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Mutação súbita

Olavo de Carvalho

Época, 25 de agosto de 2001

Da noite para o dia, o Brasil entra numa nova ordem legal

O MST confessa possuir espiões infiltrados nos altos escalões da administração federal, e ninguém vê nisso nada de mais. O governador do Rio Grande do Sul tem contatos secretos com os narcoguerrilheiros das Farc, e ninguém comete sequer a indelicadeza de lhe perguntar o que conversa com eles a portas fechadas.

A CUT admite ter em sua folha de pagamentos várias centenas de jornalistas, e ninguém vê nisso uma compra de consciências. A mesma organização infiltra agentes na Polícia Federal para transformá-la num núcleo de rebelião, e ninguém a acusa de fomentar a quebra da ordem jurídica.

Procuradores que se apossam de documentos sigilosos do Exército, num inquérito conduzido oficialmente “sob segredo de Justiça”, convidam jornalistas de esquerda a violar o segredo, e ninguém enxerga aí a mínima esquisitice.

O PT coloca em sua presidência um ex-agente secreto de Cuba, e ninguém sequer pergunta quantos minutos duraria o registro legal de um partido de direita que escolhesse para presidente um espião aposentado da CIA. Parlamentares petistas brilham nas CPIs exibindo informações que não poderiam ter sido obtidas por nenhum meio legal concebível, e ninguém se lembra de acusá-los de espionagem política.

Jornalistas de esquerda grampeiam telefones, vasculham contas bancárias, furam por todos os meios a privacidade daqueles a quem desejam destruir, e ninguém vê nisso nada de especialmente escandaloso.

ONGs e partidos facilitam o ingresso ilegal de representantes das Farc nas escolas para ensinarem uma ideologia genocida às crianças brasileiras, e ninguém se lembra de acusá-los nem mesmo de falta de polidez.

Toda a esquerda espiona, grampeia, usa informações sigilosas para arrasar as carreiras de seus adversários, e a ninguém ocorre acusá-la de usurpar as funções dos órgãos de segurança do Estado.

Mas que o Exército, no estrito cumprimento de seu dever constitucional, investigue alguma dessas atividades ilegais, e pronto! Escândalo! Horror! Denúncias patéticas espalham-se por toda a mídia. Na TV, os comentaristas profetizam o iminente “retorno aos Anos de Chumbo”. No Congresso, parlamentares indignados pressionam o comandante da força terrestre a pedir desculpas.

Que ninguém tenha dúvidas: o escândalo armado por procuradores do Pará e jornalistas de São Paulo em torno das investigações empreendidas pelo Exército em Marabá não é apenas mais um capítulo da longa campanha de difamação antimilitar com que os terroristas anistiados recusam a anistia àqueles que os anistiaram.

Ela é um esboço de golpe de Estado, destinado a oficializar no Brasil, da noite para o dia, uma nova ordem legal, na qual a propaganda e preparação de guerrilhas e a espionagem esquerdista serão atividades lícitas, colocadas sob a proteção estatal, e qualquer tentativa de se opor a elas será condenada como imoral e criminosa.

Ela é uma operação de guerra de informações, destinada a criminalizar e bloquear antecipadamente qualquer iniciativa das Forças Armadas contra os que ameacem transformar o Brasil numa Colômbia.

Excluído o Exército das investigações antiguerrilha, o acesso a informações sobre movimentos revolucionários será monopólio dos partidos e entidades de esquerda mais diretamente envolvidos com esses movimentos.

A raposa assumirá, além de suas atuais funções de guarda, o serviço secreto do galinheiro. Foi exatamente assim que Hitler, pondo as Forças Armadas de joelhos por meio do escândalo e da pressão midiática, transferiu para seu partido o controle dos serviços de inteligência.

Nunca, neste país, se deu um passo tão gigantesco no sentido de realizar a promessa de Fidel Castro, de “reconquistar na América Latina o que foi perdido no Leste Europeu”.

Filósofos a granel

Olavo de Carvalho

Época, 7 de julho de 2001

É tanta cultura que eles já não agüentam: precisam reparti-la

Sob a coordenação do professor Lejeune Mato Grosso Xavier de Carvalho, presidente da Federação Nacional dos Sociólogos, um lobby de proporções colossais, constituído de sindicatos, associações estudantis, sociedades científicas, CUT, OAB, Contag, CNBB e não sei mais quantas instituições, está sendo organizado para pressionar o Senado a aprovar o projeto de lei que torna obrigatório, nas 17 mil escolas de ensino médio do país, o ensino de sociologia e filosofia.

