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Palhaçada

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil (Caderno Eleições), 1o de outubro

O caso de dona Jandira Feghalli, que dedica sua vida política à promoção do abortismo mas na hora da propaganda eleitoral não quer que ninguém fale disso, é o resumo simbólico da presente eleição, cuja regra numero um é não deixar o eleitor saber em quem está votando. Para todos os efeitos eleitorais, o candidato presidencial Luís Inácio Lula da Silva nunca foi o fundador e mentor da maior organização subversiva da América Latina, dona Heloísa Helena e Christovam Buarque nunca foram colaboradores dele nesse empreendimento criminoso, e Geraldo Alckmin nunca foi o opositor omisso e frouxo de cuja boca não sai nem uma palavrinha, mesmo delicada, contra o Foro de São Paulo.

O eleitor vai para as urnas pensando que Lula é o grande reformador ético acidentalmente corrompido pelas más companhias direitistas, que Heloísa e Christovam são puros idealistas infelizmente sem chances neste baixo mundo e que Alckmin é o anjo vingador do conservadorismo, pronto a soar a trombeta do juízo final para os pecadores petistas. As escolhas serão feitas dentro desse leque de opções ficcionais. Em suma, esta eleição é uma palhaçada.

Não que isso constitua inovação fulgurante. Em 2002, quando a parceria oficial do PT com os narcotraficantes das Farc e os seqüestradores do MIR completava doze anos, já reinava o mais completo silêncio a respeito, enquanto, nos debates de TV, quatro filhotes de Fidel Castro se esmeravam num torneio de pureza esquerdista, cada qual exibindo, para fazer inveja aos demais, uma folha maior de serviços prestados à revolução continental.

As eleições no tempo da ditadura eram infinitamente mais honestas e democráticas.  Havia direita e esquerda, opostas e distintas. Havia diferença, confronto, debate. Havia, para dizer o mínimo, algo mais do que a disputa de cargos entre companheiros de ideologia.

Alckmin, que ostenta a suprema e única virtude do mal menor, não é propriamente esquerdista como o era José Serra. É um chuchu ideológico que aposta tudo na fama de bom administrador, sem questionar a moralidade da coisa administrada. Na KGB ou na Santa Sé, seria um burocrata exemplar. Inofensivo para os inimigos, pode tornar-se um perigo para os amigos: católico professo, baixou um decreto punindo com multa o padre, pastor ou rabino que proíba o ingresso de homens vestidos de mulheres nos cultos religiosos, nivelados assim a bailes do Scala Gay. Eleito, fará tudo para ser bom menino, politicamente corretíssimo, imune a tentações direitistas. Já começou até a falar mal dos EUA. É o adversário que o PT pediu ao demônio.

Da ignorância à mentira

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 3 de julho de 2006

Um simpático leitor enviou o meu artigo “Dormindo Profundamente” a um círculo de empresários de bastante peso em São Paulo, e recebeu de um deles, em resposta, um compêndio de chavões pueris, irresponsáveis e presunçosos cuja autoridade nesse meio basta, por si, para explicar a desgraça do Brasil, mesmo abstraída a obra petista de destruição. A carta merece ser examinada porque reflete menos a opinião de um indivíduo do que um conjunto de crenças compartilhadas por uma parcela ativa da classe empresarial, crenças que contrariam flagrantemente a realidade mas são reforçadas todo dia pela mídia bem-pensante. Sócrates dizia que a ignorância é a raiz de todos os males. Mas o ignorante pobre só faz o mal a si mesmo, no máximo a mais meia dúzia em torno. Transformar a ignorância em autoridade pública é empreendimento dispendioso: o sujeito tem de pagar muito bem para que as pessoas ouçam com reverência bobagens que sem isso nem mereceriam atenção. Groucho Marx dizia a um desses opinadores milionários: “É preciso ter mesmo muito dinheiro, para sobreviver com essa sua cabeça.”

Mas a ignorância, como tudo o mais nesta vida, não permanece estável: evolui.  Nasce como pura falta de conhecimentos, mas transmuta-se em incapacidade e por fim em recusa absoluta de adquiri-los, mesmo quando disso dependa a sobrevivência do interessado. Começa como um estado natural e transforma-se numa requintada forma de perversidade.

