Posts Tagged Jornal da Tarde

Qual é o crime?

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 30 de agosto de 2001

Num momento em que os narcoguerrilheiros das Farc invadem nossas escolas para ensinar sua doutrina genocida às crianças brasileiras; num momento em que uma entidade envolvida em propaganda de guerrilhas ensaia o seu poder de ação estratégica, bloqueando simultaneamente quase todas as estradas do País – nesse momento, jornalistas e procuradores se juntam numa operação destinada a criminalizar e abortar as investigações que o Exército empreende em torno de atividades ilegais do MST e das ONGs esquerdistas.

Se isso não é um ato de desinformação revolucionária, no melhor estilo KGB, então é pelo menos uma ajuda substancial oferecida, com prodigiosa inconsciência e leviandade, ao plano de Fidel Castro de “reconquistar na América Latina o que foi perdido no Leste Europeu”.

Entorpecida por 40 anos de “revolução cultural”, que sem encontrar a mínima resistência fez gato e sapato da sua capacidade de raciocínio, a opinião pública parece aceitar pelo valor nominal as denúncias contra a investigação, sem nem mesmo se perguntar se o crime investigado não é um milhão de vezes mais grave do que meras palavras, por ofensivas que sejam, encontradas num relatório do investigador.

Ao protestar contra o uso da expressão “força adversa”, o ministro do Superior Tribunal Militar (STM), Flávio Bierrenbach, um homem que deveu sua carreira política ao apoio esquerdista, mostra não considerar que a propaganda ou a preparação de guerrilhas sejam coisa adversa ao regime democrático.

Se o Exército consentir em “dar explicações”, em vez de acusar os que amarram a mão das forças legais para dar caminho livre à agressão comunista, então estará instaurada neste país, da noite para o dia, num passe de mágica, uma nova ordem legal, na qual a pregação das guerrilhas será feita sob a proteção do Estado, e opor-se a ela será crime. Adormecemos nos braços de uma democracia em decomposição, despertaremos entre as garras de uma nascente ditadura comunista.

Pergunto-me se o jornal que, de parceria com os procuradores, criou essa situação kafkiana não está consciente de que, com isso, foi muito além da mera difamação jornalística das Forças Armadas e se tornou um instrumento da mutação revolucionária do regime. Pergunto-me, e respondo: ele não pode estar inconsciente do que faz, pois, na sua edição de 7 de julho de 1993, ele próprio noticiou, em tons alarmantes, a infiltração de agentes da esquerda na Polícia Federal e no Ministério da Justiça. Que pretexto terá agora para ignorar que se acumpliciou com essas mesmas pessoas para fazer o que temia que elas fizessem?

Em vez de parar suas investigações, intimidado pela mídia, o Exército deve é aprofundá-las. Deve é investigar quem são esses procuradores que, num inquérito feito “sob segredo de justiça”, convidam jornalistas a violar o segredo. Qual a ligação dessa gente com a CUT, o PT, o MST? O serviço de espionagem do próprio MST não colaborou na operação? Ou é lícito ao MST espionar o Exército, mas não a este espionar o MST? E aqueles jornalistas, por sua vez, não são colaboradores, militantes ou “companheiros de viagem” das mesmas entidades acusadas nos relatórios do Exército? Em suma: sob a aparência de um mero escândalo jornalístico, o que estamos vendo não será um golpe mortal destinado a neutralizar de antemão qualquer possibilidade de resistência nacional anticomunista?

Ou será proibido fazer essas perguntas? O simples fato de enunciá-las bastará para fazer de mim uma “força adversa”? Estaremos já no novo Brasil anunciado por Fidel Castro, no qual será crime opor-se à ação comunista?

Duas reações promissoras sugerem que não. O corajoso pronunciamento do comandante do Exército no Dia do Soldado mostra que a força terrestre não está disposta a fazer-se cúmplice da trama urdida contra ela. E a decisão da Justiça, que determinou a devolução ao Exército da documentação apreendida em Marabá, mostra que o Poder Judiciário também não quer ser instrumento da sua própria destruição.

Mas – que ninguém tenha dúvidas – o escândalo armado em torno dos documentos de Marabá pode ser apenas um primeiro capítulo. Afinal, foi através da indústria do escândalo que Adolf Hitler pôs de joelhos as Forças Armadas alemãs e transferiu para o seu partido o controle dos serviços de inteligência. E, se existe um traço que define inconfundivelmente a mentalidade dos movimentos revolucionários de todos os matizes, é sua capacidade de tentar outra vez.

