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Reale ante os medíocres

 

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 21 de dezembro de 2000

Ao longo dos últimos anos, Miguel Reale raramente foi mencionado nos jornais ou na tevê sem que viesse à baila, de novo e de novo, obsessivamente, sua ligação de juventude com o integralismo. Recentemente, nas comemorações de seus 90 anos, o grande jurista e filósofo foi submetido mais algumas vezes a esse ritual humilhante e insensato.

O integralismo foi um fascismo abrandado e inofensivo, um ultranacionalismo sem racismo, que celebrava a glória de índios, negros e caboclos. Entre os líderes do movimento havia, é verdade, um anti-semita declarado, o excêntrico historiador e cronista Gustavo Barroso, maluco não desprovido de talento, várias vezes presidente da Academia Brasileira. Mas, quando começou para valer a perseguição aos judeus na Alemanha e todos os bem-pensantes do mundo fizeram vistas grossas, foi do chefe supremo do integralismo, Plínio Salgado, que partiu uma das primeiras mensagens de protesto que chegaram à mesa do Führer (e na certa foi direto para o lixo). Se os educadores deste país tivessem vergonha na cara, esse feito quixotesco seria alardeado com orgulho em todas as escolas – não por seus efeitos políticos, que foram nulos, mas como símbolo do espírito de um povo que nunca deixou seus melhores sentimentos serem sacrificados no altar de fanatismos ideológicos.

Em vez disso, tratamos de escondê-lo, para dar a criaturas inocentes e honradas o ar sinistro de cúmplices de Hitler. Fazemos isso sob a inspiração de educadores e intelectuais comunistas, que precisam mentir e caluniar o tempo todo para disfarçar a co-autoria comunista de muitos dos crimes do nazismo entre 1933 e 1941.

Os escritos de Plínio hoje nos parecem melosos e de um hiperbolismo delirante. Politicamente, seu único pecado é a completa tolice. Moralmente, são inatacáveis. Ademais, o integralismo era católico – e sob o nazismo os católicos, convém não esquecer, eram o terceiro grupo na lista dos candidatos ao campo de concentração, depois dos judeus e dos politicamente inconvenientes (v. Robert Royal, Catholic Martyrs of the XXth Century, New York, Crossroad, 2000).

Que vergonha existe em ter seguido esse líder? Nenhuma, evidentemente.

Porém, se um homem é induzido a explicar isso de novo e de novo e de novo, como um suspeito num interrogatório policial, ele acabará sempre dando a impressão de que está escondendo alguma coisa. E é essa impressão que nossos solícitos repórteres esquerdistas buscam criar em torno de Miguel Reale.

Ninguém no mundo merece esse tratamento. Mas quando a intelectualidade bem-pensante se reúne para aplicá-lo a um sábio nonagenário a quem a Nação deve algumas de suas maiores conquistas no campo das ciências humanas, então é de suspeitar que estamos diante da velha conspiração dos medíocres que enxergam no gênio alheio a mais intolerável das afrontas.

No entanto, como a loucura de Hamlet, essa mediocridade tem método. A malícia, a perversidade e a baixeza do seu ardil, cujo uso se tornou institucional ao ponto de a breve militância integralista ser mais destacada na imagem pública de Miguel Reale do que as seis décadas e meia de formidáveis realizações intelectuais que se lhe seguiram, mostram a que ponto não só as idéias comunistas, mas até os hábitos e reflexos da mente comunista se impregnaram no modo de ser dos nossos jornalistas e da nossa classe letrada em geral.

Mesmo pessoas que já não aprovam conscientemente o marxismo são presas desses hábitos. Após 40 anos seguidos de “trabalho de base” nas redações, sem encontrar a menor resistência, os comunistas conseguiram impor seus critérios ideológicos como se fossem a única norma existente, a única norma possível do bom jornalismo. Se nossa imprensa não sabe falar de Miguel Reale sem uma genuflexão prévia ante o altar dos preconceitos esquerdistas, é simplesmente porque, nisso como em tudo o mais, ela simplesmente se habituou à troca rotineira da informação pela desinformação. Hoje em dia, milhares de jornalistas que de comunistas não têm nada subscreveriam com a maior tranqüilidade a seguinte declaração: “A missão da imprensa é minar, pela crítica, as instituições vigentes” – sem saber que a frase é de Karl Marx e que ela não é uma receita de jornalismo e sim de revolução comunista. Por isso, quando pensam estar fazendo jornalismo, estão apenas ajudando o comunismo a sair do túmulo e a colocar em seu lugar, no jazigo vazio, o Brasil.

