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A esquerda americanizada

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 16 de janeiro de 2006

No tempo da ditadura, os esquerdistas da mídia, embora conservassem o poder sobre as redações, se sentiam isolados e constrangidos. Não tanto pela censura quanto pela hostilidade geral da população às guerrilhas. Deprimia-os que o povo não gostasse de ver recrutas e civis brasileiros ser feitos em pedaços por carros-bombas. Magoava-os profundamente que ninguém visse nada de heróico em “justiçar” com tiros nas costas homens desarmados, que ninguém admirasse a nobreza de sentimentos com que o capitão Lamarca esmagava a coronhadas a cabeça de um prisioneiro amarrado.

Hoje, esses episódios sumiram tão completamente dos mesmos jornais que os denunciavam, que já parecem invencionices retroativas da direita. Na época, os próprios jornalistas de esquerda eram obrigados a contar tudo tim-tim por tim-tim, sem poder em contrapartida expor ao menos em detalhes a sua parte, os padecimentos que seus amigos terrorristas sofriam – oh, quão injustamente! – em retribuição das bombas e das emboscadas. Tinham os mais altos cargos e os melhores salários, mas eram tão incompreendidos e infelizes que precisavam consolar-se mediante festinhas de embalo no Copacabana Palace. Terminaram achando que drogas e surubas tinham um alto potencial revolucionário, e não estavam de todo errados, já que acabaram conseguindo mais eficazmente corromper as gerações seguintes do que ganhar alguma simpatia dos contemporâneos para a violência revolucionária. Vindo a calhar com a estratégia gramsciana que então começava a ser importada, o modelo americano de “guerra cultural” da New Left, que no início julgavam desprezível e burguês na comparação com as propostas truculentas de Che Guevara e Régis Débray, acabou sendo a tábua de salvação que lhes permitiu sobreviver para reinventar depois a história daquele período, fazendo da derrota das guerrilhas uma espetacular vitória publicitária e uma fonte inesgotável de verbas consoladoras.

Mas não foi só nisso que a esquerda midiática se americanizou. A época foi também a do afluxo maciço de brazilianists, que embora fossem também quase todos de esquerda – alguns deles tão enragés quanto qualquer guerrilheiro –, eram bem recebidos pelo governo por conta das instituições que os patrocinavam. Muita coisa que a esquerda local não podia dizer era dita pela boca desses medalhões, de onde o discurso esquerdista saía perfumado com o aroma da superior neutralidade acadêmica da Ivy League.

Aos poucos, o hábito de respaldar-se em declarações de americanos apresentados como insuspeitos tornou-se um dispositivo usual da retórica esquerdista. Na verdade homens como Ramsey Clark, John K. Galbraith, Jimmy Carter ou Ted Kennedy eram a fina flor do esquerdismo chique. Estavam comprometidos até a goela com a ajuda à subversão no Terceiro Mundo. Mas a simples insistência geral da esquerda na lenda de que o golpe militar viera de Washington dava a qualquer americano, por contraste, a autoridade para falar contra a direita latino-americana sem parecer nem um pouquinho esquerdista. O mesmo acontecia com jornais patologicamente mentirosos em favor da esquerda, como New York Times e Washington Post , que ante a platéia tupiniquim ignorante, podiam ser citados como modelos de isenção profissional pelo simples fato de ser americanos.

A geração seguinte de esquerdistas continuou usando o mesmo truque, mas por automatismo paspalho e sem saber que era truque. Quando um Eliakim Araújo, ardido de dores petistas e embriagado de alegria vingativa pela demissão de Boris Casoy, compara desvantajosamente o ex-âncora da Record a “respeitados jornalistas do horário nobre” da TV americana, incluindo entre estes últimos dois notórios vigaristas de esquerda como Peter Jennings e Dan Rather, ele parece acreditar mesmo no que diz, coitado. A malícia dos gurus impregnou-se em seus discípulos sob a forma de ingenuidade perversa. Eles já não mentem por astúcia. Mentem porque ninguém os ensinou a fazer outra coisa.

