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Alma de crocodilo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 07 de março de 2008

Em contraste com a minguada votação pró-Chávez no último plebiscito, Álvaro Unibe é, dentre os governantes latino-americanos, o único que há anos se mantém, inabalável, acima dos oitenta por cento de aprovação popular, precisamente em razão do combate sem tréguas que move contra as Farc. Quem matou Raul Reyes não foi o governo Uribe: foi o povo colombiano.

Se, em compensação das suas ações militares firmes e decididas, o presidente colombiano é brando nas palavras e sempre disposto a negociar, é porque sabe que não tem contra si apenas um grupo narcoguerrilheiro e um ditador insano, mas uma poderosa organização de dimensões continentais – o Foro de São Paulo – e, mais ainda, um lobby internacional bilionário, onde todos os partidos de esquerda do mundo se aliam ao establishment “progressista” dos EUA. Os interesses que este último tem no caso não são só de ordem política, já que vem do narcotráfico boa parte do dinheiro que circula pela Bolsa de Nova York, cujo ex-presidente, Richard Grasso, tinha excelentes relações com o falecido Raul Reyes (v. Por trás da subversão). Também entram no quadro os recursos do petróleo venezuelano e os do financiador-mor da esquerda mundial, George Soros, que subsidiam inumeráveis carreiras de senadores e deputados norte-americanos. Por fim, não há como esconder que a própria OEA é hoje em dia uma espécie de circo chavista.

Falando manso para acalmar os leões, Álvaro Uribe tem conseguido sobreviver o bastante para poder pisar nas serpentes da narcoguerrilha sempre que uma delas deixa a cabeça à mostra. Segundo leio na “Notalatina” e nas mensagens de Heitor de Paola, respectivamente a melhor fonte de notícias sobre a subversão latino-americana e o melhor comentarista internacional do Brasil (ambos fora da grande mídia, et pour cause ), a cabeça de Raul Reyes veio à mostra por um descuido de Hugo Chávez, que em seguida, compreensivelmente, despejou sobre o vizinho colombiano e “los imperialistas” todo o ódio que sua própria mancada lhe inspirava (leiam tudo em http://notalatina.blogspot.com/ e www.midiasemmascara.com.br nos próximos dias).

Por outro lado, é claro que os apelos grandiloqüentes à “ordem internacional” que Uribe teria supostamente violado não têm nada de sincero: são apenas os trejeitos usuais da “guerra assimétrica”, que astutamente lança sobre um dos lados todo o peso das obrigações jurídicas e morais, enquanto ajuda o outro a camuflar a ilegalidade e imoralidade das suas ações. Quem, afinal, violou o espaço territorial alheio? O que cruzou a fronteira para caçar bandidos ou o que fornecia aos bandidos abrigo e ajuda para suas incursões criminosas no país vizinho? Amparando e armando as Farc, Equador e Venezuela vêm atacando o território colombiano há tempos, e nem uma palavra contra isso se ouviu jamais dos srs. José Miguel Insulza, Marco Aurélio Garcia e tutti quanti . É o mesmo que se passa no Oriente Médio: Israel está lá para levar bombas todos os dias, sob o plácido silêncio do mundo; ao mais mínimo sinal de revide, a “consciência jurídica internacional” cai de pau nos malditos judeus. Não há quem não tenha conhecido, na escola, um desses meninos safados que vivem batendo nos menores e, ao primeiro e tardio sinal de reação, saem lacrimejando e vão contar tudo para a professora. Alma de esquerdista é isso. Foram os esquerdistas que ensinaram os crocodilos a chorar.

Critério certeiro

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 13 de novembro de 2005

Mais de uma vez aludi aqui à máxima leninista “Acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é.” Ela fornece um critério certeiro para discernir a lógica de muitas manobras estratégicas e táticas do esquerdismo organizado: sempre que os partidos de esquerda lançam uma campanha de denúncias ferozes contra algum delito real ou imaginário, é porque eles mesmos, naquele preciso instante, estão preparando ou praticando outro crime da mesma espécie e de dimensões incalculavelmente maiores. Isso é assim desde os tempos do próprio Lênin, e o sr. Fidel Castro o ilustra novamente ao tentar alarmar a platéia quanto a uma impossível invasão americana do continente no instante mesmo em que vai preparando um ataque à Colômbia. Igualmente pedagógico é o timing dos esquerdistas chiques do Partido Democrata americano, que armam um escarcéu dos diabos acusando o vice-presidente de vazar informações sobre uma inócua agente da CIA ao mesmo tempo que abrem um rombo na segurança nacional revelando os locais onde o Exército guarda importantes terroristas presos.

Mas os exemplos locais não são menos edificantes.

O começo da década de 90, o tempo da “campanha pela ética na política”, da gritaria anti-Collor e das CPIs em que o sr. José Dirceu brilhava diagnosticando conspirações e golpes de Estado em cada intercâmbio chinfrim de propinas e favores, quase sempre aliás inexistentes, foi precisamente a época em que ele próprio e seus companheiros de cúpula do PT começavam a montar, por trás da cena, o mais vasto empreendimento de ladroagem política já observado neste país.

