Posts Tagged Nelson Rodrigues

Relendo o JB

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 26 de julho de 2007

Em 26 de dezembro de 1994 publiquei neste mesmo jornal o artigo “Bandidos e Letrados”, que hoje pode ser lido no meu website. Começa assim:

“ Entre as causas do banditismo carioca, há uma que todo o mundo conhece mas jamais é mencionada, porque se tornou tabu: há sessenta anos os nossos escritores e artistas produzem uma cultura de idealização da malandragem, do vício e do crime. Como isto poderia deixar de contribuir, ao menos a longo prazo, para criar uma atmosfera favorável à propagação do banditismo?

“De Capitães da Areia até a novela Guerra sem Fim , passando pelas obras de Amando Fontes, Marques Rebelo, João Antônio, Lêdo Ivo, pelo teatro de Nelson Rodrigues e Chico Buarque, pelos filmes de Roberto Farias, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues, Rogério Sganzerla e não sei mais quantos, a palavra-de-ordem é uma só, repetida em coro de geração em geração… Humanizar a imagem do delinqüente, deformar, caricaturar até os limites do grotesco e da animalidade o cidadão de classe média e alta… eis o mandamento que nossos artistas têm seguido fielmente, e a que um exército de sociólogos, psicólogos e cientistas políticos dá discretamente, na retaguarda, um simulacro de respaldo ‘científico’.”

E por aí vai. Eu gostaria de escrever algo mais atual, mas não posso. Só tenho três detalhes a acrescentar:

Primeiro: É preciso trocar “banditismo carioca” por “banditismo nacional”. O Rio já não é a capital nacional do crime. Divide essa honra com uma dúzia de cidades dominadas pelo narcotráfico e pelas gangues armadas, treinadas e orientadas pelas Farc. O país inteiro tornou-se um matadouro. Cinqüenta mil brasileiros morrem assassinados a cada ano, e quem quer que ouse insinuar que a polícia deveria usar a força contra os assassinos é chamado de nazista.

Segundo: Os intelectuais iluminados continuam fomentando o banditismo, mas já não o fazem só por meio de livros, filmes e novelas. Subiram ao poder e agora têm meios de ação mais eficientes: criam leis, tomam decisões de governo, têm à sua disposição o aparato inteiro do Estado para espalhar o caos e administrá-lo em proveito próprio.

Terceiro: Na época, eu não sabia da existência do Foro de São Paulo, onde os partidos legais de esquerda planejam, em estreita parceria com organizações de narcotraficantes e seqüestradores, o futuro catastrófico do Brasil e do continente inteiro. Quando soube, dois anos depois, entendi imediatamente que nada no panorama nacional de confusão e violência crescentes nascia das causas sócio-econômicas impessoais usualmente alegadas para explicá-lo. Toda a tagarelice universitária e jornalística nesse sentido, invariavelmente obra de intelectuais de esquerda comprometidos até à medula com o esquema do Foro, era — e é ainda — um vasto sistema de camuflagens calculado para encobrir uma estratégia criminosa de proporções jamais vistas nesta ou em qualquer outra parte do mundo.

Mesmo com a visão parcial que eu tinha do assunto ao escrevê-lo, meu artigo de 1994 era um alerta. Não foi ouvido, como este também não será.

Eta povinho bem informado!

Olavo de Carvalho

O Globo, 23 de agosto de 2003

Se é certo aquilo que dizia Nelson Rodrigues, que toda unanimidade é burra, o anti-americanismo das nossas elites falantes é uma das expressões de burrice mais densas, incontestes e admiráveis que o mundo já conheceu. Mal assentada a poeira do atentado ao prédio da ONU, já pululavam em todos os canais de TV os experts de sempre, lançando a culpa de tudo sobre quem? George W. Bush, naturalmente. Não precisaram, para isso, a mínima investigação, não precisaram sequer aguardar uma descrição precisa dos fatos. Com a instantaneidade da ressonância mórfica, os diagnósticos incriminatórios apareceram prontos, definitivos, inapeláveis como demonstrações matemáticas. O script já tinha sido comprado na papelaria fazia meses, faltando apenas pagar o Darj e preencher nos espaços em branco o local do atentado e o número de vítimas. Muito menos foi preciso responder a objeções, que seriam uma intolerável falta de polidez num ambiente de tanta concórdia e interpaparicação carinhosa. No máximo, perguntas pré-calculadas para levantar a bola, armando o gol que, em seguida, os repórteres aplaudiam segundo o formulário litúrgico mais previsível.

