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Lições da Guerra Fria

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de dezembro 2007

O livro de M. Stanton Evans sobre a “era McCarthy”, Blacklisted by History , que mencionei aqui dias atrás, suscitou um comentário enfezado do escritor Ronald Radosh no último número da National Review , a tradicional revista dos conservadores americanos. Ele próprio autor de pesquisas importantes sobre aquele período, Radosh reclama, com razão, que Evans deixou de citá-las embora aparentemente se baseasse nelas em alguns pontos da sua narrativa. Resmunga também que Evans enalteceu demais a figura de McCarthy, em detrimento de outros combatentes anticomunistas da época, aos quais o controvertido senador, com suas tiradas espalhafatosas e suas ações não raro precipitadas, mais atrapalhou do que ajudou. Dito isso, que aliás é certo, Radosh acaba concordando meio a contragosto com a tese geral do livro, de que McCarthy denunciou um perigo real – a influência secreta de agentes soviéticos em decisões estratégicas do governo americano – e de que a administração Truman, no empenho histérico de limpar a própria imagem e sujar a de McCarthy, montou uma gigantesca engenharia de desinformação popular que no fim das contas beneficiou os inimigos dos EUA e consagrou como verdade de evangelho, transmitida até hoje nas escolas, na TV e nos filmes, uma versão radicalmente falseada da história do país.

Intelectualmente, essa versão já estava desmoralizada desde a abertura dos arquivos do Partido Comunista soviético e da decifração dos códigos Venona (comunicações secretas entre o Kremlin e a embaixada soviética em Washington), e pode-se considerar sepultada com a publicação do livro de Evans. O surgimento mesmo de debates sobre este ou aquele ponto em particular – especialmente sobre o papel de Joe McCarthy nas investigações – é por si o sintoma de que entre os estudiosos sérios um novo consenso geral já vem tomando o lugar dos velhos mitos esquerdistas que mostravam os acontecimentos da época como um assalto geral “fascista” à reputação de pessoas honradas e inocentes. Mas ainda falta muito para que esse novo consenso se espalhe pelas instituições de ensino e penetre na cultura popular.

Enquanto isso, é preciso notar que as incertezas e hesitações remanescentes na elite intelectual americana quanto a fatos decorridos há meio século contrasta de maneira tragicômica com a clareza antecipada com que os soviéticos planejaram e desencadearam esses fatos.

Na América, como se vê pelo caso Radosh-Evans, ainda se discute muito a pessoa de Joe McCarthy, como se ela, e não a existência de tantos políticos e intelectuais americanos dispostos a colaborar com uma ditadura inimiga e genocida, fosse o centro da questão. Esse desvio de foco foi ele mesmo planejado pela tropa-de-choque de Harry Truman, mas ele imita tão bem as campanhas comunistas de desinformação caluniosa, que se torna difícil acreditar que nele não colaborassem em nada os próprios agentes soviéticos então sob investigação. A experiência soviética nesse gênero de coisas vinha de longa data, ao passo que os EUA só criaram seu primeiro serviço de inteligência, o OSS, Office of Strategic Services (núcleo da futura CIA) em 1942, cinco meses depois do ataque japonês a Pearl Harbor – e esse serviço, como se descobriu depois, já nasceu infestado de agentes soviéticos.

Um argumento que sempre reaparece quando se fala de McCarthy é que ele não distinguia direito entre espiões soviéticos, militantes comunistas, simpatizantes, “companheiros de viagem” e meros idiotas úteis. Para ele, todos esses gatos pardos eram, por igual, agentes de Moscou. Radosh volta a insistir nesse ponto, bem como na tese, intimamente associada, de que o senador do Wisconsin exagerou barbaramente ao dizer que os comunistas “dirigiam” a política americana no Extremo Oriente.