Breve história do machismo

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 16 de agosto de 2001

As mulheres sempre foram exploradas pelos homens. Se há uma verdade que ninguém põe em dúvida, é essa. Dos solenes auditórios de Oxford ao programa do Faustão, do Collège de France à Banda de Ipanema, o mundo reafirma essa certeza, talvez a mais inquestionada que já passou pelo cérebro humano, se é que realmente passou por lá e não saiu direto dos úteros para as teses acadêmicas.

Não desejando me opor a tão augusta unanimidade, proponho-me aqui arrolar alguns fatos que podem reforçar, nos crentes de todos os sexos existentes e por inventar, seu sentimento de ódio ao macho heterossexual adulto, esse tipo execrável que nenhum sujeito a quem tenha acontecido a desventura de nascer no sexo masculino quer ser quando crescer.

Nosso relato começa na aurora dos tempos, em algum momento impreciso entre Neanderthal e Cro-Magnon. Nessas eras sombrias, começou a exploração da mulher. Eram tempos duros. Vivendo em tocas, as comunidades humanas eram constantemente assoladas pelos ataques das feras. Os machos, aproveitando-se de suas prerrogativas de classe dominante, logo trataram de assegurar para si os lugares mais confortáveis e seguros da ordem social: ficavam no interior das cavernas, os safados, fazendo comida para os bebês e penteando os cabelos, enquanto as pobres fêmeas, armadas tão-somente de porretes, saíam para enfrentar leões e ursos.

Quando a economia de coleta foi substituída pela agricultura e pela pecuária, novamente os homens deram uma de espertinhos, atribuindo às mulheres as tarefas mais pesadas, como a de carregar as pedras, domar os cavalos, abrir sulcos na terra com o arado, enquanto eles, os folgadinhos, ficavam em casa pintando potes e brincando de tecelagem. Coisa revoltante.

Quando os grandes impérios da antiguidade se dissolveram, cedendo lugar aos feudos perpetuamente em guerra uns com os outros, estes logo constituíram seus exércitos particulares, formados inteiramente de mulheres, enquanto os homens se abrigavam nos castelos e ali ficavam no bem-bom, curtindo os poemas que as guerreiras, nos intervalos dos combates, compunham em louvor de seus encantos varonis.

Quando alguém teve a extravagante idéia de cristianizar o mundo, tornando-se necessário para tanto enviar missionários a toda parte, onde arriscavam ser empalados pelos infiéis, esfaqueados pelos salteadores de estradas ou trucidados pelo auditório entediado com os seus sermões, foi novamente sobre as mulheres que recaiu o pesado encargo, enquanto os machos ficavam maquiavelicamente fazendo novenas ante os altares domésticos.

Idêntica exploração sofreram as infelizes por ocasião das cruzadas, onde, armadas de pesadíssimas armaduras, atravessaram os desertos para ser passadas a fio d’espada pelos mouros (ou antes, pelas mouras, já que o machismo dos sequazes de Maomé não era menor que o nosso). E as grandes navegações, então! Em demanda de ouro e diamantes para adornar os ociosos machos, bravas navegantes atravessavam os sete mares e davam combate a ferozes indígenas que, quando as comiam, – era porca miséria! – no sentido estritamente gastronômico da palavra.

Finalmente, quando o Estado moderno instituiu o recrutamento militar obrigatório, foi de mulheres que se formaram os exércitos estatais, com pena de guilhotina para as fujonas e recalcitrantes, tudo para que os homens pudessem ficar em casa lendo A Princesa de Clèves.

Há milênios, em suma, as mulheres morrem nos campos de batalha, carregam pedras, erguem edifícios, lutam com as feras, atravessam desertos, mares e florestas, sacrificando tudo por nós, os ociosos machos, aos quais não sobra nenhum desafio mais perigoso que o de sujar nossas mãozinhas nas fraldas dos nossos bebês.

Em troca do sacrifício de suas vidas, nossas heróicas defensoras não têm exigido de nós senão o direito de falar grosso em casa, de furar umas toalhas de mesa com pontas de cigarros e, eventualmente, de largar um par de meias no meio da sala para a gente catar.

‘Os pedar da bicicreta’

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 2 de agosto de 2001

Uma famosa dama do show business, no meio de ruidosa festa na boate carioca People’s, tentava se comunicar, aos berros, pelo telefone: “Fulaninho? Eu estou aqui no Pipo. Pipo! Píiiiiiiipo! Pê-i-pê-ó, seu burro! Pipo!”