Mais ainda: se o ignorante ocupa um lugar de destaque na sociedade, se ele é o que hoje se chama um “formador de opinião”, então deve ter à mão um estoque de declarações requeridas para as diferentes ocasiões de uma vida social variada: jantares, reuniões de diretoria, entrevistas na mídia, discursos de posse, homenagens etc. Sem disposição ou paciência para criar opiniões mediante estudo, só lhe resta preencher as lacunas voluntárias do conhecimento com os produtos espontâneos da sua fantasia pessoal. Não sendo, porém, verossímil que a mente imune ao conhecimento seja ao mesmo tempo dotada de grande vivacidade imaginativa, o mais provável é que o sujeito não crie suas fantasias, mas as absorva passivamente do falatório em torno, repetindo-as como se fossem suas e legitimando-as com a autoridade da sua posição na sociedade. É assim que milhares de mentiras tolas, vindas de uma multidão de pequenos fofoqueiros e desinformantes, se condensam num sistema de cretinices respeitáveis, oficiais, cuja contestação se expõe à repulsa e ao desprezo gerais.

Em todo caso, estou muito grato ao palpiteiro, por ter resumido em poucos parágrafos o conjunto das lendas e ilusões que entorpecem boa parte da nossa classe empresarial e a incapacitam para uma reação eficaz ao presente estado de coisas.

Ele começa sua exposição apelando a dois chavões consagrados: “Tão atrasado e fora de contexto quanto qualquer projeto revolucionário marxista em qualquer parte do mundo, é o temor e a neurose permanente em combatê-los.” Em outras palavras: (1) O anticomunismo está fora de moda. (2) Ele é um sintoma neurótico.

Discutir com o ignorante é uma das tarefas mais difíceis deste mundo. As razões do debatedor inteligente, culto, são transparentes: exibem-se no conteúdo do seu discurso, porque ele mesmo as pensou e as colocou ali. As do ignorante, sendo desconhecidas dele próprio, vêm de uma atmosfera social difusa, entre obscuras associações de idéias, automatismos de linguagem e mil e um pressupostos mal conscientizados. Desencavá-las é como analisar um sonho. Você tem de mergulhar fundo no inconsciente coletivo para descobrir de onde o cidadão tirou os motivos de crer naquilo que afirma.

A origem das duas idéias expostas é diferente. Uma espalhou-se pela mídia como reação imediata do triunfalismo liberal ante a queda da URSS. A outra é bem anterior: é um slogan inventado pela KGB nos anos 40 e tão intensamente repetido ao longo das décadas que acabou por disseminar entre os próprios liberais e conservadores a inibição de declarar-se e mais ainda de ser anticomunistas. São, ambas, puras expressões emotivas, que nem mesmo podem ser discutidas como juízos de realidade. A primeira expressa um desejo, a segunda uma autodefesa preventiva contra a ameaça do riso e da chacota, propositadamente espalhada no ar pelos próprios inventores do slogan.

No primeiro caso, o que tenho a observar é que a moda local está um tanto atrasada em relação ao debate de idéias nas áreas mais civilizadas do planeta. No ano 2000, Jean-François Revel já publicava La Grande Parade. Essai sur la Survie de l’Utopie Socialiste (Paris, Plon), expressando a tomada de consciência dos liberais franceses de que o movimento comunista, aparentemente defunto em 1990, se havia reerguido mais poderoso do que nunca, organizado mundialmente e com uma rede de apoios muito mais vasta do que jamais tivera. Esta constatação é uniformemente compartilhada por todos os estudiosos do assunto nos EUA e na Europa. A bibliografia a respeito é esmagadora, mas, no Brasil, como ninguém lê nada, ainda se pode alegar manchetes do Economist de quinze anos atrás como se fossem a última palavra. A ignorância tem seu tempo histórico próprio, imune aos fatos do mundo.

