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Os novos puritanos

 

Olavo de Carvalho


 Jornal da Tarde, 6 dez. 2001

Quando um gerente de armazém chama uma empregada doméstica de “negra suja”, o episódio sai em manchetes de oito colunas. Quando porém o autor da ofensa racista é um líder do PT e o ofendido é um ex-governador de Estado, personagem histórico das lutas contra o regime militar, o caso é solenemente ignorado pela mídia como se não passasse de miudeza da crônica provinciana.

Algo, definitivamente, está errado nos critérios do jornalismo nacional.

Se não tivesse lido por acaso uma entrevista de Alceu Collares no site do meu amigo Diego Casagrande (www.diegocasagrande.com.br), eu jamais teria sabido que o ex-governador do Rio Grande fôra chamado de “negro sujo”, em público, pelo sr. Raul Pont, ex-prefeito de Porto Alegre e um dos mentores intelectuais do PT gaúcho. Muito menos saberia do processo por crime de racismo, que Collares está movendo contra o brutamontes verbal.

Casagrande, por seu lado, já sofreu toda sorte de incomodidades em razão de seu mau hábito de dar notícias que o governo gaúcho não quer que ninguém leia. O último desses constrangimentos foi a repentina suspensão do seu “site” por iniciativa do provedor estatal que o hospedava. Casagrande, no meio da briga que se seguiu, ganhou um prêmio jornalístico e foi por pouco que voltou ao ar em tempo de noticiar sua própria premiação.

Já seu colega Políbio Braga, este não ganhou prêmio, mas deveria: é recordista de processos movidos pelo governo estadual gaúcho para impedi-lo de falar. O bombardeio de processos, que pode ser inofensivo contra uma grande empresa, contra uma ONG milionária com centenas de advogados na sua folha de pagamentos, é letal quando cai sobre o cidadão comum como um Boeing sobre o World Trade Center. Processos não comem só dinheiro: comem tempo, energia, paciência, saúde. Paralisam e desarmam. Simone Weil dizia que, para o réu inocente, ser processado já é castigo.

O pior é que Políbio não acusou o governo estadual senão de constrangê-lo no exercício de suas funções profissionais. A resposta veio rápida: mais um constrangimento.

O normal, diante de episódios como esse, seria que a classe jornalística, que precisa da liberdade como do ar que respira, tomasse firme posição ao lado dos perseguidos.

Em vez disso, um bom punhado de jornalistas gaúchos foi mostrar fidelidade ao perseguidor. O governador Olívio Dutra, em investigação por suspeita de envolvimento ilícito com bicheiros, não precisará esperar o término das investigações para saber o que a imprensa vai noticiar. Inocente ou culpado, será declarado inocente. Como interpretar de outro modo a participação de jornalistas numa “manifestação de desagravo” ao governador suspeito? Desagravo, que eu saiba, vem depois da absolvição do acusado. Antes, só pode significar que este foi absolvido “a priori” pela imprensa, como outros, igualmente antes das provas, e independentemente delas, foram condenados “a priori” e nunca mais se levantaram. Mas como poderia ser de outro modo, se em prol de Olívio a mobilização para reprimir as averiguações, que feita em favor de outros se chamaria manobra sórdida, recebe, nos artigos assinados pelo candidato presidencial Luís Inácio Lula da Silva, o nome dignificante de “resistência democrática”? Como haveriam, as belas almas, de resistir ao apelo de uma causa tão nobre?

Não, esses jornalistas não são amorais. O amoral, não tendo moral nenhuma, favorece ora um lado, ora o outro, conforme as conveniências. Aquele que mente sempre em favor de um mesmo lado não é desprovido de um código moral. Sua moral é, ao contrário, rígida e incorruptível. É a moral dos lobos. Lobo não come lobo. Jamais se ouviu contar de um lobo que, corrompido mediante propinas, tomasse o partido das ovelhas.

A inflexibilidade na defesa do mal pode render ao pior dos homens, aos olhos do povo, a fama de honesto e justo. O teólogo Richard Hooker, no século XVII, já notava esse traço nos fanáticos da Revolução Puritana. Com tanta veemência falavam contra o adversário, com tão emocionadas palavras se afirmavam santos e puros, que o público acabava achando mesmo que eram homens bons. A ambição de poder, o ódio cego, a inumanidade, a deformação política da mensagem evangélica, a mentira pertinaz e sistemática – tudo, no revolucionário puritano, acabava parecendo lindo. O nome mesmo de “puritanos” lançava sobre os mais impuros desígnios a aura da santidade.