A intensidade passional que ainda permeia essa discussão nos EUA chega a ser patética, quando se considera que a confusão entre os vários tipos de colaboracionistas tinha sido planejada de antemão por Stálin em pessoa e constituiu, no fim das contas, um elemento essencial para o sucesso das “medidas ativas” soviéticas na política americana. O ditador soviético não acreditava em revolução comunista na América, por isso determinou, como já contei aqui, que o Partido Comunista americano se concentrasse na arregimentação de companheiros de viagem e idiotas úteis na elite política, intelectual e financeira, para que pudessem ser usados como fornecedores de apoio financeiro, como legitimadores morais “insuspeitos” em circunstâncias específicas e, last not least , como instrumentos auxiliares, conscientes ou inconscientes, na espionagem e nas “medidas ativas” (desinformação, influência secreta nas decisões políticas, etc.).

Se há alguma coisa de que os comunistas jamais fizeram questão, é de sujar suas próprias mãos quando podem, com mais vantagem, agir por mãos alheias. A estratégia soviética sempre visou a resultados de ampla envergadura e de longo prazo, variando infinitamente a escolha dos meios e não hesitando em usar até mesmo, com grande habilidade, os canais mais inusitados e contraditórios. Contribuía para isso o fato de que os serviços secretos soviéticos desfrutavam de plena liberdade de ação, não tendo satisfações a prestar a nenhum parlamento, opinião pública ou órgão de mídia. Somados ao modo dialético de pensar e ao completo amoralismo que a elite comunista sempre se permite nas relações com o “inimigo de classe”, esses fatores davam à ação soviética uma flexibilidade e uma informalidade que, para o observador não-comunista, eram desnorteantes.

Um sinal característico desse fenômeno era a confusão premeditada entre os vários tipos e níveis de colaboradores. Do mesmo modo que nas campanhas de propaganda aberta a palavra de um companheiro de viagem, de um simpatizante ou de um idiota útil podia ser muito mais efetiva que a de um militante de carteirinha, na espionagem ou no campo das “medidas ativas” essas criaturas aparentemente inocentes também prestavam às vezes serviços muito mais decisivos que os dos agentes pagos da KGB ou do GRU (serviço secreto militar soviético). Isso esteve nos cálculos de Stálin desde o começo. Ora, os americanos, quando examinam aquela fase da sua história, fazem-no com a esperança, ou ilusão, de poder discernir a exata quota de responsabilidade política e jurídica de cada personagem. Isso é importante sobretudo porque, grosso modo , as facções em disputa naquela época ainda são as mesmas que competem pelo poder político nos EUA de hoje: republicanos e democratas, ou “conservadores” e “progressistas”. Se um condenação retroativa da administração Truman pode refletir-se negativamente sobre Clinton ou Obama, a continuidade do ódio a McCarthy é sempre um peso nas costas dos republicanos. Também é normal que, num país onde a ordem jurídica e os direitos individuais são os supremos valores, o escrutínio meticuloso da culpa e da inocência, no sentido formal e jurídico do termo, seja uma prioridade quase obsessiva.

Mas justamente aí é que tudo se torna ainda mais confuso, dada a duplicidade de quadros de referência que entram na avaliação dos fatos. Do ponto de vista formal, ou “americano”, Owen Lattimore, a bête noire a cuja destruição Joe McCarthy dedicou em vão o melhor dos seus esforços, não pode ser considerado de maneira alguma um agente soviético, apenas um “companheiro de viagem” que colaborou, como consultor acadêmico respeitado, para manter o governo americano desinformado o bastante ao ponto de boicotar seu aliado Chiang Kai-Chek e entregar a China ao comunista Mao Dzedong, lançando as sementes da futura (e mais que previsível) guerra da Coréia. Mas, inversa e complementarmente, do ponto de vista soviético, para o qual o indivíduo e seus direitos não contam em absolutamente nada e tudo o que interessa é a utilidade de cada um na máquina revolucionária, Lattimore foi um agente quase tão valioso quanto Kim Philby ou Richard Sorge.

