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Idioma extinto

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 5 de fevereiro de 2006

A coisa mais difícil é encontrar no Brasil um jornalista, escritor, economista, sociólogo, professor universitário, oficial superior das Forças Armadas, senador, deputado, governador ou ministro que tenha capacidade para acompanhar, mesmo por alto, o movimento das idéias nos EUA. O desnível mental entre os dois países tornou-se abissal e intransponível, por atrofia acelerada de um deles e crescimento ininterrupto do outro.

Só para dar uma idéia. O filósofo Leo Strauss morreu em 1973. Alguns de seus discípulos ocupam postos importantes no governo Bush e no partido republicano. A bibliografia de e sobre Strauss e as controvérsias em torno de sua influência política já somam alguns milhares de volumes. No Brasil, ninguém sabe nada sobre isso, e tudo o que os jornais puderam fazer para simular informação – e isto já no segundo mandato do presidente americano — foi copiar às pressas uns dois artigos do New York Times, escolhidos a esmo entre o que de mais bobo se escreveu a respeito.

Mas não falta só informação. O idioma mesmo já não funciona. Simples colunas de jornal – Larry Elder ou Mona Charen, por exemplo, ou mesmo Ann Coulter – tornaram-se intraduzíveis, tal a riqueza do vocabulário e a profusão de alusões culturais subentendidas. A língua da nossa mídia não alcança essas sutilezas. O brasileiro simplesmente já não sabe do que o americano está falando. Acredita cada vez mais numa humanidade unificada, globalizada. Mas cada vez há mais planetas neste planeta – e alguns ficam bem longe.

Não espanta que a visão que se tem dos EUA no Brasil regrida velozmente aos estereótipos “anti-imperialistas” dos anos 50. São mais acessíveis à inteligência média e protegem contra a visão súbita do incompreensível.

Entre alguns jovens brasileiros, com pretensões letradas, a visão do hipertrófico desenvolvimento intelectual americano das últimas décadas teve uma conseqüência estranha: mergulharam nesse turbilhão e afogaram-se nele. Não vêem mais nada em torno. Conhecem cada linha de Thomas Pynchon, Jane Smiley, Alice Munro. Nunca leram Homero ou Dante. Nem, evidentemente, conhecem o próprio passado cultural americano. A atualidade novaiorquina é a medida da sua consciência histórica. A maior prova da incapacidade de absorver uma cultura estrangeira é a facilidade de ser absorvido por ela.

A mente brasileira hoje em dia é tão confusa, tão tortuosa, tão emperrada, tão cercada de prevenções, temores, superstições e fetichismos, que a comunicação das coisas mais simples se torna às vezes impossível. Diga você o que disser, não é jamais respondido na mesma clave. Muito menos respondido no sentido integral daquilo que disse. Cada ouvinte pega uma frase, uma palavra, uma vírgula que o impressionou por motivos inteiramente subjetivos, atribui a ela o sentido que bem entende e lhe opõe, não raro com eloqüência feroz, respostas que vão parar longe da discussão inicial.

E não me refiro ao povão, mas às classes letradas, aquelas que têm direito a voz e voto ao menos nas cartas de leitores. Com freqüência, não respondem ao que está sendo dito agora, mas a situações de vinte, trinta anos atrás, que se consolidaram no seu subconsciente e aí instalaram uma rede de reflexos condicionados, prontos para ser acionados, com automatismo cego, à simples audição de certas palavras que evoquem semelhanças remotas, independentemente do contexto novo em que aparecem.

É tudo uma mistura de preguiça mental, ignorância, informação faltante ou viciada, suscetibilidade mórbida e, invariavelmente, mau português. Mau português não só na ortografia troncha ou na construção errada, o que seria perdoável até certo ponto, mas no sentido quase que infalivelmentente impróprio das palavras, denotando percepção turva, como num sonho de alcoólatra. Tudo entremeado, conforme a idade do remetente, de eloqüência kitsch para fingir dignidade ou de desleixo afetado para fingir menosprezo.

Para quem está longe da terra natal e, privado dos estímulos do ambiente físico, se apega ao idioma como vacina contra a diluição da identidade pátria, ler essas coisas é um tormento: sinto ter vindo de um país que já não existe mais, de uma cultura esquecida, só conservada na memória de um saudosista semilouco, vagando errante pelas ruas de um país longínquo, falando sozinho em idioma extinto.

O Milagre da Solidão

Olavo de Carvalho

Bravo! nº 13, outubro de 1998, edição de primeiro aniversário

Lima Barreto foi, com Cruz e Sousa e Machado de Assis, um dos meus heróis carlylianos de juventude — “the hero as man of letters” —, o tipo do sujeito que pela força da auto-educação se eleva acima do meio opressivamente burro e se torna um educador de seus opressores.