Mudou alguma coisa, desde então? Nada. Malandros conservadores, liberais, democratas ou simplesmente fisiológicos, quando abafam investigações, pelo menos não alardeiam elevadas motivações cívicas. Fazem sua safadeza à sombra, como que envergonhados. Os novos puritanos chamam-na “resistência democrática”, proxenetando memórias de combates heróicos, e dormem com a consciência mais tranqüila do mundo.

Crítica social e História

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 11 de outubro de 2001

Toda crítica social tem por fundamento uma idéia do melhor. É só em comparação com essa idéia que a sociedade existente pode parecer boa, sofrível, má ou insuportável. Mas a idéia do melhor não surge do nada: é pensada por homens concretos, membros da mesma sociedade que criticam. Se considerarmos que a mentalidade desses homens é inteiramente um “produto” da sociedade, então, das duas uma: ou eles próprios incorrem nos males que denunciam, ou a sociedade, tendo dado a esses homens a idéia do melhor, não pode ser tão má quanto eles dizem.

Logo, toda crítica social que pretenda ter algum fundamento só pode ser baseada na premissa de que haja na consciência do homem uma dimensão que transcende de algum modo a sociedade presente e na qual ele possa instalar-se em pensamento para julgar essa sociedade desde fora ou desde cima.

É evidente, no entanto, que o simples apelo verbal à instância legitimadora não basta para dar validade à crítica. É preciso que esta não somente alegue, mas prove sua filiação lógica à autoridade superior.

As críticas sociais, portanto, podem ser hierarquizadas numa escala de validade estritamente objetiva, conforme (a) a legitimidade intrínseca da autoridade convocada a legitimá-las; (b) a maior ou menor consistência lógica do nexo entre a autoridade legitimadora e o conteúdo da crítica. Dito de outro modo: (a) A autoridade da instância superior convocada a legitimar a crítica pode ser falsa ou deficiente em si, como no caso do crítico que condena a sociedade com base num puro modelo utópico de sua própria invenção. (b) Se a autoridade alegada é válida em si, há ainda o risco de que a dedução que dela extrai o crítico para validar a crítica determinada de uma sociedade determinada não seja uma dedução válida logicamente.

Uma história das críticas sociais desde a Antiguidade até nossos dias demonstraria facilmente que, ao longo dos tempos, as críticas sociais formuladas no mundo ocidental vieram progressivamente perdendo validade ao mesmo tempo que cresciam em virulência e em número de seguidores. Dito de outro modo: à medida que passam os tempos, os críticos sociais perdem em autoridade intrínseca o que ganham em pretensão e audiência.

Sei que esta observação é lamentável e que alguns, sem ter jamais estudado o assunto ou sequer conscientizado minimamente a sua existência antes de ler este artigo, a recusarão “in limine” e buscarão abrigo contra ela em toda sorte de subterfúgios. Só o que tenho a dizer a esses é que não me amolem e vão estudar. Aos demais, isto é, àqueles nos quais o enunciado de uma hipótese suscite curiosidade em vez de indignação ou lágrimas, sugiro que comparem, por exemplo, a crítica socrática à marxista. Esta última tem muito mais adeptos e é muito mais feroz que a primeira, mas, ao declarar que a consciência dos homens é “produto” da História, já não pode alegar outra instância legitimadora senão a História mesma; mas, como a História não traz modelos para o seu próprio julgamento e sim apenas o relato dos fatos consumados, não resta alternativa ao crítico marxista senão deduzir da História transcorrida uma hipótese de desenvolvimento futuro e tomá-la desde já como instância legitimadora da crítica do presente. Nada prova que o desenvolvimento previsto seja necessário nem que o estado de coisas dele resultante tenha de ser melhor do que o presente estado de coisas; tudo isso é apenas hipótese e não tem portanto autoridade legitimadora senão hipotética. Já a crítica de Sócrates, que não angariou adeptos senão num círculo muito limitado, tinha um fundamento muito mais sólido, pois as instâncias legitimadoras a que apelava eram a certeza da morte e a autoridade intrínseca da razão, que nenhum homem pode rejeitar.

Em desvantagem maior ainda fica o marxismo quando comparado à crítica social dos profetas hebraicos, que extraíam sua autoridade do cumprimento das profecias. A crítica de Moisés ao estado de coisas no Egito fundava-se no seu preconhecimento dos meios concretos de levar o povo judeu a uma situação melhor; e o sucesso do empreendimento deu plena comprovação às suas pretensões. Esse é um argumento que nenhum marxista pode alegar em apoio de suas críticas ao capitalismo. Bem ao contrário, as realizações históricas do modelo socialista na URSS e na China foram de tal modo decepcionantes, que os marxistas, após tê-las proclamado e defendido como as mais puras e típicas expressões da superação marxista do capitalismo, hoje se empenham “ex post facto” em explicá-las como desvios acidentais e em limpar o marxismo de qualquer comprometimento com fracassos tão óbvios.

