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Ainda a ilusão corporalista

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil , 11 de dezembro de 2008

O apego cognitivo ao corpo, que as velhas doutrinas hindus já ensinavam ser a base de toda ilusão e de todo erro, tornou-se obrigatório ao ponto de que as pessoas consideram seus corpos sua “propriedade”, sobre a qual têm todos os direitos. Em vão lhes mostramos que a propriedade material tem como pressuposto a existência física do proprietário; que o corpo, portanto, não pode ser uma propriedade porque é a condição prévia para a existência de propriedade. Mais ainda, o corpo só poderia ser entendido como propriedade caso se admitisse a existência do proprietário para além e para fora dele. Chamar o corpo de “propriedade” (e mesmo assim não jurídica, mas apenas lógica) faz sentido na perspectiva hindu ou cristã, para as quais a existência da individualidade transcende a do corpo – mas não faz sentido nenhum para a própria perspectiva materialista que, paradoxalmente, a toma como dogma inabalável. Se você acredita que o corpo é tudo, ele não pode ser sua propriedade: ele é a sua substância, ele é você mesmo. A loucura aí é levada ao extremo no caso das abortistas, que acreditam que tudo o que está dentro do corpo delas lhes pertence, como se o feto, por sua vez, nada tivesse dentro do seu próprio corpo e não fosse por sua vez, nessa lógica, proprietário de si mesmo.

O tremendo potencial de ação desencadeado pelo advento da tecnologia e da ciência natural modernas no campo da corporalidade legitimou a tal ponto a ilusão do corpo como centro e limite último da individualidade, que a noção mesma de continuidade biográfica dos indivíduos acaba por se tornar dificilmente concebível exceto como “estrutura narrativa” totalmente artificial e sem conexão com a realidade. Giordano Bruno já previa isso: neguem a dimensão espiritual, dizia ele, e acabarão se negando a si mesmos.

O fenômeno, que despontou na literatura de ficção no começo do século XX, é hoje bastante visível na prática da historiografia. Para o historiador antigo, usar recursos narrativos de romance ou teatro num livro de História provava apenas que o real se apreende como aspecto do possível, coisa que Aristóteles já explicava na “Poética”. Para os historiadores “pós-modernos”, prova que a realidade não existe, que tudo é ficção e “imposição de narrativas” (curiosamente, sem prejuízo de que essa imposição espere ter efeitos reais na política).

Junto com a continuidade biográfica, desaparece o senso da responsabilidade individual por qualquer ação que o indivíduo, decorridos alguns anos, já não “sinta” corporalmente como sua. O fato, por exemplo, de que os comunistas sejam os maiores assassinos de comunistas e no entanto vivam com medo da agressão externa, sem perceber que o perigo maior vem deles mesmos, é um dos casos mais notáveis de alienação psicótica que resultam do empobrecimento do imaginário.

A redução do campo da experiência humana às dimensões manipuláveis pela ciência e pela tecnologia é totalmente incompatível com a estrutura da realidade, onde a existência do infinito, da eternidade e do incognoscível não é, de maneira alguma, uma situação provisória que o “avanço da ciência” possa vir a superar amanhã ou depois, mas um dado positivo permanente, que uma vez suprimido só pode resultar em deformações psicóticas e infantilismos grotescos, como o de tomar a mera esperança de provas científicas futuras como prova atualmente válida e incontestável.

Mas o puerilismo epidêmico dos intelectuais materialistas chega mesmo ao cúmulo no instante em que o dr. Richard Dawkins, rejeitando como bárbaras as doutrinas tradicionais das religiões – e junto com elas, a tradição filosófica inteira de Sócrates a Leibniz – explica a origem da vida como possível intervenção de… deuses astronautas (não perca o patético depoimento dele no filme de Ben Stein, “Expelled: No Intelligence Allowed”, v. http://www.expelledthemovie.com).