O próximo passo da luta, segundo o professor Lejeune, será “a mobilização total nos cursos, CAs, congregações, departamentos, reitorias e entidades correlatas”. Essas entidades deverão: (a) produzir uma chuva de e-mails sobre os senadores; (b) exercer pressão direta sobre “FHC, Weffort, Moisés, Wilmar Faria e outros do alto escalão do governo”; (c) agitar a massa estudantil para que ocupe as ruas e faça caravanas a Brasília; (d) abrir espaço na mídia e municiá-la de informações favoráveis ao projeto. É uma campanha das dimensões das Diretas Já. Mas aí se tratava de luta política, que facilmente desperta as paixões da massa angustiada. Um observador extraplanetário ficaria comovido até às lágrimas de ver tão poderosas forças agitando-se em vista de um objetivo puramente cultural e pedagógico.

Tamanha vontade de ensinar tem, no entanto, algo de estranho. O professor Lejeune entusiasma-se sobretudo com a mobilização dos filósofos – pilhas e pilhas de filósofos, massas de filósofos. Ao ouvi-lo, damos por fato consumado que, no momento presente, pelo menos 17 mil deles se encontram tão repletos de conhecimentos filosóficos que, se não os derramarem sobre as cabeças juvenis, explodirão de pletora intelectual.

O país que tem 17 mil filósofos prontinhos para ensinar é, decerto, o mais culto do mundo. É de fato uma injustiça que tanta cultura fique retida na geração mais velha, sem ser repassada aos jovens.

Por isso mesmo o professor Lejeune repele, como procrastinação odiosa, qualquer tentativa de discutir, antes da aprovação da lei, o conteúdo a ser ensinado nas novas disciplinas. Para que discutir, se ele, Lejeune Mato Grosso em pessoa, já sabe esse conteúdo de trás para diante? Eis como ele o resume: sociologia e filosofia consistem em fazer o aluno “entender seu mundo, a realidade que o cerca, as classes e as lutas de classe, o papel do Estado e modos de produção” (sic).

Que haja 17 mil pessoas habilitadas a ensinar essas coisas, eis algo de que não se pode mesmo duvidar. Na verdade há mais. Milhões de militantes da CUT, do PT e do MST estão convictos de que a realidade que os cerca se constitui, essencialmente, de luta de classes. Trata-se apenas de tornar esse discurso obrigatório para os alunos de 17 mil estabelecimentos de ensino.

A coisa é simples, direta e brutal. Portanto, nada de discussões. Sociologia e filosofia já!

O professor Lejeune vaticina que isso será “a maior das revoluções”. Tem razão: desde os tempos de Stalin, jamais tamanha rede de difusão foi colocada, com dinheiro do governo, à disposição da propaganda comunista. Tal é, pois, o motivo da mobilização, que só um extraplanetário explicaria de outra forma.

Não sou ninguém para contestar uma assembléia inteira de sábios e educadores, encabeçada por 17 mil filósofos. Cá com meus botões pergunto quantos deles agüentariam dez minutos de debate sobre as categorias de Aristóteles ou as formas a priori de Kant. Mas isso, obviamente, não vem ao caso. O que lhes incumbe ensinar eles já o sabem de cor e salteado. Aliás, quem não sabe?

Resta apenas perguntar se, contra a formidável pressão organizada, os pais que não desejem ver seus filhos amestrados na doutrina da luta de classes terão a coragem de enviar pelo menos umas tímidas cartinhas de protesto ao Senado. Se não a tiverem, ótimo: é sinal de que o Brasil está maduro para a filosofia do professor Lejeune.

Entrevistando meu vizinho

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 17 de junho de 2001

NB – Aviso à parte não gaúcha do universo: o sr. Luiz Inácio Lula da Silva é, tanto quanto eu, articulista da Zero Hora de Porto Alegre. Por uma ironia involuntária da diagramação, seu artigo é sempre publicado nas costas do meu. – O. de C.

         Meu vizinho aí da página de trás, que nela desfruta as delícias da liberdade de imprensa como eu as desfruto aqui, é, como ninguém ignora, candidato crônico à presidência da República e corre o sério risco de ser eleito – um mal que, se aconteceu até a um professor da USP, pode acontecer a qualquer um de nós.

         Em vista dessa eventualidade, pensei se não seria o caso de tirar um sórdido proveito da proximidade quase indecorosa que nos une na mesma folha de papel e lançar-lhe de chofre, através desta tênue barreira de celulose, umas quantas perguntas que, se ele não me responder agora, muito menos responderá depois de eleito.

