Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de novembro 2007

Na mídia nacional inteira, assim como no meio universitário e, de modo geral, entre as camadas ditas cultas neste país, reina a certeza inabalável de que o senador americano Joseph McCarthy foi uma das piores criaturas já nascidas neste planeta, um mentiroso compulsivo, um caluniador desavergonhado e um perseguidor de inocentes. Crença idêntica vigora nos EUA, mas só entre pessoas que aprenderam História com filmes de Hollywood. Entre as demais sempre restou pelo menos a vaga suspeita de que as coisas não eram bem assim, de que havia realmente uma perigosa infiltração de agentes soviéticos no governo americano, de que talvez muitos deles fossem mesmo aqueles que constavam das execradas listas de “security risks” alardeadas pelo senador.

Durante cinqüenta anos a aposta numa dessas duas hipóteses foi uma questão de preferência política. Agora não é mais. A publicação dos códigos Venona finalmente decifrados pelo FBI (comunicações secretas entre o Kremlin e a embaixada soviética em Washington) e a abertura temporária dos arquivos do Comitê Central do PCUS eliminaram definitivamente a dúvida. Os primeiros historiadores que tiveram acesso a esse material ficaram atônitos. Alguns deles só deram o braço a torcer após longa hesitação e com indisfarçada má-vontade. Hoje sabemos quem mentiu e quem disse a verdade. E quem mentiu não foi Joseph McCarthy. Foi o establishment político, midiático e universitário praticamente inteiro, empenhado em proteger seus comunistas de estimação.

Logo após a publicação de “Venona. Decoding Soviet Espionage in America” por John Earl Haynes e Harvey Klehr em 1999 (Yale University Press), um primeiro esboço das conclusões incontornáveis (que até Haynes e Klehr hesitavam em tirar) apareceu na biografia do senador por Arthur Herman (“Joseph McCarthy. Examining the Life and Legacy of America’s Most Hated Senator”, New York, Free Press, 2000). A reação dos bem-pensantes foi apegar-se aos subterfúgios mais frágeis e rebuscados para poder continuar negando o óbvio. Um sumário dessas reações quase psicóticas foi apresentado por Haynes e Klehr em “In Denial. Historians, Communism and Espionage” (San Francisco, Encounter Books, 2003). Agora, com a estréia do livro ansiosamente aguardado de M. Stanton Evans, “Blacklisted by History. The Untold Story of Senator Joseph McCarthy and His Fight Against America’s Enemies” ( New York , Crown-Random, 2007), a fase substantiva do debate pode se considerar encerrada. Doravante, qualquer insistência na lenda macabra que fazia de McCarthy “um troglodita no esgoto” deve ser condenada como sintoma de desonestidade visceral ou estupidez obstinada. Os fatos revelados por Evans, com esmagadora abundância de provas, são os seguintes:

1. Os documentos principais que atestavam a infiltração comunista no governo americano simplesmente desapareceram dos arquivos oficiais. São milhares de páginas arrancadas, numa operação criminosa destinada a forjar as aparências de credibilidade que serviram de base à demonização do senador Joe McCarthy. Por ironia, os dados faltantes acabaram sendo supridos, em grande parte, pela documentação soviética.

2. Não só havia agentes soviéticos infiltrados nos altos postos do governo de Washington desde os anos 30, mas eles eram em número muito maior do que o próprio McCarthy suspeitava. A influência que exerceram foi tão vasta e profunda que chegou a determinar os rumos da política exterior americana, mediante bem urdidas operações de desinformação, em episódios tão fundamentais como a Revolução Chinesa e a tomada do poder pelos comunistas na Iugoslávia. Nos dois casos, uma enxurrada multilateral de informações falsas induziu o governo americano a trair seus aliados e a ajudar seus inimigos, semeando as tempestades que viriam a desabar sobre ele próprio no período da Guerra Fria.

3. Entre os suspeitos apontados por McCarthy, invariavelmente apresentados pela mídia e consagrados pela ficção histórica como vítimas de perseguição injusta, não apenas não havia inocentes, mas nenhum deles era sequer um puro militante ideológico: não se tratava de meros “comunistas”, mas de agentes pagos da KGB e do serviço secreto militar soviético, o GRU.

Bem sei que a revelação desses fatos não mudará em nada a atitude ou o vocabulário das Elianes Catanhedes, Emires Sáderes, Mauros Santayanas e Folhas de S. Paulo da vida. Mesmo que algum editor brasileiro tenha a coragem de publicar os livros acima mencionados, coisa improvável, nada pode obrigar os tagarelas iluminados a lê-los e a confrontá-los com suas crenças mais queridinhas. E é preciso levar sempre em conta aquilo que dizia Goethe: “Muitas pessoas não abdicam do erro porque devem a ele a sua subsistência.” Ao confiar seu destino às virtudes salvadoras da elite esquerdista, o Brasil disse um adeus definitivo ao desejo de conhecer. Se não queremos saber nem de onde surgiu a balela da participação americana no golpe de 1964 (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/sugestao.htm ), por que haveremos de corrigir nossa visão fantasiosa da própria história americana? Diante dos fatos medonhos que atestam a mendacidade ilimitada daqueles que escolhemos como nossos professores de moral, reagimos com o horror do poeta espanhol ante a “sangre derramada” de seu amigo toureiro: “No, yo no quiero verla.” Progredimos da burrice endêmica à ignorância irreversível. A sombra que lançamos sobre o passado já começou a encobrir o nosso futuro. Logo será tarde demais para tentar removê-la.

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