No dia seguinte, a versão escrita da cerimônia apareceu, intacta e fiel, em todos os jornais.

Se isso é jornalismo, se isso é livre debate, se isso é circulação de idéias e informações, então os americanos devem ser mesmo muito, muito ignorantes. Pois se a verdade sobre a política deles é conhecida com tanta certeza no Brasil, país em que pouco se lê, cuja contribuição intelectual ao mundo é quase nula e que tem reconhecidamente os estudantes mais ineptos do universo, como é que eles não se dão conta de nada e continuam confiando em George W. Bush? É muita ingenuidade, é muita desinformação, é muita falta de leitura, não é mesmo?

Talvez não seja culpa deles. Talvez sejam uns pobres manipulados. Talvez a imprensa lá esteja sob controle estatal, talvez as empresas jornalísticas sejam poucas e inibidas por dívidas, talvez os repórteres sejam tímidos, talvez não exista sequer, naquele deserto de homens e idéias, um vibrante jornalismo investigativo como aquele que, neste nosso paraíso da livre informação, redescobre ou reinventa semanalmente os crimes da ditadura militar.

Não há um só brasileiro que não saiba, de fonte segura, que os americanos lutam apenas por dinheiro enquanto seus inimigos têm lindos ideais, que Saddam só ficou malvado por culpa do embargo econômico (a mesma causa dos fuzilamentos em Cuba, é claro), que as armas iraquianas de destruição em massa nunca existiram nem muito menos estão na Síria, que três mil iraquianos mortos em combate são uma cifra imensamente mais chocante do que trezentos mil prisioneiros políticos mortos nos cárceres de Bagdá antes da invasão.

Nós, brasileiros, sabemos de tudo. Às vezes, é claro, falhamos. Errare humanum est. Se procurarmos nos nossos jornais a expressão “Foro de São Paulo”, não a encontraremos, embora ela seja o nome da organização internacional comunista que decide os rumos da política neste país. Se procurarmos uma transcrição do manifesto assinado em 2001 pelo nosso atual presidente em favor das Farc, não o encontraremos. Se vasculharmos as edições dos últimos dez anos em busca de uma menção, mesmo breve, à matança sistemática de cristãos nos países comunistas e muçulmanos, nada encontraremos. Se revirarmos jornais e revistas em busca de alguma informação sobre os milhares de proprietários rurais trucidados pelos governos do Zimbábue e da África do Sul, nada. Se buscarmos uma palavrinha sobre a produção em massa de transgênicos em Cuba, nada. Se quisermos uma dica sobre as conexões entre neonazismo e anti-americanismo internacional, nada. Lendo toneladas de jornais brasileiros, jamais ficaremos sabendo que a liberação das drogas aumentou a criminalidade na Holanda e na Suíça, que o massacre de crianças cuja culpa o filme de Michael Moore atribui à fabricação de armas foi motivado por ódio anticristão, que o desarmamento civil foi uma experiência desastrosa que Israel abandonou, que reformas agrárias socialistas produziram a atual miséria africana, que as tais ONGs que atentam contra a soberania nacional na Amazônia não são americanas mas todas elas ligadas ao establishment mundial anti-Washington. Sobretudo, jamais ficaremos sabendo se é verdade ou não que a campanha eleitoral do PT em 2002 foi subsidiada pelas Farc, pois os jornalistas investigativos brasileiros jamais seriam indiscretos ao ponto de querer tirar a limpo essa denúncia insolente do deputado Alberto Fraga.

