Posts Tagged mídia brasileira

A vingança de Aristóteles

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 4 de março de 2014

          

Se você frequentou alguma dessas curiosas instituições que no Brasil se chamam “escolas”, com certeza aprendeu que na Renascença o pensamento moderno dissipou as trevas medievais, colocando a ciência no lugar de uma névoa de superstições e crendices, como a magia, a alquimia e a astrologia. Se chegou à universidade, então, adquiriu a certeza absoluta de que foi isso o que aconteceu.

Pois é, aprendeu tudo errado. O assalto moderno ao pensamento escolástico predominante na Idade Média começou justamente trazendo de volta as práticas mágicas que a escolástica havia expulsado dos domínios da alta cultura.

Os pioneiros da modernidade – Tommaso Campanella, Giordano Bruno, Pietro Pomponazzi, Lucilio Vanini, entre outros – não só eram crentes devotos das artes mágicas, mas sua revolta contra a escolástica baseou-se essencialmente no desejo de colocá-las de novo no centro e no topo da concepção do mundo.

O advento da física matematizante e mecanicista de Descartes e Mersenne, em seguida, voltou-se muito menos contra a escolástica do que contra essa primeira leva de pensadores modernos, e nesse empreendimento serviu-se amplamente de argumentos aprendidos da escolástica.

A única diferença substantiva entre o mecanicismo de Descartes-Newton e a escolástica é que esta última, seguindo Aristóteles, não apostava muito no método matemático, cujo repentino sucesso a pegou desprevenida e desarmada.

A física aristotélico-escolástica era baseada nas qualidades sensíveis dos corpos, das quais ela obtinha, por abstração, os seus conceitos gerais. A ciência moderna desinteressou-se da “natureza” dos corpos e concentrou-se no estudo das suas propriedades mensuráveis. Daí resultou a concepção mecanicista, na qual todos os processos naturais se reduziam, em última análise, a movimentos locais e obedeciam a proporções matemáticas universalmente válidas.

No mais, o mecanicismo cartesiano concordava em praticamente tudo com a escolástica, especialmente no tocante às provas da existência de Deus e da alma, bem como à liberdade humana.

Hoje sabe-se que Descartes e seu amigo Marin Mersenne não estavam interessados em destruir a escolástica, mas em salvá-la da contaminação mágico-naturalista para a qual a antiga física das “qualidades” deixava o flanco aberto.

O mundo, porém, dá voltas. Aristóteles não levava a sério o método matemático porque não acreditava que nada na natureza se conformasse exatamente a qualquer medição ou regularidade inflexível. Para ele, o método certo para o estudo da natureza era a dialética, que não leva a conclusões lógicas perfeitas e acabadas, mas somente a probabilidades razoáveis.

O desenvolvimento da física quântica, no século 20, mostrou que as leis inflexíveis da física newtoniana só valiam para o quadro das aparências macroscópicas, mas que a matéria, na sua constituição mais íntima, admitia irregularidades e imprevistos que só podiam ser apreendidos numa ótica probabilística.

Aristóteles, portanto, não estava realmente errado. Apenas ele não tinha os instrumentos matemáticos para expressar numa linguagem quantitativa a sua noção de um universo probabilístico. Esses instrumentos, por ironia, vieram a ser criados justamente pela ciência moderna que desbancou temporariamente a física aristotélica. Sem a arte do cálculo, descoberta por Newton e Leibniz, a física quântica seria impossível, mas desde o advento desta última o abismo que separava o probabilismo aristotélico da física matematizante foi transposto. Um pouco mais adiante, uma releitura mais atenta da Física de Aristóteles mostrou nela, por baixo de erros de detalhe (por exemplo, quanto às órbitas planetárias), uma metodologia científica geral bastante fecunda e compatível com as exigências modernas. Na celebração dos 2400 anos do seu nascimento, em 1991, Aristóteles provou que ainda era até mais popular entre os cientistas do que entre os filósofos de ofício.

E, no seu livro O Enigma Quântico, o físico Wolfgang Smith demonstrou que todas as chaves conceptuais para uma fundamentação filosófica da física quântica já estavam dadas com séculos de antecedência na escolástica de Santo Tomás de Aquino. Era a vingança completa.

Não há um só historiador das ciências, hoje em dia, que ignore que foi exatamente assim que as coisas se passaram. Contudo, nas universidades brasileiras, parece que essas novidades velhas de meio século ainda não chegaram.