Que os três fossem pretos era coisa que não me comovia especialmente. A discriminação que você sofre como parte de um grupo tem sempre o contrapeso da solidariedade entre a multidão de coitados: quanto mais o expelem de um grupo, tanto mais você se sente integrado no outro, e sempre resta a esperança coletiva de que os oprimidos de soje sejam os opressores de amanhã. Ruim, mesmo, é a discriminação que você sofre sozinho, sem o consolo da palavra nós e das ideologias salvadoras, rejeitado, graças ao estima da diferença, mesmo pelos seus companheiros de raça, de religião, de bairro, de geração. Aí você não tem para onde correr. Você é o próprio Cristo na cruz, abandonado por todos, desprovido de semelhantes. Nenhuma ONG vai fazer lobby em seu favor, nenhuma assembléia da Unesco vai denunciar que você é vítima de uma grossa sacanagem, a rainha da Inglaterra não vai estipendiar nenhuma fundação para socorrê-lo, nenhum editorial do The New York Times vai dizer que você é lindo e maravilhoso como o João Pedro Stédile. Para todos os efeitos, você está excluído até mesmo da classe dos dscriminados. Você é aquela mancha de meio milímetro no canto de uma foto do Sebastião Salgado.

Só o sujeito que passou por essa situação sabe que existe, no mundo, um tipo de mal que supera tudo o que a mídia denuncia, e que pensando bem, é a raiz da porcaria universal.

Explico-me. O herói do primeiro romance de Lima Barreto, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, não sofre somente porque é preto e pobre. Ele sofre porque é um sujeito honesto num meio de vigaristas, um autêntico homem de letras num meio de farsantes, um gentleman no meio de carreiristas vorazes e grosseiros. Enquanto preto e pobre, consolava-se olhando a multidão de seus companheiros de infortúnio. Mas quantos semelhantes teria ele nas qualidades excelsas que o destacavam e o isolavam? Quantos irmãos tinha Cristo na cruz? A parte de Isaías que mais dói não é sua inferioridade social: é sua superioridade moral.

Mas Isaías traz ainda a marca do ressentimento racial. Ao escrevê-lo, Lima Barreto sente-se ainda o membro de uma determinada comunidade excluída e fala em nome dela. O livro resvala às vezes para o desabafo direto e, quanto mais se aproxima de uma cópia literal da realidade empírica, mais perde em altitude. O próprio Isaías também é de pouca estatura: ele é melhor que os outros, não mais forte: débil e tímido, reduz-se a uma vítima passiva das circunstâncias, tudo se resolve numa horizontalidade deprimente e, como dizia Antonio Machado, “cuán dificil es/ cuando todo baja/ no bajar también”!

No romance seguinte, Lima Barreto abdica de toda referência a uma injustiça social presente. O major Quaresma não pertence a nenhum grupo discriminado.

Não tem nenhum handicap que o identifique a esta ou àquela multidão de vítimas. Ele é auto-suficiente na luta pela vida. É mais forte, mais inteligente e mais valente que seu antagonista, o presidente Floriano. Quaresma não é discriminado porque algo lhe falte, mas porque tem força de sobra e a generosidade de querer ajudar a seu povo. Este segundo herói de Lima Barreto adquire assim uma altitude que faltava a Isaías. Ele já não é o personagem de um mero drama social, mas o herói de uma tragédia. Segundo Aristóteles, é essencial que o herói trágico seja um homem poderoso e especial: fora disso suas desventuras assinalariam apenas uma conjunção acidental de circunstâncias, suprimível e sem o alcance de uma fatalidade cósmica inexplicável.

Mas a derrota do major ainda é parcialmente explicável. Ele é um gênio criativo, mas, convenhamos, suas idéias são bem esquisitas. Ele tem esse resíduo de fraqueza, a meia loucura que o coloca a meio caminho entre o herói e o anti-herói. É por esse flanco que o inimigo consegue feri-lo. A morte de Quaresma nos deprime, mas não nos escandaliza como um absurdo completo. Há nela algo de razoável: o ideal do reformador era incompatível não só com o ambiente mesquinho da República florianista, mas com a reaidade tout court.

Esse último pretexto da injustiça é enfim abolido num romance seguinte de Lima Barreto, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Gonzaga é um Policarpo Quaresma sem demência, um Isaías sem o handicap da juventude e da timidez. É um grande homem em toda a extensão da palavra — e sua vida termina no isolamento e na resignação, mas não na derrota. Solitário entre seus livros, o sábio desenganado observa o mundo com um olhar sem ressentimento nem sentimentalismo, cheio de uma compreensão serena que lembra, por mais de um aspecto, a do conselheiro Aires, mas livre daquele resíduo de negativismo schopenhaueriano que foi até o fim a marca registrada de Machado de Assis.

