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Rodízio de santidades

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 7 de setembro de 2006

A construção do sistema nacional de roubalheira petista não começou em 2003, nem é um desvio acidental da linha partidária. Vem do início dos anos 90. É parte integrante da estratégia de conquista progressiva do poder total, que passa pela destruição sistemática da ordem pública e pela parceria ignóbil entre partidos esquerdistas e organizações criminosas no Foro de São Paulo. Não há um só dirigente do PT ou de qualquer outro partido de esquerda que não saiba disso, nem jornalista que o ignore. Por isso mesmo conseguiram escondê-lo tão bem.

Agora que se tornou difícil continuar negando as patifarias mais espetaculares usadas para implementar o grande engodo, só resta aos mentores esquerdistas fazer aquilo que previ em março de 2004: “Se o PT cair em total descrédito…, entrará em ação o Plano B: suicidar o governo alegando que falhou porque estava muito ‘à direita’ — e aproveitar-se da oportunidade para acelerar a transformação revolucionária do país, … transferindo a militância (petista) para outra e mais agressiva organização de esquerda.” (Cf. http://www.olavodecarvalho.org/semana/040311jt.htm.)

O manifesto (publicado na Folha de terça-feira) no qual 250 picaretas acadêmicos internacionais, lulistas históricos, saem repentinamente acusando o governo Lula de “neoliberal” e pedindo votos para a Sra. Heloísa Helena, já é o plano B em ação.

Retroativamente, o padroeiro da esquerda é jogado para a direita junto com suas culpas, a data dos delitos é transferida para 2002 e doze anos de conspiração criminosa desaparecem numa nuvem de enxofre, de trás da qual emerge puro e santo o novo objeto de devoção, veraz e autêntico como uma virgem celeste de desfile carnavalesco, esmagando sob os seus mimosos pezinhos a serpente do capitalismo malvado e ladrão.

Limpar-se na sua própria sujeira é a tática mais velha e persistente do repertório esquerdista. Não há limites para a mendacidade, a malícia, a perversidade e o grotesco da mente revolucionária. Seu único deus é o Poder, sua única moral é a da vitória a todo preço. O resto é jogo dialético para estontear o adversário.

Continuem confiando nessa gente e ela lhes roubará tudo, a liberdade, a bolsa, a vida e o último resíduo de dignidade, como roubou no Leste Europeu e em Cuba. E, se vocês acham que existe algum esquerdista mais honesto que o outro, não estão de todo errados: o antecessor é quase sempre um pouco menos canalha do que o sucessor.

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Acabo de ler, maravilhado, o estudo que Paulo Mercadante consagrou a um herói da inteligência brasileira (Tobias Barreto, o Feiticeiro da Tribo, UniverCidade, 2006). Não sei o que admirar mais: o estilo e a erudição do autor, remanescente da espécie extinta dos grandes escritores brasileiros, ou a energia incansável com que o personagem, isolado e sem recursos no meio provinciano, luta para manter-se ao nível dos debates filosóficos do seu tempo, um dever que os intelectuais subsidiados de hoje em dia ignoram solenemente. Honrado pela mídia chique com a infalível homenagem do silêncio total, o livro só se torna, por isso, ainda mais digno de atenção.

Política amebiana

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 16 de março de 2006

A esquerda, como as amebas — com as quais também se assemelha pelo quociente de inteligência e por só poder prosperar em ambiente fecal –, multiplica-se por cissiparidade. Cada nova leva de esquerdistas separa-se de seus antecessores, chamando-os de direitistas e obtendo assim autorização para cometer sob novos pretextos os mesmos crimes que eles cometeram. Esse velho truque — tão velho que já nem sei se é truque ou é vício — tem ainda a vantagem de destituir de sua identidade a direita genuína e empurrar o eixo da disputa política cada vez mais para a esquerda.

Os primeiros a ser usados nesse engodo foram os girondinos, na Revolução Francesa. Desde então, a coisa não parou mais. Só no Brasil ainda há cérebros suficientemente letárgicos para não perceber o quanto ela é previsível.

Se o leitor tiver a bondade de consultar dois artigos meus, de 27 de maio de 2000 e 11 de março de 2004 ( www.olavodecarvalho.org/semana /paulada.htm e www.olavodecarvalho.org/semana /040311jt.htm ), notará que aí foram anunciados de antemão, sem a menor dificuldade, os dois desenvolvimentos mais recentes do esquerdismo local: a redução do cenário eleitoral a uma concorrência entre petistas e tucanos e, uma vez vitorioso o PT, a subseqüente ascensão de setores radicais que condenavam o partido governante como vendido e “neoliberal”.