***
A mídia brasileira, a mesma que escondeu por dezesseis anos a existência da mais poderosa organização política que já existiu no continente, levou mais de uma semana para admitir a realidade do massacre que estava e está ocorrendo na Venezuela, e mesmo assim o noticiou com discrição monstruosamente desproporcional com a gravidade dos acontecimentos. Acreditar que a Folha, O Globo e o Estadão pratiquem algo que mereça mesmo figuradamente o nome de “jornalismo” é apenas superstição residual. É a perna que continua se mexendo depois que o sapo morreu. Prefiro ouvir a www.radiovox.org.

***
Fingindo provar o que dissera, o sr. Leandro Dias, aqui refutado em recente artigo, colocou na Carta Capital três links de textos meus, na clara expectativa de que o leitor se satisfizesse com isso e não fosse averiguá-los – pois em nenhum dos três havia a menor menção ao sr. George Soros como “marxista cultural”, que ele me atribuía. Proponho a mudança do nome da revista para Carta Capetal.

Nada é o que é

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 14 de novembro de 2004

Durante toda a campanha eleitoral americana, os conservadores acusaram John Kerry de ter tido encontros secretos com terroristas vietcongues. Tratada como invencionice pela grande mídia, a denúncia, de fato, não tinha provas. A única prova possível era um diário de guerra que o candidato democrata se recusava a divulgar, alegando ter passado os direitos autorais do texto a seu biógrafo Douglas Brinkely. Embora Brinkely informasse que não tinha direito autoral nenhum, o episódio foi dado por encerrado.

Logo após as eleições, o documento apareceu finalmente na Newsweek, trazendo a comprovação integral da denúncia. Se a notícia saísse apenas cinco dias antes, os votos de Kerry teriam encolhido muito. Quando um culpado de crime de alta traição é poupado até mesmo de danos à sua imagem eleitoral, é porque a lei e a própria segurança nacional já não significam nada para os que querem colocar o traidor na presidência do seu país.

Um dos principais tópicos da agenda Kerry era submeter os EUA à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, o instrumento mais devastador que já se inventou para suprimir toda veleidade de independência das nações. Não perguntem como é possível que um vasto esquema de poder mundial, empenhado num combate de vida e morte contra a soberania de um país forte após ter suprimido as de todos os fracos, seja apresentado como um front libertário dos pobres e coitadinhos em luta contra um “Império”. A explicação é a mesma do episódio acima: mentira organizada, subsidiada pela maior arregimentação financeira de todos os tempos, que tem a seus pés a grande mídia e a seu serviço a totalidade da esquerda internacional.

As conexões internas do esquema não são visíveis ao cidadão comum, mas algumas delas acabam se tornando impossíveis de esconder. Ninguém duvida, por exemplo, de que o CFR, Council of Foreign Relations, é um destacado think tank do imperialismo global. Pois bem, quem representa essa entidade no Brasil? É o Cebri, Centro Brasileiro de Relações Internacionais, instituição que tem como presidente o sr. Fernando Henrique Cardoso e como conselheiro o sr. Marco Aurélio Garcia, um dos mais notórios mentores petistas da revolução comunista no continente. Separadas localmente por divergências oportunas, as forças personificadas por essas duas criaturas trabalham em perfeita harmonia no plano da estratégia global, colaborando gentilmente na implantação do Tribunal Penal Internacional, do desarmamento civil, do abortismo generalizado, do neo-ecumenismo anticristão e de outras delícias do admirável mundo novo – o mundo de John Kerry.

***

A mídia brasileira, com intensidade crescente nas últimas semanas, transborda de autoglorificação comunista, acompanhada da garantia enfática de que nunca existiu nem existe agora nenhum comunismo em ação. Em 1964, os comunistas não mandavam no governo, não preparavam uma rebelião nos quartéis e Luís Carlos Prestes não havia recebido nenhuma ordem de Mikhail Suslov para deflagrar uma guerra civil. Hoje, não existe o Foro de São Paulo nem qualquer articulação PT-Farc-Castro-Chávez. A narcoguerrilha colombiana não vende um único grama de cocaína neste país. Não há um só terrorista na Tríplice Fronteira. A divisão do bolo eleitoral entre comunistas e socialdemocratas, que anunciei com anos de antecedência, agora fato consumado, não é em hipótese alguma uma aplicação da estratégia leninista “das tesouras”. E, quando o povo, farto de petistas, coloca em lugar deles candidatos de outros partidos membros do Foro de São Paulo, sem ter a menor idéia de que apenas substituiu o lobo pela raposa na guarda do galinheiro, isso não é de maneira nenhuma o triunfo completo da hegemonia gramsciana, fundada na aliança da onipresença com a invisibilidade. Em suma: nada é o que é. Tudo é o que a mídia quer que seja.