Notinha horrível

Quanto às festinhas no Copacabana Palace, não falo genericamente. Há uma crônica inesquecível de Daniel Más sobre isso, publicada na extinta revista Visão. Segundo o cronista, até a expressão “Anos Dourados”, usada para designar de maneira aparentemente paradoxal uma época também carimbada como “Anos de Chumbo”, se originou entre o pessoal da mídia e do show business por alusão a uns pacotinhos dourados em que vinha a cocaína. O episódio é edificante. Um dia, turistas estavam brincando de jogar-se uns aos outros na piscina do hotel, enquanto a turminha esperta dos brasileiros, nas mesas em torno, aguardava a chegada de um boliviano que trazia o pó. De repente, aterrorizados, viram o sujeito entrando e sendo agarrado pelos brincalhões. Não houve tempo nem de gritar. Foi o desespero geral: todo mundo pulando na água, atrás dos papeizinhos dourados…

Abramoff para brasileiros

Vocês devem ter lido na mídia brasileira que o caso das verbas ilegais do lobista Jack Abramoff é “um escândalo republicano”, que a investigação vai arrasar o base parlamentar de George W. Bush etc. e tal.

Tudo besteira.

O noticiário internacional que se publica no Brasil copia servilmente o New York Times, o Washington Post, a Reuters e demais fontes da “grande mídia” americana, mas o fato é que essa mídia, vista desde aí, fica bem maior que aqui. O NY Times, aos domingos, pico de vendas, tira pouco mais de um milhão de exemplares. Que é isso, perto dos 38 milhões de ouvintes diários do conservador Rush Limbaugh? Se você somar as platéias de Limbaugh com as de outros comentaristas conservadores de sucesso, como o elegante Bill O’Reilly, ou o explosivo Michael Savage, mais as colunas semanais de articulistas de direita distribuídos a centenas de jornais, como as de David Horowitz, Don Feder, Thomas Sowell, Ann Coulter, verá que, na disputa de público, a “grande mídia” é titica de galinha (sem contar o fato de que a credibilidade dos jornalões está muito baixa entre seus próprios leitores, não passa de 30 por cento). Por isso ela pode mentir à vontade, e quanto mais impopular mais mente, em puro desespero, em pura apelação. É o crepúsculo dos ídolos. Berrando e apanhando. Aqui todo mundo sabe que as coisas são assim. O pessoal só lê esses jornais para saber qual a opinião dos democratas, não a verdade do que está acontecendo. Quem quer a verdade compara o jornalismo de esquerda com o de direita e tira suas próprias conclusões.

O problema é que no Brasil (1) a mídia esquerdista chique americana ainda tem prestígio, o pessoal das redações acredita mesmo que o NY Times seja uma fonte confiável; (2) não existe aí nenhum Rush Limbaugh; o jornalismo de direita é raquítico. Resultado: Tudo o que no Brasil se aceita como verdade factual sobre a política dos EUA é apenas a versão esquerdista, conscientemente deformada, conscientemente militante e cada vez mais fanática, cada vez mais descarada.

O noticiário sobre o caso Abramoff é um exemplo típico. Aqui os republicanos riem quando lêem que o escândalo é para o lado deles. Riem porque conhecem a lista dos políticos de oposição que embolsaram dinheiro do mega-vigarista. Nada menos de noventa por cento dos senadores democratas estão nela (v. a lista inteira em http://www.newsmax.com/archives /ic/2006/1/6/100900.shtml). John Kerry, por exemplo, levou cem mil dólares. Hillary Clinton, mais modestamente, doze mil. E assim por diante. Quando ligarem o ventilador judicial, o grosso da sustância fecal vai para esse lado. Os democratas só estão fazendo onda na mídia. Na hora H, terão de escolher entre a pizzaria e a cadeia. Ninguém na própria esquerda ignora isso, mas para que estragar prematuramente um prazer que, por natureza, já está condenado a ser breve?

É por essas coisas que, quando o NY Times alardeia a queda de popularidade do presidente, jamais a compara com a sua própria, para não admitir o vexame. Bush, no ponto mais baixo, ainda tinha mais credibilidade do que toda a grande mídia americana somada.

Infelizmente, no Brasil, ninguém tem a menor idéia disso. Os EUA que se vêem daí só existem na imaginação esquerdista. São uma entidade fantasma fabricada pela esquerda americana para consumo próprio, e que acaba sendo mais consumida no Terceiro Mundo do que aqui, como todo produto americano que o mercado interno rejeita como demodé.

Duas estratégias

Há hoje em dia pelo menos duas maneiras de inserir um país do Terceiro Mundo na estratégia comunista internacional. A primeira é usar os instrumentos clássicos do populismo radical, declarando guerra à iniciativa privada e ao capital estrangeiro. A segunda é transferir a guerra do campo econômico para o cultural e jurídico, anestesiando os investidores internacionais por meio de uma política econômica mais ou menos “ortodoxa” e assim ganhar tempo para ir minando as crenças tradicionais do povo e implantando discretamente, em lugar delas, novas leis e costumes “politicamente corretos” que, no prazo devido, acabarão inevitavelmente rendendo frutos ainda mais explosivos que qualquer espalhafato “anti-imperialista” de Hugo Chávez e Evo Morales.