A trilogia barretiana mostra-nos a evolução do ideal do humano do grande escritor, retratada na gradação espiritual dos heróis: o jovem talentoso esmagado pelo mundo, o combatente exaltado e semilouco, o sábio estóico soberano e calmo que permanece de pé enquanto o mundo em torno cai. De personagem a personagem, há uma progressiva depuração e interiorização do ideal, que vai se afastando da situação empírica imediata para se tornar cada vez mais universalmente humano e, na mesma medida, se desliga de todo ressentimento coletivo para encontrar o sentido de uma vida não na vingança, mas no perdão.

O perdão, aqui, não deve ser entendido na acepção beata e sentimental, mas no sentido etimoçógico de per-donare, completar o dom: o mundo não nos persegue porque é mais forte que nós, mas porque é mais fraco. Ele nos persegue porque algo lhe falta: a sabedoria. Como no verso de Santayana: “O world, thou choosest not the better part!” . Ao superar o ressentimento coletivo, o sábio “escolhe a melhor parte” e é o único que, no fim das contas, é rico o bastante para ter o que dar. Gonzaga não é verdadeiramente derrotado. Expelido do mundo, prossegue a busca da verdade, sempre disposto a compartilhá-la com o discípulo que o procure. “The hero as man of letters”: o oprimido tornou-se educador do mundo opressor.

Juntas, as três obras maiores de Lima Barreto formam um poderoso Bildungsroman — o romance da vitória de uma alma sobre si mesma e, por meio disto, sobre o mundo(*).

A transfiguração do oprimido em benfeitor é um milagre que se repete incessantemente na história. Raramente houve um sábio, um santo, um mestre cujos prodígios de generosidade não brotassem dos extremos de discriminação e solidão padecidos na infância, vencidos e superados pela alquimia da maturidade. É a mensagem final do Rei Lear: “Ripeness is all”.

Mas isso só acontece àqueles que sofreram a discriminação sozinhos, sem ter uma raça, um partido, uma ideologia, uma ONG e fundações internacionais a que se agarrar. Quem tem essas coisas não precisa atravessar o caminho da ascese interior. Pode encontrar alívio e reconforto na ilusão de que o ódio dos vencidos é um sentimento moralmente superior ao orgulho dos vencedores. Pode escapar da solidão fundindo-se na massa vociferante dos comparnheiros de partido, sonhando morticínios justiceiros que serão, na sua cabecinha imunda, a apoteose do bem. Foi dessa ilusão sangrenta que a leitura da trilogia de Lima Barreto me libertou, mais de trinta anos atrás.

A diferença entre povo opressor e povo oprimido é apenas quesão de ocasião, e a “solidariedade com os primidos” é apenas o véu ideológico que bsuca embelezar e legitimar, de antemão, os massacres de amanhã. Esse reconforto “ético” é, no fundo, uma fuga da consciência: todo povo orpimido esconde os lances vergonhosos de sua própria história, para poder acreditar-se melhor que os opressores. Não há um só movimento de libertação e de direitos que não se funde nessa mentira essencial, em que se afiam os espetos de futuros holocaustos. Durante um milênio faraós negros arrancaram sangue do lombo semita, para terminar sendo vendidos como escravos e hoje tentar comover o mundo com seu discurso contra os judeus comerciantes de escravos. Os alemães encontraram na humilhação coletiva a inspiração para perseguir os judeus, e a fumaça do holocausto ainda santifica o fuzil isralense a cada tiro que dispara sobre um palestino armado de pedras.

Reihold Niebuhr assinalava a diferença de nível ético, estrutural e intransponível, entre o indivíduo e a comunidade. Para o indivíduo, o sofrimento pode ser o princípio da sabedoria. Para a comunidade, é o motor da violência, que puxa o carro da história na direção da fornalha ardente em cuja beirada um cartaz anuncia: “Justiça e Paz”. Em face disso, a serenidade de M. J. Gonzaga de Sá é a resposta final aos padecimentos do jovem Isaías Caminha, e o heroísmo semilouco de Policarpo é uma etapa, a ser vencida, no caminho do entendimento.


(*) É a única obra desse gênero na nossa literatura, se descontarmos a novela de Guimarães Rosa A Hora e Vez de Augusto Matraga, a que o filme de Roberto Santos deu interpretação inversa, injetando-lhe aquela mistura de negativismo brasileiro e marxismo de botequim que torna a redenção de Matraga um gesto inútil por não se enquadrar, como ato isolado, na estratégia geral do Partido.

Copiado, para a posteridade, deste blog que pode desaparecer a qualquer momento e é a única fonte deste grandioso texto em toda a internet.

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Link: O Milagre da Solidão

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