Do mesmo modo, Radosh insiste em exonerar, e Evans (ecoando McCarthy) em condenar o general Marshall, o homem que, baseado em falsas informações vindas, em última análise, da desinformação soviética, foi o principal responsável pelo desastre da política americana na China. Ambos têm razão, conforme se decida contar a história desde o ponto de vista da teoria democrática, com toda a sua escrupulosidade moral na avaliação das culpas individuais, ou desde o ponto de vista de uma estratégia de poder da qual um dos elementos básicos é justamente a dissolução da culpa e da inocência numa pasta dialética onde a vitória é tudo. Vistos do primeiro ângulo, Lattimore e Marshal foram muito menos culpados do que pensava Joe McCarthy. Na segunda perspectiva, foram peças essenciais da máquina estratégica soviética. Essa mesma distinção pode ajudar a esclarecer a questão de saber se os agentes soviéticos “dirigiam” ou “não dirigiam” a política do Departamento de Estado. Na visão americana, só poderiam dirigir o que quer que fosse se tivessem a autoridade político-administrativa para tanto, e é claro que não tinham. Do ponto de vista soviético, inspirado na dialética de Hegel e Marx onde a realidade de uma coisa não corresponde à sua definição nominal, mas àquilo em que ela acaba se tornando no curso efetivo dos tempos ( Wesen ist was gewesen ist , “a essência é aquilo em que o ente se torna”), é claro que a influência sutil da desinformação vinda de homens como Lattimore, John Stewart Service, Philip Jessup, Alger Hiss e similares não só dirigiu o curso das coisas na política exterior americana, mas o dirigiu magistralmente, produzindo com exatidão os resultados históricos que tencionava produzir. Já o general Marshal, se foi um idiota útil, não foi um idiota vulgar e sim um portador daquela espécie dolosa de idiotice tão claramente definida por Eric Voegelin como “estupidez criminosa”: a autoridade que ignora aquilo que tem a obrigação de saber.

Se McCarthy muitas vezes errou por tomar como agentes soviéticos meros instrumentos passivos da estratégia comunista, o outro lado errou muito mais, seja por ingenuidade ou malícia, ao tornar invisível a unidade dessa estratégia sob uma multidão de distinções jurídico-morais que não tinham a menor relevância prática para a vitória na Guerra Fria, mas contribuíam bastante para a derrota.

O que se revela na divergência entre Radosh e Evans é, no fim das contas, o abismo entre dois estilos de interpretar a história que parecem ser incompatíveis entre si, mas cuja articulação dialética, e só ela, permite compreender o que se passou. Não deixa de haver aí uma preciosa lição para as cabecinhas iluminadas dos formadores de opinião brasileiros, que se recusam a enxergar a unidade de ação histórica do Foro de São Paulo pelo simples fato de que não há como enquadrá-lo nas categorias jurídico-administrativas do poder oficial.

Cartas a um amigo americano – 2

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 03 de dezembro 2007

Prometi resumir as transformações políticas concomitantes aos fatos econômicos descritos na carta anterior, e é o que vou fazer aqui.

Em 1963, o secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, Luís Carlos Prestes, conseguiu persuadir o governo soviético de que os tempos estavam maduros para a eclosão de uma guerra civil agrária no Brasil. Deviam estar mesmo, pois a morte de um diplomata cubano em acidente aéreo trouxe à luz acidentalmente as provas documentais de que o governo de Havana estava fornecendo armas, dinheiro e instrução para os guerrilheiros associados às Ligas Camponesas que, sob a liderança do deputado Francisco Julião, espalhavam o terror no Nordeste do país. As provas foram entregues ao presidente da República, João Goulart, que em vez de mandar investigar o caso remeteu discretamente os documentos a seu amigo Fidel Castro. Não há nada de estranho nesse episódio de alta traição, de vez que o próprio Goulart pregava abertamente a derrubada do regime, incitando os soldados e sargentos das Forças Armadas à rebelião contra seus superiores. A penetração dos comunistas no governo era tão vasta que em março do ano seguinte Luís Carlos Prestes proclamava num comício: “Estamos no poder.”

É claro que estavam, mas não com muitas garantias. Vários líderes políticos e militares planejavam em segredo a deposição do presidente. Em março de 1964, uma onda de protestos populares, a maior que se vira no país até então, fez com que o general Olympio Mourão Filho se adiantasse aos conspiradores, colocando subitamente as tropas do Estado de Minas Gerais em marcha contra o governo federal. Surpreendidos pela ousadia, até os comandantes militares aparentemente fiéis ao governo acabaram aderindo ao movimento. Goulart e seus cúmplices comunistas foram postos em fuga sem um só tiro.

