torneio de velhinhos com Alzheimer.

Os criminosos

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 01 de agosto de 2002

Se você quer identificar o tipo perfeito do esquerdista fanático, mentiroso, preconceituoso, cego e amoral, para o qual a vitória da causa esquerdista está acima do bem e do mal, da verdade e do erro, da vida e da morte (da morte dos outros, é claro), saiba que ele se revela por um detalhe infalível.

É o seguinte.

Os EUA entraram na guerra do Vietnã para impedir que os vietcongues tomassem o Vietnã do Sul e alastrassem seu domínio para o vizinho Camboja. Se isso acontecesse, asseguravam então os “falcões” do Pentágono, a ditadura comunista se imporia a toda a região por meio do homicídio em massa, além de reduzir as populações locais à miséria e ao trabalho escravo. Para impedir isso, diziam, os EUA tinham o dever de permanecer no Vietnã. Nós, na esquerda, rejeitávamos in limine esse argumento como propaganda imperialista e assegurávamos que os vietcongues eram apenas patriotas em luta pela independência nacional. Pois bem: quando os americanos saíram do Vietnã, os vietcongues instalaram o reinado do terror no Vietnã do Sul, matando em poucos meses um milhão de civis, e ajudaram a colocar no poder no Camboja o ditador Pol-Pot, que ali matou mais dois milhões. Preço total da saída das tropas norte-americanas: três milhões de vidas — dez vezes mais que o total de vietcongues mortos no campo de batalha. Três vezes mais que o total de vítimas de todas as ações bélicas dos EUA no mundo durante um século inteiro. Sem contar os vietnamitas e cambojanos que foram mandados para campos de concentração e escaparam vivos de torturas e humilhações indescritíveis. Sem contar a supressão de todas as liberdades civis. Sem contar a miséria geral e o recrutamento obrigatório até de crianças para o trabalho escravo.

A quem coube a culpa por essa paz assassina? A nós, os meninos mimados da geração Woodstock, que ajudamos a mídia esquerdista mundial a desarmar os EUA, entregando civis inermes à sanha assassina de Ho Chi Minh e Pol-Pot.

Na época, a maioria de nós não tinha a mínima idéia da imensidão do crime com que colaborávamos alegremente. Mas hoje o mundo inteiro sabe qual foi o preço da nossa ostentação de bom-mocismo. E aí está o detalhe a que me referi: quem quer que, hoje em dia, passadas três décadas dos acontecimentos e uma década da difusão mundial dos números do genocídio, continue fazendo de conta que os americanos foram os bandidos da história e celebrando como alta manifestação de piedade a trama sórdida a que nos acumpliciamos, é um advogado do genocídio e um canalha em toda a linha. Pouco importa que, para não se desgastar na defesa de cliente ruim, finja desprezar o “socialismo real” e envergue depois do fim da festa sangrenta a máscara fácil do esquerdismo “light”. Ninguém que tenha abdicado com sinceridade do culto ao comunismo sino-soviético pode continuar sustentando, após tanto tempo, a mentira assassina que ele impingiu ao mundo. No consenso do direito penal internacional, a propaganda do genocídio, mesmo feita ex post facto e indiretamente — por exemplo através da difamação dos que lhe resistiram –, é crime contra a humanidade. São, pois, formalmente culpados de crime contra a humanidade todos aqueles que hoje, para falar mal dos EUA sob qualquer pretexto que seja, continuem usando a torpe e enganosa retórica “pacifista” dos anos 60. Que desejem embelezar retroativamente sua própria juventude perdida, é apenas uma abjeta efusão de vaidade senil. Mas que o façam legitimando uma paz mais cruel do que todas as guerras, isso é crime e nada mais que crime.

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Meu artigo “Prepotência gay” recebeu, por e-mail, agradecimentos de comerciantes da Vieira de Carvalho, que se sentem constrangidos e ameaçados pela turbulência arrogante dos novos donos da rua e não têm quem os defenda contra a deterioração do ambiente. Tanto não têm que muitos deles preferiram fechar seus estabelecimentos: “Podemos citar — dizem os remetentes, cujos nomes omitirei aqui por motivos óbvios — o Restaurante Almanara, a Casa Ricardo, o Hotel Amazonas e o Hotel Vila Rica. O restaurante mais antigo da cidade, o Carlino, também fechou suas portas.” Não se trata, repito, de contestar os direitos dos gays, que eu defenderia com prazer se fosse o caso e se já não tivessem defensores em profusão. Mas o direito de um grupo qualquer à gandaia pública será superior ao direito de um comerciante ganhar a vida trabalhando?

Em busca da justiça

Olavo de Carvalho

O Globo, 11 de agosto de 2001

Malgrado as dificuldades e limitações que terá de enfrentar, o julgamento dos guerrilheiros do Khmer Vermelho, que o governo do Camboja e as Nações Unidas anunciam para este ano, pode ser o primeiro passo para uma tomada universal de consciência de que os colaboradores de regimes comunistas são culpados de crimes contra a humanidade, exatamente no sentido e na medida que o foram os nazistas condenados pelo Tribunal de Nuremberg.