Outro dia, num programa de perguntas e respostas, um famoso cantor, solicitado a desencavar do seu vasto repertório léxico o nome de algo que se encontrasse em academias de musculação e começasse com “e”, respondeu resolutamente: “Estrutor.”

Em idênticas circunstâncias, outra estrela, convidada a emitir com seus lábios de mel um vocábulo com inicial “i”, não hesitou um segundo: “Iscola.”

A vida imita a arte. “Os pedar da bicicreta” saíram da piada para entrar na História.

É falso alegar que esses personagens são almas simplórias, gente do povo.

São formadores de opinião, ganham rios de dinheiro e, entre banqueiros e senadores, é chique recebê-los em casa. A meninada os tem como ídolos, e um sorriso dos desgraçados, num anúncio de pasta de dentes, é considerado argumento infalível para a persuasão dos consumidores. Em programas de auditório, são consultados sobre política, sobre religião, sobre moral sexual, e ouvidos com a atenção reverencial que outrora se concedia aos sacerdotes e homens de ciência. Enfim, são modelos de conduta inclusive lingüística.

A progressiva admissão desses tipos nas altas rodas reflete algo mais que a força dissolvente da mídia. Reflete a vontade de esculacho, o crescente apetite de autodestruição de uma elite dominante que não parece ter outro empenho na vida senão penitenciar-se da ascensão de sua fortuna material mediante sacrifícios rituais da sua dignidade moral no altar do que existe de mais baixo e desprezível na sociedade.

Muitos, nesse meio, vão além do abjeto puxa-saquismo de cantores analfabetos e dançarinas de cabaré. Prosternam-se, respeitosamente, ante ladrões e traficantes, como quem confessasse haver mais honra e probidade no crime do que no enriquecimento normal e lícito de uma indústria, de um banco, de um escritório de investimentos.

Na verdade, a coisa veio num “crescendo” de auto-esculhambação masoquista desde os anos 50. O primeiro sinal de debilidade moral foi a abertura geral dos salões elegantes para a intelectualidade comunista que ia ali fartar-se do bom e do melhor, arrancar dinheiro do capitalista idiota e sair agourando a morte próxima do execrando anfitrião. O burguês, roubado e humilhado, se babava de gozo como um personagem de Nelson Rodrigues: “Me cospe na cara! Me cospe!.”

Tão vasto prestígio angariou nesses meios o intelectual comunista que, depois de um tempo, já não era preciso ser intelectual. Bastava ser comunista. A intelectualidade vinha por transferência de direitos.

Já na geração que se seguiu, a própria condição de comunista foi dispensada.

Bastava o sujeito ser um brega, um grosso, um símbolo qualquer do povão encardido, e já se tornava uma personificação bastante da vingança redentora, sem cuja presença ritual a burguesia se sentiria culpada. Foi nessa fase que a turma dos “pedar da bicicreta” começou a ser admitida.

Nos anos 70, a exibição de breguice revelou-se insuficiente para aplacar a sanha masoquista da elite. Para ser admitido nas altas rodas, o postulante precisava ostentar, além das marcas visíveis da esculhambação física, provas cabais de esculhambação mental. Foi a época da antipsiquiatria. Sem um certo grau de esquizofrenia comprovada, ninguém podia ter acesso ao “grand monde”.

No capítulo seguinte, a loucura mesma já não satisfazia. Era preciso a ilegalidade, a contravenção. Cafetinas e prostitutas eram ouvidas com devoção em programas de tevê, ao lado de padres e acadêmicos, como expressões respeitáveis da opinião nacional. Garotas de programa deixaram de ser amantes furtivas: passaram da clandestinidade ao estrelato, sendo exibidas como provas de “status”.

No fim já não bastava a contravenção. Era preciso a delinqüência grossa, o crime. Uma senhora da alta sociedade que não tivesse um namorado traficante ou seqüestrador sentia-se a mais miserável dos mortais.

Sem dificuldade pode-se conceber o próximo episódio: a classe rica já não se contentará em ser aviltada, enganada, roubada. Exigirá o próprio assassinato. Em vez de gemer apenas “me cospe!”, o burguês armará a mão do visitante e, entre espasmos de prazer, implorará: “Me mata!”

 

Veja todos os arquivos por ano