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A transfiguração do desastre

Olavo de Carvalho

O Globo, 16 de junho de 2001

            Sempre que os esquerdistas querem impor um novo item do seu programa, alegam que ele é a única maneira de curar determinados males. Invariavelmente, quando a proposta sai vencedora, os males que ela prometia eliminar são agravados. O normal seria que, em tais circunstâncias, a esquerda fosse responsabilizada pelo desastre. Mas isto jamais acontece, pois instantaneamente o argumento legitimador originário desaparece do repertório e é substituído por um novo sistema de alegações, que celebra o fracasso como um sucesso ou como necessidade histórica incontornável.

            Ninguém compreenderá nada da história do século XX — nem deste começo do XXI — se não conhecer esse mecanismo de justificação retroativa pelo qual se leva o povo a trabalhar em prol de metas não declaradas, que o escandalizariam se as conhecesse e que por isto só podem ser atingidas pela via indireta da cenoura-de-burro.

            Alguns exemplos tornarão isso bem claro.

            1) Quando o Partido Comunista lançou seu programa de destruição das instituições familiares “burguesas”, consubstanciado no que mais tarde viria a ser a “liberação sexual”, sua alegação principal, elaborada pelo dr. Wilhelm Reich, era que homossexualismo, sado-masoquismo, fetichismo etc. eram frutos da educação patriarcal repressiva. Eliminada a causa, essas condutas desviantes tenderiam a desaparecer do cenário social. Bem, os últimos residuos de valores patriarcais foram suprimidos da educação ocidental entre as décadas de 70 e 80, e o que se viu em seguida? A disseminação, em escala apocalíptica, daquelas mesmas condutas que se prometia eliminar. Obtido o resultado, essas condutas começaram a ser celebradas como saudáveis, dignas e meritórias, e toda crítica a elas passou a ser condenada — às vezes sob as penas da lei — como abuso intolerável e atentado contra os direitos humanos.

            2) Quando a esquerda mundial começou a lutar pela legalização do aborto, um de seus argumentos principais era que o grande número de abortos era causado pela proibição, que facilitava a ação de charlatães, intrometidos e gente não habilitada em geral. A legalização, prometia-se, obrigaria a realizar o aborto em condições medicamente aceitáveis, portanto diminuindo o número de casos. Qual foi o resultado? No primeiro ano, o número de abortos nos EUA subiu de 100 mil para um milhão e não parou de crescer até hoje. Pelo menos 30 milhões de bebês já foram sacrificados, ao mesmo tempo que os apologistas da legalização, em vez de admitir a falácia do seu argumento inicial, festejam o fato consumado, tratando de marginalizar e criminalizar qualquer crítica ao novo estado de coisas.

            3) Quando os esquerdistas norte-americanos inventaram a política de quotas e indenizações conhecida como “affirmative action”, alegavam que ela diminuiria a criminalidade entre a população negra. Oficializada a nova política, o número de crimes cometidos por negros contra brancos aumentou significativamente, segundo estatísticas do FBI. Que fizeram então os apóstolos da “affirmative action”? Reconheceram humildemente que reforçar o sentimento de identidade racial era alimentar preconceitos e conflitos de raça? Nada. Celebraram o aumento da hostilidade racial como um progresso da democracia.

            4) Quando, querendo destruir a tradição norte-americana que considerava a educação um dever da comunidade, das igrejas e das famílias antes que do Estado, a esquerda norte-americana reivindicou a burocratização do ensino, um de seus argumentos básicos era que a delinqüência juvenil só poderia ser controlada mediante a ação educacional do Estado. Com Jimmy Carter, em 1980, os EUA passaram a ter pela primeira vez um Ministério da Educação e programas de ensino uniformes. Duas décadas depois, a delinqüência entre crianças e adolescentes não apenas vem crescendo muito mais que antes, mas adotou como seu quartel-general as escolas públicas, hoje transformadas em áreas de risco, ao ponto de que no começo do ano a prefeitura de Nova York estava privatizando as suas por não ter meios de controlar a violência nelas. Em resposta, que faz a esquerda? Admite que errou? Não. Luta pela uniformização estatal do ensino em escala mundial.

            5) No Brasil, a única maneira de diminuir a violência nas áreas rurais, proclamavam os esquerdistas, era dar terras e dinheiro ao MST. Pois bem, as terras foram dadas — foi a maior distribuição de terras de toda a história humana, com muito dinheiro atrás. A violência não diminuiu: aumentou muito. A esquerda confessa que errou? Não. Trata de organizar a violência e celebrá-la como a conquista de um novo patamar histórico na luta pelo socialismo.

            Os exemplos poderiam multiplicar-se “ad infinitum” — e notem que propositadamente evitei mencionar os casos extremos, sucedidos no próprio âmbito dos países socialistas, como a coletivização da agricultura na URSS, o Grande Salto para a Frente e a Revolução Cultural na China, a revolução cubana, etc. limitando-me a fatos sucedidos no mundo capitalista.

            A promessa salvadora transfigurada em desastre e seguida da troca de discurso legitimador foi, em suma, o “modus agendi” essencial e constante da esquerda mundial ao longo de um século, e não se vê o menor sinal de que algum mentor esquerdista tenha problemas de consciência por isso. Ao contrário, todos continuam prometendo a solução dos males, ao mesmo tempo que já têm pronta, na gaveta, a futura legitimação dos males agravados. Prometem diminuir o consumo de drogas mediante a liberalização, controlar a corrupção mediante o “orçamento participativo”, reprimir a delinqüência mediante o desarmamento civil ou mediante o “direito alternativo” leninista que criminaliza antes a posição social do acusado do que o seu ato criminoso. Sabem perfeitamente aonde tudo isso leva — mas sabem também que ninguém os apoiaria se proclamassem em voz alta o que desejam.