A ilusão corporalista

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 4 de dezembro de 2008

O que separa da humanidade normal os abortistas, gayzistas, globalistas, marxistas, liberais materialistas e outras criaturas afetadas de mentalidade revolucionária não é uma questão de opinião ou crença: é uma diferença mais profunda, de ordem imaginativa e afetiva.

Aristóteles já ensinava – e a experiência de vinte e quatro séculos não cessa de confirmar – que a inteligência humana não forma conceitos diretamente desde os objetos da percepção sensível, mas desde as formas conservadas na memória e alteradas pela imaginação. Isso quer dizer que aquilo que escape dos limites do seu imaginário será, para você, perfeitamente inexistente. O imaginário, por sua vez, não reflete somente as disposições do indivíduo, mas os esquemas lingüísticos e simbólicos transmitidos pela cultura. A cultura tem o poder de moldar o imaginário individual, ampliando-o ou circunscrevendo-o, tornando-o mais luminoso ou mais opaco.

O imaginário da espécie humana quase inteira, ao longo dos milênios, foi formado por influências culturais que o convidavam a conceber o universo físico como uma parte, apenas, da realidade total. Para além do círculo da experiência imediata, existia uma variedade de outras dimensões possíveis, ocupando o território imensurável entre o infinito e o finito, a eternidade e o instante que passa.

A partir do momento em que o universo cultural passou a girar em torno da tecnologia e das ciências naturais, com a exclusão concomitante de outras perspectivas possíveis, era inevitável que o imaginário das multidões fosse se limitando, cada vez mais, aos elementos que pudessem ser expressos em termos da ação tecnológica e dos conhecimentos científicos disponíveis. Gradativamente, tudo o que escape desses dois parâmetros vai perdendo força simbolizante e acaba sendo reduzido à condição de “produto cultural” ou “crença”, sem mais nenhum poder de preensão sobre a realidade. O empobrecimento do imaginário é ainda agravado pela crescente devoção pública ao poder da ciência e da tecnologia, depositárias de todas as esperanças e detentoras, por isso mesmo, de toda autoridade. Isso não quer dizer que as dimensões supramateriais desapareçam de todo, mas elas só se tornam acessíveis ao imaginário popular quando traduzidas em termos de simbologia tecnológica e científica. Daí a moda da ficção científica, dos extraterrestres e dos deuses astronautas. Mas é claro que essa tradução não é uma verdadeira abertura para as dimensões espirituais, e sim apenas a sua redução caricatural à linguagem do imediato e do banal.

Uma das conseqüências disso é que o corpo, milenarmente compreendido como um aspecto entre outros na estrutura da individualidade, passou a ser não apenas o seu centro, mas o limite último das suas possibilidades. Aquelas potências do ser humano que só aparecem quando ele é confrontado com a dimensão da infinitude e da eternidade tornam-se absolutamente inacessíveis e passam a ser explicadas como “crenças culturais” de épocas extintas, com a conotação de atraso e barbarismo. Daí, também, que as mais hediondas realizações da sociedade tecnológica, como a guerra total e o genocídio, tenham de ser explicadas, de maneira invertida e totalmente irracional, como resíduos de épocas incivilizadas em vez de criações originais e típicas da nova cultura. O “formador de opinião” dos dias que correm é incapaz de perceber a diferença específica entre o totalitarismo moderno e as formas imensuravelmente mais brandas de tirania e opressão conhecidas na antigüidade e na Idade Média. Para ele, o Gulag e Auschwitz são a mesma coisa que a Inquisição. Quando lhe demonstramos que as formas extremas de controle totalitário da conduta individual eram perfeitamente desconhecidas em toda parte antes do século XIX, ele sente aquele mal-estar de quem vê o chão abrir-se sob seus pés. Então muda de conversa imediatamente ou nos amaldiçoa como fanáticos fundamentalistas.

Mais sobre isto na semana que vem.

