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Saudades da idiotice

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de janeiro de 2011

Se você espera encontrar qualquer cobertura honesta, por mínima que seja, na grande mídia nacional ou internacional hoje em dia, está implorando para ser enganado. A falsificação, antigamente limitada, discreta e contrabalançada ao menos por arremedos de bom jornalismo, tornou-se ostensiva, cínica e generalizada. É como se os profissionais soubessem que podem contar com a obediência passiva de milhões de otários que eles mesmos treinaram para isso ao longo das duas últimas gerações.

Jared Lee Loughner, que atirou na deputada Gabrielle Giffords, é um fanático esquerdista educado numa escola cujos mentores foram Barack Obama e o terrorista Bill Ayers — mas esse fato decisivo foi omitido por quase todos os grandes jornais e canais de TV dos EUA. Preferiam explicar a motivação do crime pela ação mágica de uma ilustração colocada na página de Sarah Palin no Youtube, onde o distrito de Giffords e seus vinte deputados aparecem destacados no mapa americano por uma moldura em forma de alvo. Não se sabe nem mesmo se Loughner viu essa ilustração, e é claro que interpretá-la como estímulo mesmo indireto e sutil ao assassinato político em vez da simples luta eleitoral é forçar a imaginação até à fronteira da demência — mas a hipótese psicótica de que a figura exibida no Youtube tenha sido mais determinante na conduta do atirador do que toda a formação ideológica recebida ao longo de uma vida vem sendo imposta ao público americano como se fosse a verdade mais banal do universo. E os responsáveis pela palhaçada não hesitam em tirar dela as conclusões políticas mais virulentas. Keith Olbermann, colunista da MSNBC, chegou a dizer que, se Sarah Palin não abjurar do “apelo à violência” publicado no seu canal, ela deve ser “excluída da política”. Entre os figurões da mídia, ninguém, é claro, lembrou-se de pedir que Obama e Ayers se penitenciassem de colocar idéias revolucionárias na cabeça de Loughner, embora seja óbvio que sem essas idéias ele não teria tido jamais o desejo de praticar um assassinato político.

O jornalismo que se pratica hoje em dia já ultrapassou até mesmo os limites da falsificação premeditada. O que era premeditação tornou-se hábito automatizado, meio inconsciente, como num fingimento histérico em que o doente, no começo, sabe que está mentindo, mas depois se deixa iludir por suas próprias palavras e, entre lágrimas e protestos de indignação, termina “sentindo” que diz a verdade — sentindo-o tanto mais intensamente quanto mais luta consigo próprio para sufocar a lembrança da mentira inicial. Bem dizia Eric von Kunhelt-Leddin que a histeria é a base da personalidade esquerdista.

Quem não sabe, por exemplo, que a situação econômica do Brasil nos últimos anos só melhorou porque os banqueiros internacionais decidiram usar o país como abrigo seguro de seus investimentos enquanto se esforçam para demolir a economia americana? A história do Brasil sempre se escreveu desde o exterior, mas no caso são os mesmos centros decisórios estrangeiros que têm interesse em esconder-se por trás de louvores ao governo brasileiro, atribuindo a este a autoria de ações que são inteiramente deles e nas quais a participação de Lula e seus ministros foi, no máximo, tão ativa quanto a de um tubo de lubrificante numa relação sexual.

Explicar pelo Fome Zero o aliás modestíssimo incremento do poder aquisitivo dos brasileiros é como achar que a água aumenta de volume ao ser trocada de balde, mas até “formadores de opinião” tidos como conservadores se sentem obrigados a repetir essa cretinice a título de captatio benevolentiae antes de esboçar alguma crítica, mesmo leve e tímida, à elite petista que lhes inspira tanto ódio escondido quanto temor reverencial exibido.

O jornalismo, dizia Joseph Conrad no início do século XX, é uma coisa escrita por idiotas para ser lida por imbecis. Bons tempos, aqueles. Hoje é uma coisa escrita por fingidores compulsivos para ser lida por masoquistas que só respeitam quem lhes mente na cara. A opinião pública mundial evoluiu da idiotice à psicose.