Na retórica usada para legitimar as mudanças, o termo “esquerda”, tal como invariavelmente acontece nessas metamorfoses verbais, não aparecia como conceito objetivo, mas como rótulo publicitário com significado móvel. A esquerda define-se a si própria como lhe convém em cada etapa, redesenhando os inimigos reais e imaginários conforme a impressão que deseja transmitir à platéia. A mente esquerdista é toda constituída de automatismos cênicos sufocantemente repetitivos. No Brasil, porém, o exercício habitual desses cacoetes ainda é eficaz o bastante para ludibriar o eleitorado de novo e de novo, chegando até a ser aceito como “ciência política”, dada a absoluta incapacidade nacional de distinguir entre ciência e propaganda. O sr. Luiz Werneck Vianna, por aparecer dizendo que o PT e o PSDB são “as torres gêmeas da ordem burguesa”, é celebrado pela Folha de S. Paulo como grande intelectual e quase um profeta. Esse primor de tirocínio amebiano jamais seria mencionado aqui se o referido não aproveitasse a ocasião de tão elevados pensamentos para criar uma teoria a respeito deste colunista. A teoria é a seguinte: não representando os interesses de uma classe em particular, não sou propriamente um intelectual, mas um puro “produto da mídia”. Intelectual, para esse protozoário gramsciano, é só o sujeito que recebe dinheiro dos bancos para forçar a alta dos juros, ou do MST para cavar novas doses de subsídios estatais. Não vou discutir o argumento, por duas razões. Primeira: nada do que eu alegasse contra ele poderia lhe fazer tanto mal tanto quanto o seu próprio enunciado. Segunda: repetidamente acusado de bater em menores de idade após cada confronto que tive com intelectuais de esquerda, renunciei para sempre a essa prática impiedosa.

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Entre os órgãos da grande mídia direitista que, segundo o sr. Alberto Dines, domina o mercado nacional, esqueci de mencionar na semana passada o valente tablóide Inconfidência , de doze páginas e periodicidade mensal, impresso por um grupo de patriotas mineiros com dinheiro do seu próprio bolso, para onde jamais volta.

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O senador Renan Calheiros está propondo uma emenda constitucional que dispensará o Estado de pagar dívidas transitadas em julgado se os credores não lhe derem os descontos que ele bem entenda. A brasileira será a primeira Constituição do mundo que consagra o direito estatal à pilantragem absoluta. Não se pode negar que a idéia tem forte respaldo nas nossas tradições culturais.

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Ao proibir as palmadas em bumbuns de crianças traquinas, nossos congressistas legislaram em causa própria: alguém os alertou de que suas mães estavam sabendo de tudo o que eles aprontam.

A morte do pato

Olavo de Carvalho


 O Globo , 9 de março de 2002

A operação policial que — por coincidência, segundo o sr. ministro da Justiça, por mera coincidência — levantou suspeitas quanto à idoneidade do casal Sarney no preciso momento em que a ascensão de Roseana começava a ameaçar tanto Serra quanto Lula serviu no mínimo para mostrar que as facções aparentemente inimigas que sustentam esses dois candidatos estão firmemente unidas no propósito de não permitir que nunca, nunca mais, um concorrente estranho à comum origem ideológica de tucanos e petistas venha a pôr em risco a hegemonia esquerdista sobre a vida pública nacional.

Separados por diferenças menores, o esquerdismo “modernizado” de FH-Serra e o esquerdismo mais tradicional da oposição petista estão juntos na luta pela sua meta prioritária comum, acalentada desde as primeiras leituras de Antonio Gramsci nos círculos esquerdistas dos anos 60, que é a de fazer com que todo o espaço dos debates nacionais venha a ser monopolizado pelo debate interno da esquerda, sem lugar nem chance para mais ninguém, usando o próprio arcabouço formal do pluralismo democrático como meio de impor a toda a nação o mais imbecilizante unanimismo ideológico.

Seguindo estritamente a lição de Gramsci, essa estratégia foi aplicada primeiro nas áreas circundantes — cultura, educação, mídia, sindicalismo — sem afetar diretamente a política partidária e o Congresso. Enquanto em toda parte a liberdade de expor idéias antiesquerdistas diminuía semana após semana, o lado “oficial” da política conservava a aparência de diversidade pluralista necessária a desencorajar toda crítica mais aprofundada do estado de coisas.

Porém era fatal que, mais cedo ou mais tarde, implantada a hegemonia em todos os setores circunvizinhos, chegasse a hora de impô-la também na esfera política stricto sensu. A remoção da candidatura Roseana fará do próximo pleito uma cópia exata das eleições estudantis dos anos 60, moldadas segundo a definição marxista da democracia como “centralismo democrático”, isto é, como livre enfrentamento entre facções unidas por princípios ideológicos imunes a qualquer disputa.