Mas quem precisa saber desses detalhes desprezíveis? O essencial, o importante, não nos escapa. Sabemos que George W. Bush é Adolf Hitler, que a violência carioca é causada pelo capitalismo, que os gays são a minoria mais oprimida do planeta, que a população brasileira é maciçamente racista, que defender uma propriedade contra invasores é mais criminoso do que invadi-la, que Mel Gibson é anti-semita e que o sr. presidente da República tem dons miraculosos que lhe permitem conhecer tudo sem estudar nada. Sabemos que na Colômbia não existem terroristas, apenas combatentes pela liberdade em luta contra um governo tiranicamente eleito pelo povo. Sabemos que na Amazônia não há um só narcotraficante das Farc mas milhares de soldados americanos. Sabemos, principalmente, que quem quer que negue algumas dessas verdades é um bêbado, um alucinado ou um nazista. Tudo isso nos é ensinado pela nossa mídia. É certo que tudo, ou quase tudo, é repetido também nos manuais escolares do ensino público, no parlamento, em cursos universitários e numa infinidade de livros, atestando a pujança da nossa cultura. Mas quem ousará criticar, como suplérflua, a repetição de verdades tão fundamentais? E como poderia um país inteiro enganar-se nessas coisas, com o belo pluralismo de idéias que impera na nossa mídia, nas nossas universidades, por toda parte enfim do mundo verde-amarelo? Enganados, sim, estão os americanos. Lá ninguém discute nada, ninguém diverge, ninguém investiga. É um amém geral, da Nova Inglaterra à Califórnia. Ao menos, faço votos de que o leitor continue acreditando nisso, para que não sofra o choque de perceber o estado de apartheidintelectual que se interpôs entre o Brasil e o mundo.

Ainda a arte de escrever

Olavo de Carvalho

O Globo, 19 de maio de 2001

Como eu vinha dizendo que imitar é o melhor jeito de aprender a escrever, muitos leitores, com razão, sentiram-se no direito de me perguntar quem imitei. Ao longo da vida, fiz muitos exercícios de imitação. Não publiquei nenhum, é claro, nem os guardei. Mas ainda ressoam no que escrevo — aos meus próprios ouvidos, pelo menos — as vozes dos mestres que escolhi.

Os principais foram, entre os clássicos da língua portuguesa, Camões, Antônio Ferreira, Fernão Mendes Pinto, Camilo e Euclides. Machado foi um deleite, não um aprendizado. Nunca o imitei conscientemente, porque, malgrado a devoção que lhe tenho, as diferenças de personalidade entre nós são demasiado fundas. Não consigo me conceber tímido, recatado, elegante e, ademais, funcionário público.

Mas com facilidade me imagino um navegante e aventureiro como os nossos clássicos renascentistas, um polemista doido “doublé” de metafísico como Camilo, um misto de cientista e repórter como Euclides.

A empatia, no aprendizado por imitação, é tudo. Por isto cada um tem de escolher seus modelos.

Os meus entram aqui como simples amostras. Do Eça, para dizer a verdade, jamais gostei muito. Ele escreve tão gostoso porque seu pensamento é fácil, leviano, sem densidade ou luta interior. Não me lembro de ter voltado jamais a uma página sua. Pessoa, tanto quanto Machado, foi um amor impossível. Ele é maravilhoso, mas eu jamais desejaria ser esse sombrio professor de inglês, todo encapotado no mistério e sem ânimo de decifrá-lo.

Também nada devo literariamente a Bruno Tolentino, malgrado a amizade e a admiração sem reservas que tenho por ele.

O fator que nos separa é sociológico. Brega por origem e vocação, não posso me identificar com as raízes culturais — portanto, nem com o tônus verbal — de um rapaz de família célebre, parente de meio mundo, criado entre literatos.

Fui amigo e devoto discípulo de Herberto Sales. A primeira visão que tive dele foi a de um velho mulato gorducho, sentado a um canto no lobby do Hotel Glória com um livro e um caderninho. O livro era um volume de Proust. No caderninho Herberto anotava, com uma caligrafia miúda, as soluções verbais que pudesse aproveitar. Poucos autores brasileiros, dizia Otto Maria Carpeaux, tiveram uma consciência artística tão desperta, tão aguda, tão esforçada quanto Herberto Sales.