***

Não deixem de ler o livro de Percival Puggina, Cuba: a Tragédia da Utopia (Literalis Editora, Porto Alegre, 2004).

Desprezo afetado

Olavo de Carvalho

O Globo, 12 de junho de 2004

Como já escrevi tempos atrás, o maior obstáculo à formação superior da inteligência não está em fatores de ordem econômica, social, racial ou familiar, mas de ordem moral. Está naquilo que os gregos chamavam apeirokalia: a falta de experiência das coisas mais belas. A alma que, desde tenra idade, não seja exposta à visão de exemplos concretos de beleza natural, artística, intelectual, espiritual e moral, torna-se incapaz de conceber qualquer realidade mais alta que o topo das suas percepções corriqueiras. Como o sapo do fundo do poço, se lhe perguntamos: “Que é o céu?”, responde: “É um buraquinho no teto da minha casa.”

Esse é o mal crônico da cultura nacional, sempre devota do irrelevante e cheia de despeito por tudo o que esteja acima da sua precária capacidade de compreensão.

Um exame dos principais romances brasileiros já revela: não há literatura mais rica em personagens fúteis, medíocres, desprovidos de qualquer profundidade de alma ou de espírito. É um mundo de pequenos funcionários, atormentados, na mais nobre das hipóteses, pelo orçamento exíguo, pela libido insatisfeita ou por alguma cólica intestinal. A literatura de ficção é ao mesmo tempo retrato e sintoma: se nosso cosmos ficcional é assim, não é só porque a sociedade é assim, mas porque assim também são os escritores. Sua única diferença é que têm algum dom de observação crítica para descrever a mediocridade geral, mas não para superá-la. A prova é que, quando analisam a situação, tratam logo de atribui-la a causas econômicas, raciocinando por sua vez como pequenos funcionários e anestesiando-se para não enxergar sua própria miséria interior.

Nos últimos tempos, e com estímulo oficial, a mesquinharia nacional tornou-se ainda mais tacanha e empedernida ao adornar-se de pretextos sociais edificantes. A indolência mental virou sinal de amor ao povo, a incultura uma prova de altos ideais, a mediocridade pétrea uma aura de santidade em torno da cabeça oca de um candidato presidencial.

A jaula de sentimentos ruins e ilusões jactanciosas em que se fechou o povo brasileiro acaba por separá-lo tão completamente do universo, que ele já não concebe o belo e o sublime senão como produtos enganosos da astúcia publicitária de algum Duda Mendonça.

Daí a imagem que se pintou, na nossa mídia, do recém-falecido presidente americano Ronald Reagan.

Nos EUA, o colunista Jack Wheeler escreveu: “Ronald Reagan foi o maior dos americanos – não apenas dos presidentes americanos. Mais que qualquer outro, ele personificou o ideal moral descrito por Aristóteles como Megalopsiquia, o Homem de Grande Alma. O Homem de Grande Alma tem um caráter de tanta integridade indissolvida e de tanta r ealização no mundo real, que sua alma expressava, para Aristóteles, o Kálon , a beleza moral.”

Essa é mais ou menos a opinião que têm de Reagan até alguns de seus mais belicosos adversários políticos.

Um homem dessa envergadura pode ser amado, temido ou odiado, nunca desprezado. A afetação de desprezo olímpico com que a mídia brasileira escreveu sobre ele é apenas o disfarce convencional do mais vil dos sentimentos: a inveja rancorosa, insanável e desesperadora que as almas miúdas têm das grandes.

Nunca uma camuflagem neurótica foi tão transparente, nem tão dolorida a consciência de inferioridade aflorando à casca da superioridade fingida.

Mais que amostra de uma situação cultural e política deprimente, a mídia brasileira tornou-se um sintoma psiquiátrico em sentido estrito.

***

Depois de ajudar por baixo do pano uma sucessão de invasões de terras e assassinatos de fazendeiros, o governo do Zimbábue finalmente anunciou que vai eliminar a propriedade privada no campo, estatizando todas as fazendas produtivas do país. É a vitória definitiva do equivalente local do MST, encabeçado por um sujeito chamado Hitler Zunzi. O nome é inspirador, e nem toda semelhança é mera coincidência. Zunzi diz: “Todas as revoluções exigem violência. Sou como Napoleão Bonaparte, Che Guevara e Adolf Hitler.” O governo do Zimbábue é fortemente apoiado pela China, tão querida do empresariado brasileiro.

Veja todos os arquivos por ano