Quanto à difamação do anticomunismo como “neurose”, sua eficácia paralisante tende a diminuir no resto do universo, à medida que a direita européia e americana descobre que foi vítima desse engodo para muito além do que poderia admitir a honorabilidade da sua inteligência. Em 1956, o preconceito contra o anticomunismo fez com que os EUA aceitassem Fidel Castro como um grande líder democrático, ajudando-o a consolidar-se no poder. Em 1973, quando Henry Kissinger recebia o Prêmio Nobel da Paz por ter retirado as tropas americanas no Vietnã, quem dissesse que o efeito da festejada obra diplomática seria o genocídio da população civil era objeto de riso. Três milhões de cadáveres depois, é preciso muita teimosia para não enxergar que a pax kissingeriana ocasionou a tomada do Vietnã do Sul pelo Vietnã do Norte, a ascensão de Pol-Pot no vizinho Camboja e todos os horrores que transcenderam em muito os males da guerra. Em 2002, o analista estratégico Constantine Menges, do Hudson Institute, foi alvo de toda sorte de gracejos maliciosos na mídia nacional por ter dito que a América Latina caminhava para a formação de um eixo anti-americano. Hoje o eixo está visível diante de todos, e aqueles que riram de Constantine Menges já tiraram a máscara, confessando que queriam apenas o silêncio e a discrição necessários para chegar exatamente a isso. O que o cidadão nos propõe é cairmos de novo no mesmo truque, só para não corrermos o risco temível de sermos alvo de gozações comunistas. Não há nada mais ridículo do que o medo do ridículo.

Prossegue o indigitado: Clinton e Jimmy Carter como agentes do comunismo internacional??? A criação de teorias conspiratórias sempre desperta curiosidade e por mais absurdas e não fundamentadas que sejam, apenas por contrariarem radicalmente o senso comum e o que é de domínio público, já conferem a seus autores uma aura de inteligência superior ou informação privilegiada…

Deixo de comentar a elipse enganosa que, para gerar uma falsa impressão de comicidade, substitui “agentes do CFR” por “agentes do comunismo”. É um tipo de truque estilístico que também remonta ao jornalismo comunista dos anos 40. Seu contínuo poder de impregnação na linguagem dos próprios adversários nominais do comunismo é uma das glórias da estupidez humana.

Também nada digo dos três pontos de interrogação. Seria realmente o cúmulo da genialidade retórica, destruir um edifício de fatos e documentos mediante um simples aceno ortográfico. O sujeito acha que conseguiu isso. Só falta chamar a mãe para contemplar o filhinho em seu momento de triunfo. A vaidade da ignorância é um abismo de miséria humana.

Quanto à depreciação do meu artigo como “teoria conspiratória”, era infalível e já estava prevista nele mesmo. Chavões têm sobre certas mentalidades o poder persuasivo de uma revelação divina. Muito significativamente, após alegar a “falta de fundamentos” da minha exposição, o indivíduo apresenta os da sua: “o senso comum e o que é de domínio público”. Muito bem: contra informações diretas da fonte, prevalece a autoridade do que a patota diz e do que sai no jornal. Mais explícita confissão de credulidade beócia não se poderia esperar. Pergunto-me o que pode ser de um país onde a liderança empresarial se deixa guiar por gente assim, inflada de desprezo pela inteligência e pelos estudos sérios. Foi essa mentalidade, afinal, que elegeu Lula. Não vejo como ela pode tirá-lo do poder que lhe deu.

Baseado no que lê na Folha e no Globo, o indivíduo sentencia: “Acredito sinceramente que estamos em outro momento histórico, sem espaço para qualquer coisa semelhante a uma revolução esquerdista…” Ele deveria informar isso ao Fórum Social Mundial, ao Foro de São Paulo, à Organização de Cooperação de Shangai, à rede mundial de ONGs ativistas e ao movimento terrorista internacional.  Em todos esses lugares prevalece a crença oposta: a de que a direita está desmantelada politicamente por toda parte, exceto nos EUA, e de que nunca o projeto da revolução mundial foi tão viável como neste momento. Evidentemente, as atas e documentos dessas entidades, suas discussões internas e as análises feitas por seus estrategistas não saem no Jornal Nacional. Muito menos nas novelas. São um material difícil, tedioso, que só interessa aos envolvidos ou a estudiosos. Se depender de líderes como o autor dessa carta, a classe empresarial jamais conhecerá os planos que seus inimigos estão fazendo contra ela.

