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Os novos demiurgos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 22 de outubro de 2009

O que torna ainda mais odioso o dirigismo estatal na educação, universalmente buscado e ardentemente defendido pelos sapientíssimos intelectuais de esquerda, é que ele desmente da maneira mais flagrante e cínica o discurso educacional esquerdista de três ou quatro décadas atrás, do qual eles se serviram como puro instrumento de sedução, prontos a jogá-lo fora na primeira oportunidade, como estão fazendo agora.

Nos anos 60, 70, os mais destacados próceres da pedagogia esquerdista posavam de libertários, acusando a “educação burguesa” de ser um aparato de dominação que sacrificava o livre desenvolvimento intelectual e emocional das crianças em favor de objetivos de mero poder político-econômico.

A acusação, verdadeira quanto a alguns casos isolados bem pouco significativos, observados quase sempre em grotescas ditaduras de Terceiro Mundo (por ironia, sempre mais estatistas do que pró-capitalistas), era completamente falsa quando generalizada a toda a “civilização ocidental” ou mesmo a qualquer das grandes democracias capitalistas em particular — mas seus porta-vozes insistiam em ampliar-lhe o alcance ilimitadamente, dando-lhe foros de teoria científica geral.

No mínimo, a educação ocidental não podia de maneira alguma ser pura dominação de classe, pela simples razão de que se amoldava, com humilde reverência, a valores e critérios velhos de séculos e milênios, muito anteriores e estranhos a qualquer “interesse burguês”, como por exemplo a moral judaico-cristã, a arte clássica, medieval e renascentista, o ideal aristotélico da ciência racional e o direito romano.

Justamente ao contrário do que proclamavam os acusadores, por toda parte a educação e a alta cultura eram um freio às ambições cruas dos capitalistas mais assanhados, forçando-os pela pressão moral da sociedade — especialmente nos EUA — a sacrificar boa parte de suas fortunas em doações para museus, escolas, fundações educacionais e institutos de pesquisa empenhados nas atividades mais alheias a qualquer imediatismo dinheirista ou interesse de classe.

Não deixa de ser significativo que o projeto educacional mais bem sucedido da história americana tenha sido o dos liberal arts colleges, hoje espalhados por toda parte nos EUA e responsáveis diretos pela vitalidade cultural do país, que não transmitem a seus estudantes nenhuma “ideologia burguesa” ou técnica utilitária, mas o modelo de alta cultura desenvolvido na tradição greco-romana e medieval do trivium, do quadrivium, da filosofia e das belas artes. Se a educação americana tencionasse mesmo criar servos mecanizados do capital, não se esforçaria tanto para infundir nos estudantes as virtudes dos estadistas romanos e a acuidade crítica dos eruditos escolásticos. E notem que isso não vem de hoje. Eric Voegelin, ao estudar em Columbia entre 1924 e 1926, teve a grata surpresa de descobrir que estava num país onde Platão, Aristóteles, o direito romano e a teologia cristã não eram assuntos só para acadêmicos, mas presenças vivas nos debates públicos.

Ademais, como já observei aqui a propósito de um daqueles teorizadores do inexistente (Pierre Bourdieu), se os burgueses quisessem mesmo fazer da educação um instrumento de dominação de classe, deveriam ter ao menos elaborado um plano de engenharia social nesse sentido, e as marcas do trabalho desenvolvidos para isso — organizações, atas de assembléias, publicações, orçamentos — deveriam ser visíveis por toda parte, quando o fato é que nada dessa papelada existe nem existiu jamais, o próprio Bourdieu sendo incapaz de citar um só documento que ateste alguma premeditação técnica por trás da alegada “máquina de reprodução”. A única possibilidade de dar razão à sua teoria seria apostar na hipótese de que o controle burguês da educação se construiu por transmissão inconsciente e muda, como que por telepatia (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/090204dc.html e http://www.olavodecarvalho.org/semana/090212dc.html).

Em todo caso, o ódio que esse e outros pop stars intelectuais do esquerdismo votavam àquele fantasma de sua própria invenção fazia com que parecessem, em comparação com ele, os maiores defensores da liberdade e criatividade infantis, supostamente ameaçadas pelo dirigismo mental do “aparato ideológico burguês”. Alguns deles chegavam mesmo, como o Pe. Ivan Illitch, a pregar a “desescolarização” integral da sociedade, a supressão pura e simples do sistema educacional, o advento do homeschooling universal. Alexander S. Neill, um discípulo do psiquiatra e doente mental marxista Wilhelm Reich, anunciava provar que “a liberdade funciona”, usando crianças como cobaias de um experimento desastroso — uma escola onde meninos de cinco anos de idade tomavam decisões administrativas e fumavam durante as aulas, enquanto seus colegas mais velhos preferiam masturbar-se no pátio diante dos olhos complacentes de professores e funcionários. Logo após a morte do fundador, os alunos deram um passo adiante na conquista da liberdade: atearam fogo à escola.