            PS – O pedido de impeachment do governador Olívio Dutra passou pela Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia gaúcha. Vai a plenário. Mas a imprensa nacional continua ignorando o caso.

Assessoria gratuita

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 11 de junho de 1998

A Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis e o Grupo Gay da Bahia acabam de pedir ao Conselho Federal de Psicologia (CFP) a punição, por crime de charlatanismo , dos psicólogos que participarem do III Encontro Cristão sobre Homossexualismo, marcado para hoje em Viçosa, MG.

O encontro, que reunirá terapeutas, pastores e missionários, é promovido pela Exodus , a maior rede mundial de ministérios cristãos de ex-homossexuais, e tem por objetivo oferecer uma alternativa de inspiração religiosa às pessoas que desejem retornar a uma conduta sexual compatível com a moral evangélica.

Segundo a denúncia que as entidades gays e lésbicas enviaram ao CFP, todo psicólogo que participar desse acontecimento cometerá infração, porque:

1) A Organização Mundial da Saúde (OMS) excluiu o homossexualismo do Código Internacional de Doenças.

2) As propostas do encontro “não têm o mínimo embasamento médico ou psicológico, mas se baseiam apenas em considerações religiosas altamente discutíveis”.

3) A Associação Psiquiátrica Americana acha os ministérios de ex-gays fraudulentos e prejudiciais.

Além do castigo dos psicólogos, os reclamantes exigem do Conselho Federal de Psicologia que denuncie publicamente a proposta do encontro como “preconceituosa e discriminatória, inspirada em crendices religiosas”.

Do ponto de vista lógico, o que há a observar é o seguinte:

1) O fato de a OMS retirar o homossexualismo da lista de doenças quer dizer apenas que não há consenso científico suficiente para enquadrá-lo como doença. A implicação inevitável é que o homossexualismo não é um problema médico e sim um problema moral, sobre o qual cada um tem o direito de tomar posição conforme sua consciência: precisamente o contrário da conclusão que os gays pretendem tirar. A pretensão de proibir opiniões pessoais onde não haja consenso científico é absurda, além de totalitária. Mas, mesmo que houvesse consenso estabelecido, ir contra o consenso é um direito elementar e universal cuja negação implicaria automaticamente a proibição de emitir novas hipóteses e a paralisação, portanto, de toda pesquisa científica.

2) O homossexualismo é condenado, de maneira literal e inequívoca, no Antigo e no Novo Testamento , assim como nas escrituras sagradas dos muçulmanos e dos hinduístas. Qualquer fiel dessas religiões tem não somente o direito, mas o dever de proclamar sua repulsa a essa prática. Proibir que o façam é violar totalitariamente a consciência religiosa de dois terços da humanidade – uma parcela bem maior que a dos gays e lésbicas, por mais espalhafatosa que seja esta última. Se o direito de louvar o homossexualismo não é apenas o oposto complementar do direito de censurá-lo, então já não se trata mais de justiça e direitos humanos, e sim da ditadura de uma minoria rancorosa e fascista. Ninguém, em sã consciência, pode aceitar isso.

3) Ao proclamar que as crenças que embasam o encontro são “altamente discutíveis” e opor a elas a opinião da Associação Psiquiátrica Americana, o documento deixa subentendido que esta última é, por seu lado, absolutamente indiscutível – o que é uma tolice monumental, mesmo porque em ciência, por definição, tudo é essencialmente discutível e aliás é científico justamente por causa disto.

Mas é do ponto de vista jurídico que as coisas se tornam ainda mais interessantes:

1) Oferecer uma alternativa religiosa, declarando que é religiosa, não é o mesmo que oferecer uma terapêutica dizendo que é cientificamente reconhecida quando não o é. Somente neste último caso poderia haver suspeita de charlatanismo. Não sendo verossímil que as entidades signatárias da denúncia ignorem coisa tão banal que a mais breve consulta ao Código Penal bastaria para confirmar, a acusação de charlatanismo configura nitidamente o crime de denunciação caluniosa (artigo 339 do Código Penal: “dar causa a instauração de inquérito policial ou de processo judicial contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente”). Sendo a denunciação caluniosa crime de ação pública , o CFP, tão logo receba o infame documento, tem a obrigação de solicitar imediatamente à Justiça que tome as providências legais cabíveis contra os criminosos: Associação Brasileira de Gays e Lésbicas e Movimento Gay da Bahia.

2) Depreciar como “crendice” os preceitos que condenam o homossexualismo na Torá, no E vangelho e no Corão configura nitidamente o crime de ultraje a culto (artigo 208 do Código Penal: “Escarnecer de alguém, publicamente, por motivo de crença ou função religiosa”). Os signatários da denúncia estão portanto sujeitos a responder também por este crime.

Corrigir a lógica capenga do documento gay é coisa que posso fazer, dada a minha condição de ofício. (Não precisa agradecer, que eu fico sem jeito.) Quanto à parte legal do caso, apelo aos advogados deste país para que ofereçam assessoria jurídica gratuita à Associação e ao Grupo Gay da Bahia, de modo a que estas entidades, ensandecidas pela sanha punitiva que lhes inspira uma doutrina fanática, não acabem se enrolando perante a Justiça, mais do que seria preciso para defender, de maneira sensata e dentro da lei, a causa que representam.

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