Em seguida o sujeito parte para a negação explícita de que os líderes articulados no Foro de São Paulo – Lula, Chavez, Evo Morales, o próprio Fidel Castro — sejam agentes de uma estratégia esquerdista comum. No seu entender, são apenas tipos singulares agindo em função de preferências, idiossincrasias e interesses pessoais. Chavez, por exemplo:

Há muito pouco de ideológico nele, sua orientação é apenas e tão somente populista e seu projeto é pessoal… Ele sabe que a adoção de qualquer discurso ou convicção ideológica mais sólida (principalmente a comunista) colocariam seu governo a perigo, reduziriam seu apoio e colocariam sua própria figura em segundo plano… Por isso adota como discurso ideológico o mais óbvio e vazio, mas tão caro aos pobres latino-americanos: o anti-americanismo. Sua semelhança com Lula? Total. Chaves, Lula, Dirceu e companhia leram Maquiavel de cabo a rabo, e aí reside o problema… Não há nem em Lula nem no PT mais nada de ideológico. Acreditar no contrário, é cair na armadilha criada por eles de tentar implicitamente justificar, sob argumentos ideológicos, a bandalheira praticada. O ‘Projeto’ não é à esquerda ou à direita. É de perpetuar-se no poder, pura e simplesmente. Ideologia tem o Bruno Maranhão, que está preso. Ideologia tem a Heloisa Helena e a Luciana Genro, que fundaram um partido nanico.. .”

Cada uma dessas opiniões pode ser rastreada até suas origens na própria mídia esquerdista que as pôs a circular como pura desinformação. Desde logo, a identificação, muito caracteristicamente pequeno-burguesa, de “ideologia” com “idealismo” ou “esperança utópica” em oposição a “interesses”, “maquiavelismo” e “desejo de poder”. Todo esquerdista com QI superior a 12 sabe que essa identificação é falsa, mas por isso mesmo boa para ser espalhada entre direitistas idiotas. Ideologia, segundo a tradição marxista, é precisamente um vestido de idéias encobrindo interesses político-econômicos determinados. Longe de opor-se aos interesses, ela é seu instrumento e é concebida para atendê-los, para conquistar e ampliar o poder. Se o adversário boboca vê uma oposição inconciliável onde o esquerdista sabe haver uma unidade dialética, tanto melhor para este último: pode bater com duas mãos num adversário que só enxerga uma de cada vez.

Mais ingênuo ainda é tentar explicar tudo pelo maquiavelismo pessoal dos líderes esquerdistas, como se a estratégia da revolução gramsciana na sua totalidade não fosse ela própria baseada em Maquiavel. Lula, Chávez e Dirceu, se chegaram a ler Maquiavel, o leram através de Gramsci, e sabem que nas condições do mundo moderno o maquiavelismo individual nada pode: o novo “Príncipe” é o partido revolucionário. As dimensões majestosas da corrupção petista, superando incomparavelmente os delitos avulsos de políticos individuais, são a melhor prova disso.

Quanto à crença de que Chavez ou Lula tenham estratégias pessoais independentes, inconexas entre si, é uma bobagem descomunal que não resiste ao mínimo confronto com os documentos. As atas do Foro de São Paulo atestam abundantemente a estratégia comum — e a unidade dessa estratégia se torna visível nos momentos em que sua realização ameaça estender até à ruptura o conflito de interesses nacionais, como se viu no caso da Petrobrás, no dos lavradores brasileiros expulsos da Bolívia ou nos tiroteios entre as Farc e o Exército nacional. Nada disso, que normalmente resultaria em guerra, abala a firmeza dos acordos estratégicos firmados no Foro de São Paulo. Mais unidade que isso, só na fórmula 1 = 1.

O diagnóstico flagrantemente errado produz uma terapêutica ainda mais alienada da realidade. Contra a marcha avassaladora do esquerdismo continental, o homenzinho propõe o moralismo apolítico, a recusa obsequiosa de atacar a esquerda como tal, a persistência no erro já velho de uma década: “Melhor seria se a direita conseguisse fazer um contraponto moral àquilo que hoje está aí, o que não consegue porque está contaminada até a alma de interesses espúrios e associada a práticas políticas abomináveis.”

Mas se a falta de ideologia, o oportunismo sujo e o império dos interesses pessoais fizeram tão bem ao PT, por que teriam sido a causa do fracasso do PFL? Por puro instinto lógico, toda criança de dez anos percebe isto: um fator que permanece constante e idêntico em dois processos opostos não pode ser a causa da sua diferenciação. Não é interessante que o apóstolo do “senso comum” o maltrate tão desapiedadamente ao exigir que ele engula como verdade tranqüila uma contradição intolerável?