Qualquer profissional do comunismo que tenha alguma competência e seriedade sabe que não faz sentido preferir uma via ou a outra. A escolha não depende de preferências individuais, mas da sábia adaptação às circunstâncias, mudando de rumo quantas vezes seja necessário para desorientar as vítimas e, no conjunto, fazer avançar o processo de maneira irreversível. Ter não uma, mas duas estratégias alternadas ou combinadas é, aliás, o mínimo que se poderia esperar de cérebros versados na dialética de Marx, onde a revolução avança por meio da administração inteligente das contradições.

No Brasil, as duas estratégias citadas correspondem à via petista originária e à via tucana. Por ter sido eleito para implantar a primeira e depois adotado a segunda, o sr. Luís Inácio Lula da Silva é chamado de traidor pela massa ignara. Nos altos círculos do Foro de São Paulo, Fidel Castro e Hugo Chávez riem dessa indignação histérica porque sabem que Lula nunca foi tão fiel à estratégia global do movimento.

A duplicidade de vias permite que, nas horas de aperto, a esquerda tire proveito publicitário até de seus próprios crimes e desvarios. Quando algum corrupto de esquerda é pego em flagrante, basta acusá-lo de traidor, de vendido para a direita, mesmo quando ele não tenha roubado para si próprio e sim para o esquema partidário, o que é precisamente o caso do Mensalão. O Fórum Social Brasileiro, que se anuncia para breve, está programado exatamente para esse fim: capitalizar a roubalheira petista, explicando-a retroativamente como delito de “neoliberalismo”…

Outro exemplo: a esquerda americana envia à Amazônia uns “missionários” do Conselho Mundial das Igrejas para fomentar entre os índios ambições politicamente corretíssimas de “nações indígenas” independentes, enquanto a esquerda brasileira, explorando a ignorância nacional de que essa entidade é pró-comunista, aproveita o caso para denunciar o “imperialismo americano”.

Mais caracteristicamente ainda, presidentes americanos notoriamente pró-esquedistas como Jimmy Carter e Bill Clinton incentivam a destruição das forças armadas latino-americanas, último baluarte de resistência anticomunista no continente, enquanto agitadores locais se infiltram nas academias militares e em think tanks como a Escola Superior de Guerra para incitar na oficialidade, com base nisso, o ódio anti-americano. A operação completa-se quando em seguida aparecem líderes tradicionais da esquerda afagando os militares e insinuando que está na hora de “superar velhos ressentimentos” e unir-se “contra o inimigo da pátria”.

Multiplicados ad infinitum, ardis como esse acabam não apenas surtindo efeito, mas consolidando-se como esquemas de raciocínio padronizados, que proliferam espontanemente e se adaptam por automatismo a mil e uma circunstâncias diversas. Para militantes comunistas tarimbados, essas operações são pura rotina.

Língua petista

Olavo de Carvalho


Zero Hora , 20 de outubro de 2002 

Não há talvez um meio mais fácil de conhecer um autor, uma época, um grupo, do que analisar, no que escrevem, os seus cacoetes de estilo. O estilo petista tem vários, típicos e inconfundíveis, cujo estudo animaria as noites do mais sonolento filólogo, tão encantadoras as curiosidades que ali o esperam. Mas hoje quero destacar somente um deles, pela peculiar inventividade do giro de significado que imprime a uma das palavras mais importantes do momento, a palavra “terrorismo”.

Esse termo, como se sabe, ou como em caso de dúvida se pode averiguar em qualquer dicionário, designa o uso de bombas, tiros, incêndios e outros expedientes truculentos com a finalidade de obter vantagens políticas que dificilmente seriam concedidas de bom grado pelas pessoas explodidas, baleadas ou incineradas, assim como por quaisquer outras.

Com invulgar freqüência, porém, porta-vozes do petismo letrado e iletrado têm usado esse termo para designar uma multiplicidade de coisas heterogêneas que normalmente não levam esse nome e que, em si mesmas, não têm nenhuma virtude mortífera especial, entre as quais as seguintes: (1) a elevação dos juros em mais três pontos percentuais; (2) a entrevista do presidente da República a uma revista semanal; (3) artigos do filósofo Denis Rosenfield publicados na imprensa gaúcha e paulista; (4) piadas antipetistas que circulam pela internet; (5) a declaração da atriz Regina Duarte de que está apavorada com a possibilidade de vitória do PT na eleição presidencial.