Certos acontecimentos significativos, como a fácil destruição política do governador Antonio Carlos Magalhães ou a subida ao Ministério da Justiça de um terrorista impenitente como o sr. Nunes Ferreira, já deveriam ter bastado para mostrar que a presença de uns quantos liberais e conservadores no governo foi apenas uma concessão provisória, destinada a ganhar tempo para a consolidação de laços estratégicos fundados em lealdades históricas bem mais profundas, de acordo com a fórmula da “virada à esquerda” oferecida ao presidente da República, uns anos atrás, pelo seu mestre Alain Touraine.

Mas ganhar tempo não era tudo. O PFL também foi mantido na aliança governista para ser usado como bode expiatório dos erros de um governo que, permanecendo socialista em essência, se deixava identificar como “neoliberal” precisamente para esse fim.

Sob a fachada neoliberal, o governo pôde sustentar com verbas públicas o crescimento da maior organização revolucionária de massas que já existiu neste país, o MST — organização ostensivamente dedicada a treinamento de guerrilhas — sem que ninguém se lembrasse de acusá-lo de esquerdismo por isso, precisamente porque a participação do PFL no Ministério inibia toda crítica “de direita”. Enquanto isso, os ataques vindos da esquerda tinham por alvo justamente o pretenso “neoliberalismo”, acertando não o governo como um todo, mas sobretudo sua ala pefelista. Para tornar as coisas ainda mais cínicas, esses ataques visavam principalmente as privatizações, mas, como estas personificavam estereotipicamente a identidade “neoliberal” do governo, ninguém prestava atenção ao detalhe de que serviam para favorecer, junto com os tão odiados compradores estrangeiros, o próprio MST. Este, de fato, foi recebendo terras e mais terras que, em vez de serem desapropriadas mediante prévia e justa indenização, como exige o texto constitucional, eram pagas com Títulos da Dívida Agrária, papéis de valor duvidoso postos em seguida no mercado e aceitos pelo governo para o pagamento da compra de estatais. À esquerda foi concedido, assim, o invejável e duplo privilégio de poder, ao mesmo tempo, beneficiar-se do desmanche do Estado e condená-lo na mídia com aquela retórica da indignação canina que se tornou, na comédia do auto-engano nacional, o emblema convencional da honestidade e da pureza.

Durante todo esse tempo, a direita liberal deixou-se usar como instrumento da sua própria destruição. Não apenas ofereceu-se gentilmente para o papel do saco de pancadas, mas deixou-se hipnotizar, enfeitiçar e dominar pelo discurso ideológico esquerdista ao ponto de o próprio pai da candidata pefelista, o ex-presidente José Sarney, tornar-se autor de um projeto de quotas raciais que estatui como lei alguns dos mais insanos preconceitos “politicamente corretos” já desmoralizados pela experiência da affirmative action em vários estados americanos. Com essa longa carreira de subserviência oportunista e suicida, não era de espantar que mais dia menos dia o partido mais representativo da crença liberal fosse submetido a algo como a suprema humilhação que acaba de cair sobre sua candidata presidencial.

Só não direi que a curta e feliz existência da esperança chamada Roseana foi o canto de cisne da direita liberal para não ser acusado de elevar, na escala estética das espécies animais, uma facção política que se deixou assar como um pato. Parafraseando Tennyson, direi apenas que, após muitos verões, também os patos morrem.

Talvez o assalto oficial à reputação de Roseana, com todo o cinismo das coincidências inverossimilmente oportunas, sirva também para alertar os liberais para o fato de que há doze anos as iniciativas policiais da inquisição “ética” se voltam sempre contra eles e jamais contra socialistas, comunistas e afins, mesmo quando suspeitíssimos de cumplicidade com a narcoguerrilha das Farc. Diria o ministro da Justiça que é tudo coincidência, pura coincidência, e pode até ser que, por coincidência, haja alguém que acredite no ministro. Afinal, quem acredite na existência de neoliberalismo tucano pode acreditar em qualquer coisa.

Subir ao governo com FH pareceu à direita liberal, na época, um grande feito de esperteza pragmática. Mas que é a esperteza pragmática senão ingenuidade de caipiras, quando comparada a essa jóia de sutileza, de hipocrisia e de fingimento que é a estratégia gramsciana de transição gradual e indolor para o socialismo, estratégia da qual se confessam seguidores e adeptos tanto o presidente da República quanto seus aparentes adversários da esquerda tradicional?

Quando haverão nossos liberais de compreender que uma estratégia socialista abrangente não pode ser enfrentada no varejo, por improvisos eleitorais de última hora, mas requer toda uma estratégia também abrangente, inacessível à estreiteza mental de pragmatistas caipiras?

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