Publicado com o título “Ultrapassando todos os limites”

Equivalência forçada

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 15 de julho de 2010

Quem quer que ouse mencionar em público o poder crescente e avassalador do Foro de São Paulo, fato comprovado por mil documentos e visível com os olhos da cara, é imediatamente acusado de “teórico da conspiração” e “paranóico”. Mas, evidentemente, não há paranóia nenhuma, nem mania de conspiração, quando ao mais leve sinal de que alguém não gosta do comunismo ou do PT a mídia em peso se levanta para denunciar, em tons apocalípticos, o “rearmamento da direita” e o retorno iminente da ditadura militar.

Exemplos, como esse, de percepção invertida – a patologia mental característica das ideologias revolucionárias – reaparecem praticamente todos os dias nos jornais e revistas deste país, e se tornaram tão costumeiros que já ninguém repara no que têm de perverso, de monstruoso, de estupidificante.

Os jornalistas da minha geração, imperando nas redações desde há vinte anos, apegaram-se de tal modo à sua mitologia de juventude, que, para poder continuar acreditando nela e vendendo-a ao público depois de tantas vezes desmoralizada, não hesitam em demolir a própria inteligência e proceder como se tivessem QI de galinhas.

O mais impressionante é o ar de seriedade – forçada até ao desespero – com que se entregam a esse exercício.

Ao noticiar a prisão de Alejandro Peña Esclusa, a TV Globo praticamente endossou a versão oficial chavista de que o fundador da Unoamerica tinha explosivos em casa e planejava um atentado em parceria com um alegado terrorista (na verdade um pífio ladrão de carros), o salvadorenho Francisco Chávez Abarca. Para fingir que salvava um pouco da sua defunta credibilidade, o canal consentiu apenas em “ouvir o outro lado” um pouquinho e declarar que, segundo a família de Peña, a denúncia era falsa.

Ora, “ouvir o outro lado” é apenas um preceito formal. Justo e necessário em princípio, não pode no entanto ser usado como pretexto para neutralizar ou substituir a obrigação substantiva e primeira do jornalismo, que é a investigação e avaliação racional da credibilidade das notícias. “Ouvir o outro lado” não desobriga de praticar o senso de verossimilhança. Se alguém anuncia aos berros que o sr. Luís Inácio da Silva botou um ovo e o sr. Luís Inácio alega timidamente que não fez nada disso, será bom jornalismo noticiar as duas coisas em pé de igualdade, com o ar mais neutro do mundo?

Deve-se ouvir o outro lado quando dois lados. Não há dois lados no confronto entre um estuprador e sua vítima de três anos. Não há dois lados entre uma conta de 2 + 2 = 4 e uma de 2 + 2 = 5. Não há dois lados entre a afirmação de que os hipopótamos são quadrúpedes e a de que são bípedes voadores. Não há dois lados quando um governo associado a organizações terroristas como as Farc e o MIR chileno acusa de terrorismo um político desarmado que, ao mesmo tempo, o está processando por atos terroristas no Tribunal Penal Internacional. Não há dois lados quando a afetação de neutralidade jornalística tem como única fundamentação lógica a hipótese de que o acusado, sem o menor treinamento ou experiência de ações truculentas, mandou chamar um ajudante alegadamente profissional (que na verdade não o é de maneira alguma) e, quando o ajudante foi preso, permaneceu placidamente em casa com um estoque de bombas, esperando por dias e dias a chegada da polícia em vez de dar no pé como qualquer terrorista que se preze o faria.

Essa história é tão louca, tão farsesca, tão obviamente forjada, que a simples idéia de noticiá-la em pé de igualdade com o desmentido já mostra a diferença entre a neutralidade genuína e o equivalentismo histriônico da Globo.