Queda-de-braço

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 27 de novembro de 2008

Joseph Farah, o editor do WorldNetDaily, diz que só três razões podem explicar a operação-sumiço montada para sonegar ao público os documentos de Barack Hussein Obama: ou o sujeito nasceu mesmo no Quênia e não quer confessar que é inelegível, ou tem alguma outra coisa a esconder, ou o que pretende é vergar a espinha da nação americana, mostrando aos quatro ventos que ele, o ungido do destino, está acima da Constituição, das leis, do direito à informação e da honra nacional. Para mim, está claro que esta última hipótese, independentemente da veracidade ou não das outras duas, não é uma hipótese: é uma certeza absoluta. Ela não expressa o que Obama “pretende” fazer, mas o que ele já está fazendo. Apresentar-se em público com uma biografia cheia de inconsistências e recusar sobranceiramente qualquer explicação, qualquer prova, qualquer documento, já é um exagero de petulância como raramente se viu. Se Obama fizesse isso tão-somente como escritor ou como figura do show business, já seria um caso de autolatria megalômana pelo menos inquietante. Mas fazê-lo no instante mesmo em que postula o cargo máximo, extorquindo do eleitorado um voto de confiança baseado na fé cega, isto a mera demência não explica. Há aí um plano, um método, um maquiavelismo embutido.

Se as metas declaradas da presidência Obama são nebulosas e contraditórias, a lógica tácita das suas ações é bem nítida, e mais evidente ainda se torna com a presença maciça de clintonistas na sua equipe de governo. Trata-se de prosseguir fielmente a obra destrutiva de Bill Clinton, inspirada na fórmula de Scott Talbot: fomentar com dinheiro dos contribuintes americanos o crescimento de potências concorrentes e debilitar o poder militar, econômico e diplomático dos EUA, vendendo a rendição ao “multilateralismo” como se fosse coisa do mais alto interesse nacional, ao mesmo tempo que, na política interna, se aumenta o controle do Estado sobre a vida dos cidadãos e se diluem as defesas culturais do país numa poção alucinógena feita de lixo politicamente correto.

O maior obstáculo à dócil inserção dos EUA na nova ordem globalista é a Constituição americana. Por isso tipos como Obama ou Al Gore jamais falam dela sem rosnar entre dentes e deixar entrever sua intenção de fazê-la em pedaços. Mas mudar a Constituição, sem mais nem menos, seria uma temeridade. É preciso criar a atmosfera cultural e psicológica que torne a mudança aceitável. O método clássico de fazer isso é impor a desobediência ostensiva como rotina banalizada, desde as classes altas, dessensibilizando o público mediante a negação peremptória de que algo de anormal esteja acontecendo. É precisamente o que o Partido Democrata fez ao longo de toda a campanha. Por essa razão antevi que, mesmo se perdesse as eleições, Obama sairia vencedor na queda-de-braço com a Constituição: imunizado pela chantagem racial e pela adulação descarada da mídia, ele não apenas foi dispensado do mínimo de transparência a que nenhum candidato antes dele ousara se furtar, mas até a cobrança trivial de uma prova de identidade da sua parte passou a ser tratada como um insulto racista e um sintoma de paranóia, enquanto seus opositores, culpados até prova em contrário, eram forçados a explicar-se, com testemunhas e documentos, até sobre detalhes irrisórios da sua vida pessoal. A campanha de Obama acanalhou e corrompeu o sistema eleitoral americano a tal ponto que os próprios conservadores, temerosos de admitir a realidade do descalabro, viraram os olhos e sacramentaram por omissão a normalidade do absurdo. Enquanto discutiam as propostas e perigos de uma possível presidência Obama, tornaram-se cegos para a conduta presente do candidato, que, sem palavras, já punha essas propostas em execução com uma prepotência avassaladora e uma força irreversível. Quando a fé na solidez das instituições se torna um pretexto para não defendê-las do perigo real e imediato, é precisamente porque essa solidez já não existe senão como pretexto.

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