Sugerir que a direita, para vencer o PT, se dedique a novos e ampliados rituais de auto-sacrifício purificador é querer que ela entregue de bandeja mais algumas cabeças de líderes, como já entregou tantas, na inútil e covarde esperança de assim escapar às críticas maliciosas de petistas que enquanto isso roubavam e delinqüiam incomparavelmente mais que os acusados. Basta comparar as miúdas ilicitudes de um Collor à grandeza imperial do Mensalão ou à violência do caso Celso Daniel para compreender que o apelo à penitência moralista só serve para tornar a direita uma vítima inerme da “guerra assimétrica”, onde um dos lados tem a obrigação de se prosternar no altar da moralidade, enquanto o outro, quando ameaçado por denúncias, aproveita a ocasião para buscar fortalecer sua unidade na defesa comum contra o atacante. A direita nacional começou a destruir-se quando, após ter depositado suas melhores esperanças em Fernando Collor, correu para ajudar o inimigo comum a destrui-lo, mesmo antes de ter contra o suspeito qualquer prova juridicamente válida. Com anos de antecedência, em 1993, expliquei que a “Campanha pela Ética na Política” tinha sido concebida exatamente para isso, que qualquer concessão à versão brasileira da “Operação Mãos Limpas” (ela própria um truque esquerdista sujo) seria apenas cumplicidade suicida com a estratégia mais perversa e astuta já adotada pela esquerda nacional ao longo de toda a sua existência. Collor, mais tarde, foi absolvido pela Justiça, mas sua fama de ladrão, criada pela esquerda, persiste inabalável, mesmo diante da comparação com tudo o que de infinitamente pior veio depois. Para conservá-la viva, a direita consiste em mentir contra si mesma e ainda se oferece para humilhar-se mais um pouco diante do adversário.

Aí a ignorância se transcende, se transforma em apego irracional à mentira. “Liberais” como o signatário dessa carta são a praga que debilita o liberalismo e o impede de se tornar uma força política à altura dos desafios colocados pela ascensão geral do esquerdismo. O serviço que ele presta à esquerda é tão grande, que tornaria razoável a suspeita de tratar-se de um agente provocador ou desinformante infiltrado, se fosse preciso essa hipótese para dar razão de uma conduta que, no entanto, o amor patológico à mentira basta para explicar perfeitamente bem.

O pior dos mentirosos não é aquele que mente uma vez, duas vezes, mil vezes. Não é aquele que mente muito, quase sempre ou até mesmo sempre. Não é aquele que mente tão bem que chega a se enganar a si próprio. É aquele que, em prol da mentira, destrói tão completamente a sua própria inteligência que se torna incapaz de perceber a verdade até mesmo quando ele próprio, por desatenção ou inabilidade, a proclama diante de todos.

Cabeça de esquerdista

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 10 de abril de 2006

Em artigo do Monde reproduzido na Folha de S. Paulo do dia 2, os críticos Michel Guerrin e Jacques Mandelbaum apontam algumas fraudes montadas pelo diretor austríaco Hubert Sauper no documentário “Os Infernos de Darwin” para impressionar a platéia com os malefícios imaginários da globalização capitalista, mas acabam louvando o filme sob a alegação de que a tese ali defendida por meios desonestos é certa e adequada. Reconhecem que, se a propaganda ideológica não se apresenta honestamente como tal, “aquilo que se pretende um projeto alegórico pode ser apreendido pelo público como um acúmulo de fatos irrefutáveis”; admitem até que “com o filme de Sauper, não estamos distantes do princípio segundo o qual o fim justifica os meios”, mas no fim desculpam o diretor na base de que “é preciso avaliar o filme pelo olhar da subjetividade do cineasta” e alegam em favor dele o lema de outro vigarista cinematográfico, Johan van der Keuken, segundo o qual “pouco importa a trapaça — a base precisa ser justa”.

A iniciativa de Sauper não é nova. Reflete a tradição essencial do documentarismo esquerdista, que começou a mentir com o “cinema-verdade” de Dziga Vertov, prosseguiu com Jean Rouch e recentemente chegou à apoteose da mendacidade com Michael Moore. A atividade da moderna elite artística do Ocidente, nesse sentido, pouco se diferenciou da indústria de fraudes da KGB. Ao contrário, com freqüência não consistiu senão na comercialização elegante dos produtos dela.

A justificativa apresentada também não é nova. “Mentir em prol da verdade”, dizia Brecht, é o dever fundamental do militante comunista. Com igual boa consciência os funcionários da KGB apagavam a cada ano os trechos inconvenientes da memória coletiva depositados nas enciclopédias e dicionários, remoldando o passado à luz do futuro desejado.