Fracasso memorável

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 13 de setembro de 2001

A Conferência de Durban foi uma farsa e uma armadilha. Seu fracasso foi a coisa mais lógica, mais justa e mais saudável que aconteceu na política internacional nos últimos anos.

A Conferência jamais teve o propósito honesto de lutar contra o racismo e a discriminação, mas apenas o de enaltecer as comunidades oportunisticamente favorecidas pela esquerda internacional, ao mesmo tempo que se acumpliciava, mediante um silêncio criminoso, a perseguições e violências sofridas por grupos politicamente inconvenientes.

Não falo nem dos religiosos cristãos e budistas pelo contínuo genocídio chinês e vietnamita ao qual a Conferência fez vista grossa. O fato mesmo de se escolher por sede do encontro a África do Sul já foi de um cinismo sem par. Ali o “apartheid” jamais terminou. Só mudou de cor. Os fazendeiros bôers estão sendo liquidados às pencas pelas tropas paramilitares instigadas pelo governo pró-comunista do sr. Mbeki. 1118 já tinham morrido até a semana passada, sem que uma única voz se erguesse no plenário para protestar contra essa “limpeza étnica”.

Quanto aos judeus, são obviamente inocentes da acusação de racismo. Estão pagando apenas pela sua burrice. Quantos intelectuais judeus, durante décadas, desprezando o Ocidente que os amava e acolhia, não preferiam ajudar aqueles que odiavam, em doses iguais, Israel e o Ocidente, Moisés e Cristo? Pois tiveram agora uma amostra da gratidão de seus protegidos.

Mas igualmente loucos são aqueles muçulmanos que, no imediatismo do ódio anti-israelita e anti-americano, se fazem aliados de quem ainda ontem os fuzilava, aos milhares, na Rússia e na China.

Nada no mundo justifica que os filhos de Abraão, para guerrear-se uns aos outros seja lá pelo motivo que for, se aliem aos filhos da mentira. Esse pecado, que já custou caro aos cristãos, começa a custar caro aos judeus. E não sou eu quem diz que amanhã custará caro aos muçulmanos. É a voz do profeta. Maomé disse: “Se vossos antecessores (os judeus e os cristãos) se atirarem num buraco de serpente, ireis logo atrás deles.”

Quem garante a esses muçulmanos de hoje, tão inflamados de retórica anti-israelense, que amanhã uma nova declaração do governo global, sob o pretexto de proteger mulheres ou “gays”, não exporá o Islam ao escárnio do mundo, como hoje faz com Israel sob o pretexto de proteger palestinos?

Todas essas contradições latentes, sufocadas sob o falatório do dia, o fracasso da Conferência de Durban traz repentinamente à luz da consciência.

Mais memorável ainda ele é por iluminar o conflito entre o globalismo e o interesse nacional americano, conflito que a propaganda esquerdista tem escamoteado mediante o artifício de jogar sobre os EUA a culpa de todos os malefícios da Nova Ordem Mundial.Como ressaltou o comentarista Henry Lamb em sua coluna no World Net Daily, “o que a comunidade internacional realmente quer é que os Estados Unidos sejam colocados sob o controle de uma autoridade internacional… Tal será a ‘aldeia global’, com as Nações Unidas servindo de administração da aldeia. Os EUA já cederam à ONU mais soberania do que a Constituição americana permite”.

Que isso alerte, enquanto é tempo, aqueles nacionalistas brasileiros “enragés”, que, pensando atingir a máquina globalista que nos oprime, atiram pedras nos EUA.

PS Este artigo estava pronto quando sucederam os ataques terroristas de terça-feira. Decidi mantê-lo porque ele esclarece algo do quadro geral que preparou a tragédia. O detalhe mais elucidativo a acrescentar é o seguinte: Antes de o último tijolo chegar ao chão, a “intelligentzia” globalista já começava a pressionar os EUA para que não reagissem, para que fossem bonzinhos e aguardassem docilmente a decisão da “comunidade internacional”. Era a guerra psicológica que vinha sublinhar o ataque armado, aproveitando-se da zonzeira momentânea da vítima para induzi-la a desarmar-se mais um pouco.

Voltarei ao assunto.

 

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