Não por coincidência, esses protetores da meninada ocidental nunca se preocuparam muito com as crianças da URSS, da China e de Cuba, forçadas diariamente a repetir slogans e a fiscalizar-se umas às outras como pequenos policiais, em busca de sinais de desvio ideológico mirim.

Quando, por fim, o Império Soviético veio abaixo, seguiu-se a isso a tremenda ascensão do esquerdismo no Ocidente. Aí os intelectuais ativistas, no poder ou próximos dele, trataram de se livrar do velho libertarismo fingido e encarar a sério a “construção do socialismo”. Para isso era preciso admitir que “a liberdade não funciona” e que a educação tem de ser, conforme as recomendações de Antonio Gramsci, um dócil instrumento nas mãos do partido-Estado. Passaram em suma a praticar, na realidade e mil vezes aumentado, o delito que antes atribuíam falsamente à educação burguesa. É sempre assim: quando essa gente planeja um crime, a primeira coisa que faz é acusar dele algum inocente, a título preventivo, para que quando o crime venha mesmo a ser praticado o público se recuse a enxergá-lo, acreditando que é um mal já superado, de outra época. Não por coincidência, os valores universais que antes preservavam a educação de transformar-se em instrumento da ideologia de classe são agora jogados ao lixo. Claro: revolucionários iluminados, imunes aos escrúpulos da burguesia, não iriam deixar-se inibir por tradições milenares — para eles, meras “construções culturais” tão desprovidas de fundamento quanto as doutrinas que eles próprios inventam. Com a maior desenvoltura, a nova pedagogia estatal cria do nada novos códigos morais, novos padrões de conduta e julgamento, os mais postiços, insensatos e disformes que se possa imaginar, punindo e marginalizando a criança que não se adapte aos mandamentos da recém-criada “socialização” invertida. Como disse o diretor de Concepções e Orientações Curriculares do Ministério da Educação, Carlos Artexes Simões, a escola está aí para “construir um Estado republicano”. De seres livres e inventivos, como as proclamavam os Illichs e os Neills, as crianças transformaram-se em tijolos, blocos de argila mudos e passivos nas mãos dos novos demiurgos: Carlos Artexes Simões e similares.

Fraude e inconsciência

Olavo de Carvalho


O Globo, 3 de novembro de 2001

O socialismo foi, ao longo de toda a história, a única doutrina que professou abertamente reduzir todas as manifestações da cultura a instrumentos da luta pelo poder. Arte, literatura, direito, ciência, religião, educação e tudo o mais que a inteligência humana pudesse criar deveriam servir, antes de tudo, para colocar no poder um certo grupo ou partido e suprimir os meios de ação de seus adversários.

Que essa proposta fosse absurda e monstruosa em si, “cela va sans dire”. Mas o fato é que essa mesma característica dava ao socialismo uma extraordinária superioridade na concorrência com as demais doutrinas.

Primeiro, porque nenhuma delas poderia jamais organizar-se, como ele, de maneira disciplinada para produzir um discurso coerente e unitário sobre todos os aspectos e fenômenos da vida. Nenhuma doutrina ou corrente de opinião pretendeu jamais abarcar um campo tão vasto, nem muito menos subjugá-lo de maneira tão rasa e imediata aos fins práticos de uma ambição política.

Segundo, porque essa peculiaridade tornava o socialismo a doutrina de mais fácil e imediata aceitação: é incomparavelmente mais fácil envolver as pessoas numa fantasia psicótica auto-reprodutora do que conduzi-las ao longo de uma penosa e lenta caminhada por entre as ambigüidades e contradições da vida. A noção mesma de “contradição”, no socialismo marxista, sofria uma simplificação redutiva que a tornava facilmente manejável para fins de propaganda política.

Terceiro, porque, nessas condições, o socialismo atuava sobre o imaginário coletivo como força unificada, enquanto quaisquer outras doutrinas se esfarelavam e se despersonalizavam numa poeira confusa de diferenças dificilmente abarcáveis pelo olhar do cidadão comum. (E quando o socialismo pós-URSS abandonou até suas pretensões de formulação doutrinal explícita, reduzindo-se a um mero sistema de estimulações emocionais, a coisa tornou-se ainda mais fácil.)