O novo governo, improvisado sob a chefia do marechal Humberto Castelo Branco, prometeu realizar eleições livres em seis meses, mas depois mudou de idéia. Em pouco tempo as principais lideranças civis associadas ao movimento anti-Goulart foram elas próprias destruídas. O cargo de presidente tornou-se monopólio dos altos oficiais militares, enquanto os comunistas se rearticulavam em organizações terroristas e, entre um atentado e outro, preparavam a guerra de guerrilhas que iria eclodir a partir de 1968.

De Castelo Branco até Emílio Garrastazu Médici, isto é, nos dez primeiros anos subseqüentes à derrubada de Goulart, o regime, embora desmantelasse o sistema democrático, ao menos cumpriu fielmente sua promessa de modernização capitalista da economia. Os anos finais do governo Médici foram tão prósperos que nas últimas semanas do seu mandato o general era um dos presidentes brasileiros mais populares de todos os tempos, malgrado a dureza da repressão às guerrilhas.

Seu sucessor, Ernesto Geisel, deu um giro de 180 graus no curso dos acontecimentos. De um lado, criou uma infinidade de empresas estatais, fazendo da economia brasileira uma das mais centralizadas do mundo. De outro, rompeu o tradicional alinhamento brasileiro com os EUA, restabeleceu as relações com a China, ajudou Cuba a invadir Angola e promoveu o retorno dos comunistas e goulartistas em geral à atividade política. Embora continuasse a ser nominalmente um representante do movimento de 1964, imprimiu ao pais uma violenta guinada para a esquerda. Os esquerdistas jamais lhe demonstraram a menor gratidão, mas o fato é que nos últimos dias do seu governo, bem como ao longo da gestão de seu fiel continuador, João Figueiredo, já era visível que os esquerdistas iriam se tornar em breve a força dominante, ganhando no terreno político mil vezes mais do que haviam perdido na aventura suicida das guerrilhas. Tanto mais porque, submetidas por vinte anos ao jugo militar, as lideranças políticas de direita haviam se enfraquecido e corrompido ao ponto de tornar-se incapazes de agir exceto como parceiras em alianças controladas, sutilmente ou ostensivamente, pela esquerda. Ao mesmo tempo, as facções de esquerda que não haviam participado diretamente das guerrilhas já haviam conquistado, em silêncio, o domínio quase total da grande mídia, do ensino e das instituições culturais em geral, mediante a persistente aplicação da estratégia de “revolução cultural” concebida pelo ideólogo italiano Antonio Gramsci. No começo da década de 90, os valores e o vocabulário da esquerda haviam se arraigado tão profundamente na mentalidade geral das classes média e alta, que o ensaio de retorno ao direitismo, com a eleição de Fernando Collor de Melo, foi reduzido a nada com uma facilidade e uma rapidez impressionantes: alvo da mais violenta campanha de difamação que já se viu neste país, à qual a própria direita acabou aderindo por puro medo de ser difamada também, o presidente empossado em 1990 foi forçado a renunciar em 1992, sob acusações de corrupção jamais comprovadas e aliás impugnadas pela Justiça alguns anos depois, tarde demais para retirar do lixo a carreira de um político falido que hoje experimenta uma tardia e patética reencarnação como bajulador do presidente esquerdista Luís Inácio Lula da Silva.

Ao longo da década de 90, a estratégia denuncista usada contra Collor foi empregada, com sucesso, para destruir as remanescentes lideranças regionais de direita, que, se ainda desfrutaram de uma minguada fatia de poder durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso, foi à custa de se contentar com algumas medidas pró-capitalistas na área econômica (tão necessárias e consensuais que o próprio governo esquerdista subseqüente não quis alterá-las) e de permanecer subservientemente caladas enquanto o presidente alimentava com dinheiro do Estado as forças revolucionárias do MST, introduzia a doutrinação comunista em massa nas escolas brasileiras, erigia em doutrina oficial todo o ideário “politicamente correto” da esquerda light internacional e, com cinismo exemplar, se dizia arrependido do seu passado esquerdista.