Mas, cá entre nós, se alguém tem uma tese geral e abstrata sobre a realidade – o tal “fundo justo” – e se para argumentar em favor dela reúne imagens singulares e concretas num filme, essas imagens estão para a tese exatamente como a prova está para a teoria. A prova artística não precisa ser completa, exata, rigorosa, mas, que é um tipo de prova, é. Se o filme não pretendesse provar nada, nem mesmo implicitamente, não seria obra de tese, não seria a favor nem contra coisa nenhuma, não poderia portanto ter o sentido de um argumento político, que é justamente o que esses documentários pretendem ser. Ora, num cérebro normal humano, a prova reforça a veracidade da tese, a veracidade da tese sustenta-se na prova. Na lógica dos srs. Michel Guerrin e Jacques Mandelbaum, como também na de Dziga Vertov, Rouch, Michael Moore e Sauper, o que sucede é o contrário: a prova, mesmo mentirosa, deve ser aceita como boa porque a tese é dada por verdadeira. A tese não é provada pela prova, mas a prova é que é provada pela tese que, ao mesmo tempo, ela simula demonstrar.

Imagine um rapaz tentando entrar numa balada, às três da manhã, e mostrando como prova de maioridade um documento obviamente falsificado.

— Este documento não serve, diz o porteiro.

— Serve. Como sou maior de idade, isso prova que o documento prova isso.

Esse raciocínio imita aqueles desenhos de Escher, em que uma mão, parecendo emergir do papel, se desenha a si mesma. Mas esse truque requer um desenhista de carne e osso que, desde fora do papel, crie a ilusão. O que a vigarice intelectual esquerdista dos Moores e tutti quanti pretende nos impingir é que a mão, se está desenhada, realmente se criou a si própria.

Quando o psiquiatra Joseph Gabel disse que as ideologias de massa têm uma estrutura lógica idêntica à dos delírios psicóticos, era a esse tipo de raciocínios que se referia. A que respeitabilidade intelectual pode aspirar o charlatão que os produz ou, pior ainda, o semilouco que se deixa levar por eles, arrebatado para o sétimo céu da estupidez no instante mesmo em que acredita estar sendo muito esperto e profundo?

Toda a militância esquerdista, sem exceção, compõe-se de quatro tipos de pessoas: vigaristas, otários, vigaristas que estão se tornando otários sem largar da vigarice e otários que estão se transmutando em vigaristas sem deixar de ser otários. Os dois extremos são raros, são na verdade puros tipos ideais weberianos que não existem na realidade: a população esquerdista efetiva compõe-se de vigaristas otários e otários vigaristas, num perpétuo intercâmbio de posições. O sr. Palocci, que não era muito otário, entrou em transição quando começou a freqüentar a casa da sra. Jeanne Mary Corner. O sr. Lula, que não era muito vigarista, progrediu depressa.

Tanto faz, sob esse aspecto, o nível cultural do cidadão. Safadeza e idiotice em doses iguais às de um Lula ou de um Palocci observam-se nos mais sofisticados intelectuais esquerdistas, como os srs. Michel Guerrin e Jacques Mandelbaum. Quando Roberto Campos dizia não haver esquerdista que fosse ao mesmo tempo inteligente e honesto, ele ainda tinha a esperança de que alguns conseguissem ter uma dessas duas qualidades separadamente. Mas malícia não é inteligência, e sonsice não é honestidade. Cabeça de esquerdista é isso: ser esperto na fraude e cretino na ilusão de probidade.

Os srs. Guerrin e Mandelbaum não têm, é claro, a menor noção de que seu conceito de honestidade artística é apenas um sintoma psicótico. Estão de tal modo imbuídos do sentimento de ser pensadores sublimes, que não enxergam a estupidez maciça do que dizem. O público de pseudo-intelectuais pedantes que se deleita com as seções inculturais da Folha embarca na canoa deles, sentindo-se inteligentíssimo. Estão vendo como a inteligência, quanto mais definha, menos o cidadão se dá conta da sua falta?

O fato de que o artigo dessa dupla de idiotas saia no Monde e na Folha é aliás muito natural, já que a noção de veracidade que eles enunciam é a expressão literal do conceito de jornalismo que ali se pratica.

Meios e fins

Uma ideologia revolucionária não é uma teoria sobre a realidade, muito menos um plano de ação. É um enredo ficcional, uma história imaginária da qual o adepto, militante ou crente tenta acreditar que está participando, e cuja unidade aparente dá um simulacro de coerência e de sentido à sua vida dispersa e fragmentária.