Aprendi também com o próprio Carpeaux, do qual li praticamente tudo o que publicou em português. Ele não era um visual, mas um auditivo. Não nos fazia ver as coisas, mas adivinhá-las pela sua repercussão em épocas e almas. Ele tinha a arte camerística de, num breve artigo, introduzir sutilmente um tema, desenvolvê-lo, fazê-lo ressoar em muitas oitavas e resolvê-lo rapidamente, nas linhas finais, com uma “coda” abrupta e estonteante. Ninguém, entre nós, dominou como ele a técnica do ensaio breve, condensação poética de controvérsias científicas enormemente complexas.

A Nelson Rodrigues também devo muito. Dois títulos condensam toda a sua arte de escrever: “A vida como ela é” e “O óbvio ululante”. O segredo do seu estilo é a audácia de dizer as coisas da maneira mais direta e corriqueira, transfigurando o prosaico em símbolo. Não encontro coisa similar senão em Pío Baroja e Julien Green, embora neste sem nada do cinismo de Nelson, naquele com um cinismo diferente, mais frio e resignado.

Mas a arte de resumir todo um argumento numa frase breve, de impacto brutal — que tantos me condenam como se fosse prova de não sei que sentimentos ruins — aprendi mesmo foi com três santos: S. Paulo Apóstolo, Sto. Agostinho e S. Bernardo. Tudo tem um preço. Ninguém pode imitar os santos, nem mesmo em literatura, sem escandalizar uma intelectualidade pó-de-arroz.

Dos autores estrangeiros do século XX, além de Baroja e Green, os que mais me ensinaram foram Ortega y Gasset e Bernanos. Ortega é de longe o maior prosador da língua espanhola, sem similares nela ou em qualquer outra pela sua força de fazer ver aquilo de que fala. Na verdade, mais que fazer ver. Ele próprio comparava a força aliciante do seu estilo a um punho que saltasse da página e agarrasse o leitor pela goela, obrigando-o a envolver-se na discussão como se fosse problema pessoal. Efeito parecido despertam as páginas de Bernanos, mas com um “pathos” de moralista encolerizado que falta por completo ao amável e gentil Ortega.

Como escritor de livros de filosofia tive de passar também pelos problemas da exposição filosófica, mais complexos, do ponto de vista técnico-literário, do que em geral se imagina. Para mim, o maior expositor filosófico de todos os tempos (não o maior filósofo, é claro) foi Éric Weil. Nos seus escritos, a construção abstrata eleva-se às alturas de uma realização estética, mas de uma estética que, em vez de se superpor como um adorno ao pensamento conceitual, é encarnação direta do próprio espírito filosófico. A força do seu estilo é a beleza da razão quando alcança o plano mais alto da pura necessidade metafísica. Apenas, para apreciá-la, é preciso ter desenvolvido o senso dessa necessidade, que falta por completo às mentes grosseiras, divididas entre o caos empírico e o formalismo lógico vazio. A estas o vigor da prova pode dar a impressão de um autoritarismo dogmático, de uma imposição da vontade, quando ela vem precisamente do contrário, da total rendição da vontade ante aquilo que, simplesmente, é o que é.

Virtudes similares, em grau menor, encontro em Edmund Husserl e Louis Lavelle, com a ressalva de que este insiste demais no que já demonstrou e aquele abusa dos termos técnicos em prol da brevidade que, como já dizia Horácio, se opõe à clareza.

O grande expositor filosófico nada tem de “didático”. A filosofia, sendo educação em sua mais íntima essência, é por isto mesmo metadidática, não havendo nela a possibilidade de uma seriação graduada do mais fácil para o mais difícil. Em filosofia a melhor maneira de dizer é aquela que encarne da maneira mais direta e fiel o próprio método filosófico, e o método filosófico melhor é o que mais eficazmente apreenda a coisa da qual se fala, sem nada acrescentar à sua simplicidade ou subtrair da sua complexidade. Não se pode falar legitimamente de filosofia senão desde um ponto de vista filosófico. Não há quadro de referência externo desde o qual se possa “compreender” uma filosofia, pela simples razão de que a filosofia é a arte de montar os quadros de referência de toda compreensão. Por isso, a “divulgação filosófica” acaba sendo, quase sempre, fraude; e os melhores escritos filosóficos quase nunca parecem bons a quem os julgue de fora, com critérios unilateralmente “literários”.

Veja todos os arquivos por ano