Em 2002, estava claro que a direita no Brasil só subsistia enquanto força de pressão na área econômica, sem a menor projeção política, ideológica e cultural. Como ao mesmo tempo que o rumo da política econômica se consolidava no sentido da modernização capitalista (estranhamente fundida com um centralismo burocrático avassalador, numa fórmula paradoxal caracteristicamente brasileira), os remanescentes da direita se iludiram pensando poder salvar-se mediante a mesma aliança subserviente com a esquerda moderada que havia assegurado a sua sobrevivência durante a era Fernando Henrique. As duas vitórias arrasadoras de Luís Inácio Lula da Silva em 2002 e 2006 mataram essa ilusão, fazendo da esquerda a única força política existente no país, enquanto a direita se contenta com a pura defesa de interesses econômicos imediatos, sem qualquer plano político ou possibilidade de inventar um.

A esquerda vitoriosa instalou no governo federal um esquema de corrupção formidavelmente mais vasto do que qualquer coisa que se pudesse imaginar no tempo de Fernando Collor, mas as denúncias a respeito são incapazes de abalar o seu prestígio político no mais mínimo que seja. A direita agonizante, abstendo-se de qualquer esforço ideológico mesmo modesto, aposta tudo nessas denúncias, e perde sempre. Ao mesmo tempo, a violência no país cresce ilimitadamente, chegando a produzir cinqüenta mil homicídios por ano, mas o governo nada faz para combatê-la. Não faz e nem pode, porque está comprometido por uma aliança discreta mas firme com as FARC, acionistas majoritárias do narcotráfico nacional e dirigentes informais das gangues brasileiras como o PCC e o Comando Vermelho. Essa aliança remonta a 1990, quando Luiz Inácio Lula da Silva e Fidel Castro fundaram o Foro de São Paulo, comando geral do movimento comunista no continente, que articula estrategicamente as ações conjugadas de partidos políticos legais com organizações de terroristas e narcotraficantes. A direita brasileira está tão enfraquecida e intimidada que ao longo de mais de uma década e meia se recusou obstinadamente a denunciar esse pacto sinistro, limitando-se a discursar apoliticamente contra os episódios de corrupção menores e mais convencionais, em termos que não se distinguem do que se dizia em 1992 contra Fernando Collor. A esquerda, por seu lado, está tão forte e segura de si que já não tolera nem mesmo esses protestos tímidos e autocastrados: acusa-os de “golpismo direitista” e nem sempre oculta sua intenção de calar as últimas vozes dissonantes, embora não pareça querer fazê-lo por meio da censura direta e sim do assédio judicial, da pressão econômica e da chantagem fiscal.

Na lista negra da História

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de novembro 2007

Na mídia nacional inteira, assim como no meio universitário e, de modo geral, entre as camadas ditas cultas neste país, reina a certeza inabalável de que o senador americano Joseph McCarthy foi uma das piores criaturas já nascidas neste planeta, um mentiroso compulsivo, um caluniador desavergonhado e um perseguidor de inocentes. Crença idêntica vigora nos EUA, mas só entre pessoas que aprenderam História com filmes de Hollywood. Entre as demais sempre restou pelo menos a vaga suspeita de que as coisas não eram bem assim, de que havia realmente uma perigosa infiltração de agentes soviéticos no governo americano, de que talvez muitos deles fossem mesmo aqueles que constavam das execradas listas de “security risks” alardeadas pelo senador.

Durante cinqüenta anos a aposta numa dessas duas hipóteses foi uma questão de preferência política. Agora não é mais. A publicação dos códigos Venona finalmente decifrados pelo FBI (comunicações secretas entre o Kremlin e a embaixada soviética em Washington) e a abertura temporária dos arquivos do Comitê Central do PCUS eliminaram definitivamente a dúvida. Os primeiros historiadores que tiveram acesso a esse material ficaram atônitos. Alguns deles só deram o braço a torcer após longa hesitação e com indisfarçada má-vontade. Hoje sabemos quem mentiu e quem disse a verdade. E quem mentiu não foi Joseph McCarthy. Foi o establishment político, midiático e universitário praticamente inteiro, empenhado em proteger seus comunistas de estimação.