         A primeira é formulada no meu interesse próprio. Prezado sr. Ignácio: uma vez presidente, o senhor vai deixar que eu continue escrevendo que o senhor é um comunista, bajulador de regimes genocidas, friamente insensível à sorte de cem milhões de vítimas imoladas no altar de uma ideologia bem parecida com a sua, ou vou ter de mudar de assunto?

         A segunda, faço-a no interesse geral. O senhor, que é socialista, já disse que nada tem contra o capital estrangeiro. Lênin, que não o era menos, também não tinha. Muito menos têm os atuais governantes da China, que provaram por a + b a compatibilidade de uma sangrenta ditadura comunista com os interesses dos grandes investidores ocidentais e vice-versa. Quando o senhor diz que o regime da China é um exemplo para o Brasil, é disso que o senhor está falando? Se não é, então a que raio de China está se referindo? Existe outra?

         Terceira. Quando uns militantes da CUT quiseram atravessar a fronteira para fazer manifestações políticas ilegais em solo argentino e foram barrados na fronteira, choveram protestos da esquerda nacional. Agora, quando foram barrados os dez jornalistas que o acompanhavam à China para o simples desempenho de suas legalíssimas funções profissionais, tudo o que o senhor fez foi lamentar a falta de cobertura da sua viagem, sem emitir um pio, um gemido, uma “ai” sequer contra o ostensivo cerceamento da liberdade de imprensa. O senhor já pensou no que aconteceria se os repórteres fossem impedidos de entrar, não na China comunista, mas no Chile de Pinochet? Já imaginou os editoriais coléricos, as lágrimas de indignação, as vigílias cívicas na ABI? Já imaginou, sobretudo, o que o senhor próprio diria, mesmo levando em conta que a proporção entre os crimes de Pinochet e os do regime chinês é de um para vinte mil? O senhor não acha mesmo que sua duplicidade de pesos e medidas já está dando na vista?

         Quarta. Vamos falar um pouco do seu virtual antecessor. O senhor sabe que o papel dos governantes na história não é assinalado por seus erros ou acertos passageiros, mas pelas mudanças duradouras que imprimem no rumo das coisas. O senhor sabe que o controle da inflação, que o governo alardeia como sua grande obra, é coisa efêmera como bolha de sabão. Sabe que as privatizações mal feitas ou uma política econômica errada de alto a baixo também são males transitórios, podendo ser corrigidos pelo próximo governo. De tudo o que FHC fez, só uma coisa é irreversível: a distribuição de terras e dinheiro ao MST, que esse movimento não vai devolver nunca mais. O senhor sabe perfeitamente que, se o MST não plantar aí um único pé de feijão, mas decidir usar as terras para fins estratégicos totalmente alheios à agricultura, o governo não terá a mínima condição de tomar tudo de volta, pois ele próprio transformou essa entidade, que não tem nem registro legal, num poder territorial, político e econômico incontrolável. O senhor sabe que, pela sua própria estrutura – nem sindical, nem partidária, nem paramilitar, nem empresarial, nem burocrática, mas sim um pouco de tudo isso ao mesmo tempo –, esse movimento é rigorosamente indiscernível dos sovietes da Rússia pré-revolucionária. Dar poder a essa coisa, com as terras dos outros e o dinheiro do governo, foi no fim das contas a realização máxima e essencial do presidente FHC. Dito isto, vem a pergunta: o senhor acha que poderá fazer mais do que ele fez em prol da revolução socialista? Olhe lá o que vai responder! Veja bem que nem Lênin teve na sua folha de realizações um feito de tal envergadura, pois afinal já encontrou os sovietes prontos. O senhor tem certeza de que uma gestão socialista “de transição pacífica” depois de FHC não será um redundante video-tape?

         São essas as perguntas. Peço que o senhor não as interprete como provocações de um adversário. Não sou seu adversário. Até votei no senhor – é verdade que após tomar três engoves – para não ter de votar no Collor. Talvez até vote de novo, nas próximas eleições, dado que seu concorrente principal, José Serra, é um antitabagista fanático que ameaça proibir o fumo até ao ar livre, e eu conto com a sólida aliança de interesses entre o petismo nacional e a indústria cubana de tabacos para me garantir o direito de fumar na cadeia.

         Dito isso, encerro esta nossa amável conversa e dirijo-me aos demais leitores, para tranqüilizá-los. Não, amigos, não temam pela minha segurança. No Brasil socialista, a cadeia será provavelmente o lugar mais seguro, pois todos os membros do PCC terão sido retirados de lá para ocupar cargos na “nomenklatura”, e a população carcerária do país será constituída de apenas duas pessoas: eu e o embaixador Meira Penna. E o embaixador, coitado, nem sequer fuma.

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