Toda ideologia revolucionária identifica o bem com o futuro, com um vago estado de plenitude a ser atingido em data incerta por meios não muito bem esclarecidos. A indefinição nebulosa da imagem visada não perturba em nada a consciência do crente. Ao contrário, é essencial à eficácia persuasiva do discurso ideológico. Se o futuro que se busca fosse objeto de definição racional e descrição meticulosa, se tornaria imediatamente alvo de discussão, perdendo o prestígio do mistério, fonte da sua autoridade sacral.

O objetivo permanece indefinido não somente quanto à sua consistência, mas também, é claro, quanto à sua data. Mas não se trata apenas da natural incerteza do futuro. É antes uma incerteza dupla e retroativa. Quando, por exemplo, se instaura um regime socialista na Rússia ou em Cuba, toda a militância universal proclama o advento vitorioso do socialismo. Mas, como esses regimes só podem subsistir na base da violência e do crime e isso pega muito mal, é preciso proclamar também que esse vexame só acontece porque ainda não se trata de verdadeiros regimes socialistas. Deste modo, a chegada do socialismo não somente é incerta no futuro, como também no passado. Não sabemos quando ele chegará, mas, quando chega, também não podemos saber se chegou.

Por essas razões é que, quando o sr. Luís Inácio confessa a seus companheiros do Foro de São Paulo: “Não sabemos como é o socialismo que buscamos”, ninguém dentre eles o chama de irresponsável por convocá-los a uma viagem com destino ignorado. O indefinido não pode ser contestado, e atrai ainda sobre o portador da mensagem uma aura encantadora de modéstia e realismo. O guia é confiável precisamente porque não sabe para onde leva a caravana e porque nem mesmo pretende ter a menor idéia a respeito.

A indefinição dos fins não espalha entre os fiéis nenhuma insegurança porque lhe corresponde, em oposição dialética, a organização estrita dos meios e a disciplina rígida do corpo de agentes. Quanto menos a militância sabe para onde vai, mais se apega à certeza presente das tarefas e da solidariedade grupal. Todos se dedicam com maior intensidade quanto menos sabem a que raio de coisa estão afinal se dedicando.       Tão frágil é o equilíbrio entre esses extremos, que qualquer intromissão da realidade externa, qualquer adversidade, por mais passageira e fátua que seja, desperta imediatamente o pânico, o horror, a revolta paroxística contra a abolição do sentido do enredo. Nenhuma exclamação, nenhuma hipérbole, nenhuma fantasia paranóica, nenhuma calúnua aberrante deve então ser poupada no esforço de exorcizar o perigo. A segurança psicológica da comunidade é tudo. Em sua defesa, qualquer coisa que se diga contra o atacante é válida. Como a raiz da segurança consiste em continuar acreditando no enredo, a mentira empregada para restaurá-la vale como símbolo da “verdade”. É por isso que o esquerdista “mente em prol da verdade”: quanto mais cabeluda a mentira, maior a prova de fidelidade na defesa do enredo. Daí o sentimento de personificar a verdade em pleno paroxismo da mentira.

Contra a universidade

Obviamente um dos fatores que mais contribuem para idiotizar as pessoas a esse ponto é a formação universitária que recebem. No Brasil, isso chega a uma perfeição raramente igualada. Com trinta anos de experiência na direção de grupos de estudo de filosofia, com incursões ocasionais em instituições universitárias onde meus alunos não encontraram a educação que desejavam e de onde por isso mesmo saíram e vieram parar nos meus cursos, posso lhes assegurar que a universidade brasileira na sua quase totalidade é hoje uma entidade inútil e lesiva ao interesse público, dedicada à pseudocultura, à propaganda política e à exploração da boa fé popular. A diferença entre escola privada e pública, desse ponto de vista, é irrisória. Consiste apenas em que a primeira é paga em mensalidades por aqueles que a freqüentam, a segunda em impostos pela multidão dos trabalhadores que não podem freqüentá-la. Nenhuma delas presta serviço digno de ser pago, mas uma explora a sua própria clientela, a outra o restante da população. Se algumas pessoas ainda acreditam que esta última hipótese é a menos indecente das duas, isso só se explica pelo coeficiente de estupidez que adquiriram no curso da sua própria formação universitária.