Logo após a publicação de “Venona. Decoding Soviet Espionage in America” por John Earl Haynes e Harvey Klehr em 1999 (Yale University Press), um primeiro esboço das conclusões incontornáveis (que até Haynes e Klehr hesitavam em tirar) apareceu na biografia do senador por Arthur Herman (“Joseph McCarthy. Examining the Life and Legacy of America’s Most Hated Senator”, New York, Free Press, 2000). A reação dos bem-pensantes foi apegar-se aos subterfúgios mais frágeis e rebuscados para poder continuar negando o óbvio. Um sumário dessas reações quase psicóticas foi apresentado por Haynes e Klehr em “In Denial. Historians, Communism and Espionage” (San Francisco, Encounter Books, 2003). Agora, com a estréia do livro ansiosamente aguardado de M. Stanton Evans, “Blacklisted by History. The Untold Story of Senator Joseph McCarthy and His Fight Against America’s Enemies” ( New York , Crown-Random, 2007), a fase substantiva do debate pode se considerar encerrada. Doravante, qualquer insistência na lenda macabra que fazia de McCarthy “um troglodita no esgoto” deve ser condenada como sintoma de desonestidade visceral ou estupidez obstinada. Os fatos revelados por Evans, com esmagadora abundância de provas, são os seguintes:

1. Os documentos principais que atestavam a infiltração comunista no governo americano simplesmente desapareceram dos arquivos oficiais. São milhares de páginas arrancadas, numa operação criminosa destinada a forjar as aparências de credibilidade que serviram de base à demonização do senador Joe McCarthy. Por ironia, os dados faltantes acabaram sendo supridos, em grande parte, pela documentação soviética.

2. Não só havia agentes soviéticos infiltrados nos altos postos do governo de Washington desde os anos 30, mas eles eram em número muito maior do que o próprio McCarthy suspeitava. A influência que exerceram foi tão vasta e profunda que chegou a determinar os rumos da política exterior americana, mediante bem urdidas operações de desinformação, em episódios tão fundamentais como a Revolução Chinesa e a tomada do poder pelos comunistas na Iugoslávia. Nos dois casos, uma enxurrada multilateral de informações falsas induziu o governo americano a trair seus aliados e a ajudar seus inimigos, semeando as tempestades que viriam a desabar sobre ele próprio no período da Guerra Fria.

3. Entre os suspeitos apontados por McCarthy, invariavelmente apresentados pela mídia e consagrados pela ficção histórica como vítimas de perseguição injusta, não apenas não havia inocentes, mas nenhum deles era sequer um puro militante ideológico: não se tratava de meros “comunistas”, mas de agentes pagos da KGB e do serviço secreto militar soviético, o GRU.

Bem sei que a revelação desses fatos não mudará em nada a atitude ou o vocabulário das Elianes Catanhedes, Emires Sáderes, Mauros Santayanas e Folhas de S. Paulo da vida. Mesmo que algum editor brasileiro tenha a coragem de publicar os livros acima mencionados, coisa improvável, nada pode obrigar os tagarelas iluminados a lê-los e a confrontá-los com suas crenças mais queridinhas. E é preciso levar sempre em conta aquilo que dizia Goethe: “Muitas pessoas não abdicam do erro porque devem a ele a sua subsistência.” Ao confiar seu destino às virtudes salvadoras da elite esquerdista, o Brasil disse um adeus definitivo ao desejo de conhecer. Se não queremos saber nem de onde surgiu a balela da participação americana no golpe de 1964 (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/sugestao.htm ), por que haveremos de corrigir nossa visão fantasiosa da própria história americana? Diante dos fatos medonhos que atestam a mendacidade ilimitada daqueles que escolhemos como nossos professores de moral, reagimos com o horror do poeta espanhol ante a “sangre derramada” de seu amigo toureiro: “No, yo no quiero verla.” Progredimos da burrice endêmica à ignorância irreversível. A sombra que lançamos sobre o passado já começou a encobrir o nosso futuro. Logo será tarde demais para tentar removê-la.

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