Quarto, porque o socialismo podia prevalecer-se do relativo desconhecimento das demais doutrinas para impor, mediante autoprojeção inversa, a crença de que todas elas eram também meros instrumentos de luta política, só que com finalidades opostas às suas. Sendo as metas autoproclamadas do movimento socialista a justiça, a paz e o bem, todas as demais doutrinas tornavam-se instrumentos da injustiça, da guerra e do mal. Por meio dessa gigantesca fraude os porta-vozes do socialismo puderam assim desmoralizar como instrumentos militantes da “ideologia burguesa” até mesmo as doutrinas científicas mais rigorosas, mais objetivas e mais alheias a qualquer ambição política. Quando a evidente boa-fé e o rigor intelectual de um autor viesse a tornar inverossímil a acusação de que suas obras fossem uma apologia da exploração do homem pelo homem, restava sempre a possibilidade apelar ao subterfúgio de que nesse caso em particular as intenções maquiavélicas eram inconscientes ou estavam encobertas por um véu de “falsa consciência”.

Assim, face ao assalto maciço das hordas socialistas, os adversários, dispersos e desorganizados por definição, não podiam senão recorrer a inúteis apelos à razão e ao bom senso, cujo exercício pelo público se tornava impossível graças ao tom de passionalismo denuncista e belicoso que o próprio lance inicial dado pelos socialistas imprimia a toda e qualquer disputa intelectual.

A única tentativa de opor ao bloco socialista uma resistência unitária e maciça não veio de seus inimigos, os capitalistas liberais, mas de um concorrente emergido das próprias fileiras socialistas: o nazifascismo. Este tinha tanta “personalidade”, tanta visibilidade e tanta brutalidade quanto o socialismo, e era tão pretensioso quanto ele em sua ambição de tudo abarcar  — da gramática à medicina — e tudo tornar instrumento da luta. Mas, como reação improvisada que foi, ficou muito abaixo do socialismo, seja em volume de produções, seja em nível de elaboração intelectual. Macaqueação canhestra, terminou oferecendo ao adversário a ajuda mais inesperada e mais decisiva: tornou possível a dupla fraude hermenêutica que se tornou a mais poderosa arma do arsenal retórico socialista. Primeiro, tratou-se de converter o fascismo — mistura de socialismo e nacionalismo xenófobo — em “doutrina capitalista burguesa” (analisei esse truque no artigo “Coelhos fantasmas” de 8 set. 2001). Feito isto, tornava-se fácil tomar qualquer doutrina já previamente diagnosticada como “ideologia burguesa” (pelos meios acima descritos) e, num passe de mágica, colar-lhe por acréscimo o rótulo de fascista. Descobrir fascismo por trás das idéias mais díspares e heterogêneas tornou-se, desde então, o meio básico de análise no enfoque socialista do que quer que seja — praticamente o único instrumento intelectual em uso na totalidade da literatura esquerdista, na produção acadêmica esquerdista, no jornalismo esquerdista. E, da maneira mais clara possível, esse meio e instrumento consiste em uma só coisa: fraude.

Transformar em fraude a totalidade dos produtos da inteligência humana e fazê-lo por meio de um esquema interpretativo simples, automático, repetível como um cacoete, autoproliferante como um vírus de computador, tal foi a grande, a rigor a única realização intelectual do socialismo.

A potência embrutecedora desse mecanismo é incalculável. Ela pode levar o ser humano a abismos de inconsciência jamais imaginados. Querem um exemplo? Quando, na década de 60, os países comunistas investiram mais em “cultura” anti-americana dentro dos EUA do que em material bélico no Vietnã, eles sabiam o que estavam fazendo. A guerra do Vietnã foi, na história, a primeira em que um dos lados deu plena liberdade, em seu próprio território, à propaganda do inimigo. A mídia tornou-se duplamente útil aos comunistas: servia a seus objetivos político-militares ao mesmo tempo que continuava a ser desmoralizada como instrumento de propagação imperialista do “american way of life”. É absolutamente impossível que uma mente normal não perceba a incongruência, mas as massas de hoje já não se constituem de pessoas normais, mas de idiotas que chamam de “mídia imperialista” os mesmos jornais em que lêem diariamente doses maciças de tagarelice anti-americana. E os jornalistas de esquerda que aí vetam ou camuflam à vontade qualquer notícia de atrocidades comunistas — os mesmos que fazem com que umas quantas mortes acidentais em bombardeios pareçam crime tão hediondo quanto o homicídio premeditado de seis mil civis –, ainda podem gritar (e alguns até acreditar) que não têm liberdade de imprensa, que são indefesos socialistas oprimidos pelo sistema, forçados por cruéis patrões a trabalhar para a propaganda capitalista…

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