À primeira vista, parece tratar-se apenas de metáforas de mau gosto, reforçadas por uma ênfase demencialmente hiperbólica destinada a criar a impressão de que essas cinco coisas, por alguma via inconcebível ao pensamento humano normal, exercem sobre a alma petista um efeito aterrorizante comparável ao que a derrubada das torres do World Trade Center teve sobre a população de Nova York. Particularmente no item 5, não se compreende como o simples fato de uma senhora declarar-se aterrorizada poderia aterrorizar aqueles que a deixaram aterrorizada. Só com isso, a língua petista se revelaria uma das mais estranhas já faladas pelo bicho-homem desde seu advento sobre a Terra.

A esquisitice, porém, sobe às alturas do apocalipse semântico quando se constata que os mesmos indivíduos, que assim esticam o termo “terrorismo” para designar com ele as coisas mais variadas e inofensivas, se recusam terminantemente a aplicá-lo aos empreendimentos bélicos e explosivos da guerrilha colombiana, que já mataram aproximadamente 30 mil pessoas.

A ampliação hipertrófica do sentido figurado já é uma anomalia estilística que revela no seu usuário uma certa intenção de forçar as coisas a parecerem o que não são. Acompanhada, porém, da supressão do sentido literal originário, denota algo de bem mais alarmante: a tentativa de habituar o público a crer que jogar bombas e incendiar prédios públicos não é terrorismo: terrorismo é falar mal do PT. Uma vez acostumados a essa nova acepção do termo, julgaremos bem normal que os representantes da narcoguerrilha colombiana sejam recebidos em palácio com honras de convidados oficiais do governo, enquanto os piadistas e Regina Duarte vão para a cadeia como terroristas. Como os senhores sabem, falta pouquíssimo para que essa possibilidade absurda se torne a nossa realidade de todos os dias.

Fenômenos análogos encontram-se aos milhares na literatura petista e comunista, abrangendo por exemplo as expressões “genocídio” (usada para designar as privatizações de empresas estatais no capitalismo em vez da estatização do morticínio no socialismo), “democracia” (usada como sinônimo do regime cubano), “utilidade social” (o emprego das terras do MST para o treinamento de guerrilhas em vez do plantio de feijão), etc. As obras inteiras de escritores como Leonardo Boff, Emir Sader e Frei Betto, bem como os discursos completos de Olívio Dutra, Tarso Genro e outros tantos, não contêm, a rigor, nada que não se resuma, em última instância, ao emprego repetido e obsessivo desse singular giro estilístico, que, mais que quaisquer outros, ilustra a máxima de que “o estilo é o homem”.

As prodigiosas inversões de significado que aí se observam poderiam considerar-se meras patologias, se não se fundassem numa técnica perfeitamente consciente, que a retórica petista vem usando de maneira sistemática há quase quatro décadas, com a finalidade de tornar os círculos quadrados, e quadrados os círculos. A própria esquisitice aparente das mutações terminológicas usadas para esse propósito se torna, então, perfeitamente racional e explicável: quanto mais absurda a nova linguagem que se ensina ao povo, mais docilmente esse povo, uma vez habituado a essa linguagem, se disporá a aceitar novos e novos absurdos, contanto que venham da mesma autoridade que o ensinou a falar.

A imposição forçada de significações – a “violência simbólica”, como a chama Pierre Bourdieu – é o mais clássico expediente de dominação mental no repertório dos tiranos e manipuladores. No PT há centenas de intelectuais que sabem disso, pois estudaram muito Bourdieu e conhecem de cor o seguinte enunciado: “Todo poder de violência simbólica, isto é, todo poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base da sua força, acrescenta a sua própria força (de violência simbólica) a essas relações de força”. Há 30 anos a intelectualidade petista não faz outra coisa, deformando a língua dos debates públicos até o ponto em que o aterrorizado passa por terrorista, o perseguidor por perseguido, o agressor por agredido – e ninguém ousa denunciar a premeditada engenharia de violência simbólica que há por trás disso.

Se no Brasil existisse um establishment universitário consciente de suas funções, haveria a esta altura centenas de estudos acadêmicos sobre a novilíngua petista, um dos fenômenos lingüísticos mais perversos e malignos já observados na história da safadeza universal. Infelizmente, o próprio establishment acadêmico, sob o domínio do petismo, passou a colaborar na produção do fenômeno em vez de estudá-lo e curá-lo. Daí que, exatamente como no Alienista de Machado de Assis, a doença tenha virado medicina, e a medicina doença.

Pense nisso, caro leitor, ao ouvir um candidato petista prometer a cura dos males nacionais.

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