A honrosa folha de realizações de umas poucas escolas técnicas e científicas, especialmente militares, nada prova contra o que estou dizendo. Exatamente ao inverso: a desproporção entre essas ilhotas de sinceridade e o mar de fingimento que as cerca é tanta, que o sucesso da parte só torna ainda mais deprimente o fracasso do todo.   

Alguns de meus alunos, reconhecendo esse estado de coisas, não ousam porém admitir que tudo está perdido. Acreditam que vale a pena submeter-se ao massacre das suas inteligências durante alguns anos em troca de um emprego universitário que lhes permitirá, mais tarde, atuar dentro do próprio ventre do monstro e tentar reconduzi-lo a um comportamento decente. Assim, depois de alguns anos nos meus cursos, onde aprendem o que ninguém lhes ensinou nas instituições universitárias, voltam a alguma faculdade na esperança de que a educação que adquiriram comigo lhes dará forças para sair ilesos da freqüentação diuturna desses templos da estupidez, ao ponto de um dia poderem lutar aí dentro por um ensino autêntico e um Brasil melhor. Estão iludidos. Nem eu mesmo sobreviveria a essa experiência. Entrar numa dessas instituições com o intuito de transformá-la numa universidade genuína é o mesmo que entrar numa jaula de leões na esperança de convertê-los ao vegetarianismo.

A universidade brasileira não pode ser melhorada. Ela deve ser abandonada, desprezada, esquecida. A quase totalidade da produção intelectual mais alta neste país já vem de fora dessa instuituição presunçosa, dispendiosa e inútil. Em filosofia isso é ainda mais visível do que em outros ramos da atividade intelectual. Mário Ferreira dos Santos, Vicente Ferreira da Silva, Vilém Flusser e o próprio Miguel Reale, malgrado seu cargo na Faculdade de Direito, jamais foram aceitos pelo establishment acadêmico que, ao mesmo tempo, admitia sua impotência de criar um só filósofo que fosse. Mas nos estudos literários é a mesma coisa. A crítica literária brasileira definhou, secou e morreu sem deixar herdeiros a partir do instante em que a presunção universitária houve por bem apropriar-se dela, gabando-se de substituir o império da ciência ao reino do “amadorismo”.

Nas ciências sociais, a marginalização de talentos fulgurantes como Gilberto Freyre, Oliveira Vianna e Guerreiro Ramos já basta para mostrar que a universidade brasileira já fez há tempos a opção preferencial pelos medíocres e lesados, que por força da sua própria inépcia cedem mais facilmente à chantagem dos superiores e à gritaria da massa militante.

Está na hora de fazer com que a independência da vida do espírito em relação ao estamento burocrático universitário, já longamente praticada entre nós, seja assumida publicamente, ostentada como um orgulho e legitimada como um direito fundamental, do qual depende a própria sobrevivência da cultura brasileira.

Apelo humanitário

Três jornalistas brasileiros que vivem em Londres, Chico Nader, Morgana White e Alberto Salvador, do site do CMI, Centro de Mídia Independente (o mesmo que divulgava convocações ao meu assassinato), informam a um estupefato mundo que uma conspiração foi urdida entre os serviços secretos americanos, a polícia inglesa, eu, o Reinaldo Azevedo, o Diogo Mainardi, o Ricardo Noblat, o Cláudio Humberto, a Lilian Witte Fibe, o Merval Pereira e mais uns quantos, para derrubar o governo Lula e, de quebra, infernizar a vida desses seus gentis servidores londrinos. Já violamos a correspondência deles, grampeamos seus computadores, invadimos seu escritório e até, com a ajuda do MI-5 e do Mossad, matamos um dos infelizes.

Entre outras informações preciosas postas em circulação pelos três anjinhos, descubro que a vítima fatal da nossa trama foi o eletricista Jean Charles de Menezes, aquele que a polícia baleou por engano no metrô de Londres. Na verdade ele era um agente lulista disfarçado, e foi morto não por acidente, mas sim por ordem do sr. Donald Rumsfeld, aquele sacana. Novos homicídios aguardam-se a qualquer momento, em edição extraordinária.

Enfim, um rolo dos demônios. E vocês ficam aí, de braços cruzados, sem mover uma palha em defesa dos coitadinhos. Quanta frieza! Quanta indiferença! Quanta maldade! Se vocês continuarem assim, não vão ganhar sorvete de sobremesa.

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