Num continente abalado pela onipresença do terrorismo de esquerda associado ao narcotráfico, a prisão de Peña Esclusa só serviu como artifício teatral para aliviar a angustiante escassez de terroristas de direita, que arriscava empanar o brilho da rentrée de Fidel Castro no palco internacional, ocorrida quase simultaneamente. Não pode ser coincidência que a polícia política da Venezuela tenha tentado apresentar o ladrão de carros como colaborador de Luís Posada Carriles, acusado de ter explodido um avião cubano em 1976. Tentando abafar a má impressão do festival contínuo de atentados, assassinatos e seqüestros praticados pelas Farc, pelo MIR, pelo ELN e outros membros do Foro de São Paulo, há trinta e quatro anos a ditadura cubana explora essa preciosidade única, o caso Posadas, para fazer a esquerda continental aparecer como vítima inerme da violência direitista. A prisão de Peña Esclusa espreme uma vez mais esse limão que continua rendendo limonadas muito tempo depois de seu sumo ter descido abaixo do número de Avogadro.

Vício consagrado

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 28 de junho de 2010

A afetação de neutralidade superior, especialmente quando se quer impingir à platéia opiniões arriscadas e mentiras cínicas, é a essência mesma do “estilo jornalístico”. Os “grandes jornais” deste país praticam-no com destreza tal que a maior parte de seus leitores, tomando a forma pelo conteúdo, acredita seguir a razão e o equilíbrio no instante mesmo em que vai se acomodando, pouco a pouco, anestesicamente, às propostas mais dementes, às modas mais escandalosas, às idéias mais estapafúrdias.

Quando a Folha, quase vinte anos atrás, começou a promover discretamente o gayzismo sob a inócua desculpa mercadológica de que os gays eram também parte do público consumidor, quem, entre os leitores, poderia imaginar que com o decurso do tempo essa gentil atenção concedida a uma faixa do mercado se converteria numa estratégia global de imposição do homossexualismo como conduta superior, inatacável, sacrossanta, só rejeitada por fanáticos e criminosos? Quem, aliás, tem a paciência e os meios intelectuais de examinar as mudanças progressivas e sutis da linguagem de um jornal ao longo de vinte anos? No começo, o processo é invisível porque seus primeiros passos são discretos e aparentemente inofensivos. No fim, é invisível porque sua história se apagou da memória popular. A lentidão perseverante é a fórmula mágica das revoluções culturais.

É verdade que o grosso do público não tem a mais mínima idéia das técnicas de engenharia social que, de uns trinta anos para cá, se substituíram maciçamente às normas do bom jornalismo. Não há uma só faculdade de jornalismo no Brasil que tenha escapado à influência das doutrinas “desconstrucionistas”, segundo as quais não existe verdade objetiva, nem fato, nem relato fidedigno – há apenas a “vontade de poder” e, conseqüentemente, a “imposição de narrativas”. Notem bem: não se trata de impor “opiniões”, julgamentos de valor. Trata-se de modelar a seqüência, a ordem e o sentido dos episódios narrados, de tal modo que sua simples leitura já imponha uma conclusão valorativa sem que esta precise ser defendida explicitamente. É a arte de fazer a vítima aceitar passivamente, de maneira mais ou menos inconsciente, opiniões com as quais, numa discussão aberta, jamais concordaria. Antigamente os jornais buscavam ser neutros e objetivos nas páginas noticiosas, despejando nas seções editoriais as opiniões candentes, a retórica exaltada, as campanhas empolgantes. Hoje os editoriais são todos escritos num mesmo estilo insosso, diplomático, sem cor nem sabor, porque as opiniões que se deseja impingir ao público já vêm embutidas no noticiário, onde gozam do privilégio – e da eficácia – dos ataques camuflados. No Brasil, todo estudante de jornalismo, mesmo quando incapaz de conjugar um verbo ou atinar com uma regência pronominal, sai da faculdade afiadíssimo nessa arte. Não porque a tenha “estudado” – o que suporia uma discussão crítica incompatível com a natureza mesma dessa prática –, mas justamente porque teve de exercê-la para passar de ano, sem discuti-la, de tal modo que seu sucesso escolar depende de sua docilidade em consentir com o embuste até o ponto em que deixe de percebê-lo como embuste. Então ele está pronto para usá-lo contra os leitores sem ter qualquer suspeita de estar lhes fazendo algum mal.

É por isso que a “grande mídia”, hoje em dia, já não vale absolutamente nada como fonte de informação, e continuar a consumi-la como tal é apenas um vício consagrado, fundado no prestígio residual de um jornalismo extinto.

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