Por ter escapado a esse cacoete vulgar, atendo-se a discutir a obra do filósofo no plano que lhe corresponde autenticamente, o caderno especial do JT consagrado a Miguel Reale, semanas atrás, se destacou como um momento especialmente nobre na história do nosso jornalismo, à altura, pelo menos, da nobreza do homenageado.

Um lindo pretexto para ignorar a verdade

Olavo de Carvalho

O Globo, 27 de maio de 2000

“O pensador ideológico cria uma linguagem
para expressar não a realidade,
mas a sua alienação dela.” (Eric Voegelin)

O mais lindo pretexto dos céticos, relativistas e pragmatistas para advogar uma noção puramente funcional ou operacional da verdade é que a verdade certa e provada faz mal à saúde política da democracia. Se um sujeito está persuadido de que conhece a verdade, ele não tem a menor tolerância para com a opinião adversa. É o que eles alegam. Daí partem para provar a impossibilidade de provar o que quer que seja, proclamando que o mundo só será feliz quando todas as teorias se neutralizarem umas às outras e a humanidade reconhecer que não existem verda­des, apenas ficções úteis e provisórias. Suprimido o critério de veracidade, todas as idéias terão direitos iguais. Será a democracia perfeita.

A mente habituada a julgar as afirmações pelo valor nominal aceita mais que depressa essa esperançosa conclusão, lisonjeada ademais pela perspectiva de que suas próprias opiniões, sendo tão úteis e provisórias quanto quaisquer outras, vale­rão o mesmo que as de Aristóteles ou Leibniz.

Mas, contra esse persuasivo arranjo de aparências, resta o fato brutal de que, dos dois grandes totalitarismos do século, comunismo e nazismo, nenhum acredi­tou na existência da verdade objetiva ou na possibilidade de conhecê-la. Bem ao contrário, estavam ambos convictos de que as idéias não são instrumentos para co­nhecer a realidade e sim para transformá-la. Karl Marx diz explicitamente isso nas famosas “Teses sobre Feuerbach”. Uma das mais excêntricas peculiaridades inte­lectuais do marxismo é justamente que sua visão da história declara não poder ser compreendida desde fora e pelo puro exame teorético: para captar suas insondáveis profundidades o sujeito tem de primeiro aderir à causa do proletariado e, partici­pando das lutas proletárias, apreender o processo revolucionário no próprio curso dialético da ação que o produz. Ao proclamar que a luta de classes é inseparavel­mente uma teoria científica e a regra prática da ação revolucionária, Marx perverte a noção mesma de “teoria científica”, que, de instrumento de síntese intelectual dos dados objetivos, se torna o meio de produzir ou modificar esses dados para que retroativamente coincidam com a teoria. Ninguém compreendeu isso melhor do que Lênin, quando descobriu que podia fazer uma revolução proletária num país sem proletariado: bastava que uma elite se autonomeasse representante dos proletá­rios futuros, tomasse o poder e em seguida criasse um proletariado.

Ainda mais descaradamente instrumental e pragmatista era a noção de ver­dade de Adolf Hitler. Ele disse a Hermann Rauschning (Conversações com Hitler, 1940): “Sei perfeitamente que, num sentido científico, não existem raças… Mas, como político, preciso de um conceito que me permita dissolver a ordem es­tabele­cida e impor em seu lugar uma ordem totalmente nova.” É o espírito de Karl Marx que baixou no terreiro: não se trata de descrever o mundo, mas de transformá-lo.

Quem acredita em verdade objetiva busca encontrar uma e prová-la. Aquele que reduz a verdade a um instrumento para transformar o mundo não tem de provar nada: tem apenas de dar cabo de quem fique atravessado no caminho da transformação.

24/01/00

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