Um quarto de século atrás, poucas semanas antes da queda de Saigon, o grupo liderado por Pol Pot tomava o poder no vizinho Camboja e, em nome da nova cultura socialista, iniciava o massacre dos recalcitrantes e desajustados, chegando em poucos anos à cifra de dois milhões de mortos.

Esses crimes, cometidos por cambojanos contra seus próprios compatriotas desarmados, em tempo de paz, suscitaram imensuravelmente menos revolta e gritaria internacional do que os bombardeios americanos no Vietnã ou do que as mortes de três mil esquerdistas chilenos ocorridas em ambiente de guerra civil.

Um dos obstáculos temíveis que o julgamento do clã Pol Pot encontrará pela frente é, sem dúvida, a má vontade da mídia internacional cúmplice. Desde que, no começo dos anos 90, o dissidente Vladimir Bukovski trouxe dos Arquivos de Moscou as provas de que praticamente toda a imprensa social-democrática européia tinha sido financiada pela KGB na década anterior — suscitando imediatamente a eclosão da Operação Mãos Limpas, com que uma organizada elite de juízes comunistas desviou a atenção do público para casos de corrupção doméstica — ninguém mais tem o direito de imaginar que prestigiosos jornais de centro-esquerda, na Itália, na França ou na Alemanha, são fontes fidedignas de informação. A participação ativa de um deles naquele grotesco ritual de beatificação das Farcs que foi o Fórum Social Mundial de Porto Alegre assinala toda a diferença que existe entre jornalismo e propaganda.

A desproporção monstruosa entre a espetacular campanha mundial anti-Pinochet e o modestíssimo destaque que se vem dando ao julgamento do Khmer Vermelho não é coincidência: é, no mínimo, um esforço consciente para varrer para baixo do tapete as culpas dos colaboradores europeus do genocídio cambojano.

Nada está mais longe da mentalidade atual dos remanescentes esquerdistas no mundo do que a hipótese de assumirem, mesmo em pensamento, a mais mínima parcela de culpa por todo o mal que ajudaram a fazer. Mesmo quando reconhecem o horror da ditadura socialista construída na URSS, na China, em Cuba, não se sentem culpados, mas vítimas. A desilusão que tiveram com seus sonhos de juventude lhes parece um sofrimento incomparavelmente mais digno de piedade do que aquele que, em nome desses sonhos, eles e seus cúmplices impuseram a um quarto da população do globo terrestre. Que são, de fato, cem milhões de mortos e muitas centenas de milhões de pessoas reduzidas ao trabalho escravo, perto da humilhação de alguns grupos de intelectuaizinhos obrigados a reconhecer, se tanto, pequenos erros de estratégia na realização de seus lindos projetos sociais?

Quando digo que há algo de anormal, de doente, de sociopático na mentalidade de comunistas, socialistas e esquerdistas em geral, é a isso que me refiro: é a essa incapacidade radical que cada um deles tem de julgar-se a si próprio pelos mesmos padrões com que julga os outros. É a essa completa e profunda falta do senso de igualdade nos apóstolos da igualdade. É a esse total e soberano desprezo pelo Segundo Mandamento.

Graças à universalidade desse fenômeno, o julgamento do Khmer Vermelho não somente se arrisca a ser bastante amortecido pela mídia mundial, mas ainda a ter de contentar-se com enviar ao banco dos réus apenas uma parte dos líderes conhecidos desse movimento criminoso, pois vários remanescentes dele ocupam posições de destaque na sociedade cambojana atual, e dificilmente as autoridades judiciárias terão a coragem ou os meios de mexer com eles — sobretudo com Ieng Sary, cunhado do falecido Pol Pot e ex-ministro das Relações Exteriores. Para que o tivessem, seria preciso muito mais apoio internacional do que aquele com que poderão contar.

Em todo caso, o julgamento é um começo. Antes punir somente alguns culpados do que premiar a todos. Qualquer passo, mesmo modesto, que se dê no sentido de estabelecer a equiparação legal de todos os crimes de genocídio serve para aproximar a humanidade da cura da esquizofrenia moral que a acometeu desde que, com a aliança entre Roosevelt e Stalin, socialistas e comunistas adquiriram o direito de ser nazistas com boa consciência.

Recentemente, na Romênia, o ex-ministro das Relações Exteriores, o filósofo e meu querido amigo Andrei Pleshu, descobriu um fato que o atirou ao fundo da maior depressão: o mais respeitado líder democrático do país e ex-grão-mestre da Maçonaria, o senador Dan Lazarescu, tinha sido, em segredo, colaborador da polícia secreta comunista; seus relatórios haviam enviado à prisão não somente vários de seus companheiros maçons (a Maçonaria romena era inimiga declarada do regime), mas também diversos membros de outras facções dissidentes.

Cortando na própria carne — pois Lazarescu era pessoa de sua estima e admiração — Pleshu divulgou a descoberta. Lazarescu foi expulso do Senado e da Maçonaria, aos oitenta e tantos anos. A Romênia estava mortalmente triste mas muito mais saudável. Há muitos outros parceiros do ditador Ceaucescu espalhados na alta sociedade romena. Mas o desmascaramento de um só dentre eles ajuda, pelo menos, a impedir que a força do esquecimento transforme, por decurso de prazo, a injustiça em justiça.

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