Imaginar que fosse tudo coincidência, que uma coisa não tivesse nada a ver com a outra, que o sr. José Dirceu fosse apenas um caso de personalidade dupla, passando do papel de Eliott Ness ao de Al Capone sem nem se dar conta da transformação, é abusar do direito à estupidez. É claro que a campanha de ódio moralizante foi, desde o início, parte integrante da estratégia criminosa, como a camuflagem faz parte de uma operação de guerrilhas. Por isso não tem cabimento dizer que a roubalheira do Mensalão é um desvio, uma ruptura com os belos ideais petistas do passado. Os belos ideais eram instrumentos da roubalheira, e o mais óbvio sinal disso era que jamais se traduziam em atos de virtude mas somente em discursos histéricos contra os pecados alheios, sem ter nem ao menos a prudência de distinguir os verdadeiros dos inventados.

Na época, tendo aprendido com um sábio guru que não existe genuíno ódio ao mal quando não acompanhado do correspondente amor ao bem, não me deixei enganar pelas intenções nominalmente elevadas da retórica de acusação, incomparavelmente mais brutal e implacável do que as tímidas especulações, entremeadas de atenuantes lisonjeiros, que hoje o PT rotula hipocritamente de “massacre”. Afirmei resolutamente que o abuso malicioso do apelo à ética não poderia senão embotar ainda mais o senso moral da nação, prenunciando devassidões perto das quais os Anões do Orçamento, já então pequenos demais para o barulho que se fazia em torno deles, se tornariam miniaturas de anões num bolo de aniversário. Fundado na análise das discussões internas do PT lidas à luz da estratégia gramsciana que as orientava, meu prognóstico estritamente objetivo foi desprezado, com sorrisos de superioridade, por todos os sabichões da mídia, do empresariado, do judiciário e até das Forças Armadas a quem tive a ocasião de apresentá-lo. Se lhe tivessem prestado atenção, muitas perdas e humilhações teriam sido poupadas a este país já esgotado. Não hesito em dizer que a indiferença dessas pessoas foi irresponsável, covarde e criminosa. Mas seria tolice esperar que se arrependessem. A presteza solícita com que hoje aceitam as desculpas mais esfarrapadas para esquivar-se ao dever de investigar a sério a denúncia da ajuda ilegal de Cuba à candidatura Lula mostra que a passagem do tempo não lhes ensinou nada nem lhes ensinará jamais coisa alguma. Nesse sentido, os Dirceus, os Lulas e tutti quanti podem dormir tranquilos. Nada lhes acontecerá. É, no fundo, uma simples questão de justiça. Quem poderia ter tido a autoridade moral para puni-los tratou de vendê-la por pequenas vantagens, às vezes apenas por uns minutos de sossego anestésico, longe da própria consciência. Um povo que tem horror à verdade merece ser enganado indefinidamente.

Agitação obscena

 Olavo de Carvalho

 

O Globo, 18 de setembro de 2004

 

Em artigo recém-publicado no Wall Street Journal, Mary Anastasia O’Grady alerta que a China está preenchendo o vazio deixado na América Latina pela política do Departamento de Estado. Herança mórbida de Bill Clinton que George W. Bush largou inalterada para concentrar-se nos problemas do Oriente Médio, essa política consiste de: (1) apoio às intromissões do FMI na política econômica local, as quais colocam os americanos numa posição antipática sem lhes trazer benefício nenhum; (2) “combate às drogas” por meio de uma estratégia suicida que só beneficia as Farc e os cocaleros; (3) ajuda maciça a ONGs esquerdistas empenhadas em fazer a caveira dos militares; (4) ingênua complacência ante valentões tipo Hugo Chávez.

Desde o início esse cardápio parecia mesmo planejado para favorecer a ascensão do esquerdismo e abrir as portas da AL às ambições chinesas. Nada mais natural, já que a esquerda aí ama Bill Clinton de paixão e o governo da China o ajudou com dinheiro em campanhas eleitorais. Mas, se a arraigada boa-fé dos eleitores americanos os impediu de atinar com a lógica perversa por trás do esquema, hoje as conseqüências da aplicação dele são tão vistosas quanto a onda continental de anti-americanismo que as manifesta e as dissimula. (Sobretudo dissimula: pois quem poderia suspeitar que a esquerda triunfante deve seus louros ao governo americano, justamente no momento em que mais esbraveja contra ele da boca para fora?)

A sra. O’Grady observa que aqueles quatro pontos não são correspondem em nada às convicções do atual presidente — o qual, com certeza, há de suprimi-los tão logo um segundo mandato lhe dê forças para isso.

A ascensão das esquerdas na América Latina é um epifenômeno: uma aparência superficial gerada por um fato mais discreto e mais profundo, originado nos EUA. Suprimido o fato, a aparência se desfará por si própria, como uma bolha de sabão. E os que apostaram nela ficarão, uma vez mais, com cara de tacho.

Daí o sentimento de urgência apocalíptica, a agitação obscena da torcida latino-americana pró-Kerry. Agitação inútil: o candidato democrata enrola-se cada vez mais em tentativas de manchar a reputação de Bush, que retornam sobre a sua pessoa com força multiplicada. Foi ele quem, ao fazer-se de herói de guerra e depreciar o adversário como soldado relapso, chamou para fora do armário o esquadrão de esqueletos que agora, com uniformes da Marinha, vêm assombrá-lo em pesadelos. Foi ele quem, apelando ao expediente sujo das imputações criminais, se expôs ao risco de investigações que ameaçam trazer à luz a sua participação num complô de homicídio. Resultado: segundo a Gallup e a Zogby, que sabem mais do que a mídia brasileira, ele tem 42 por cento das intenções de voto, contra os 55 por cento de Bush. O problema da candidatura Kerry é John Kerry.

É preciso alguém estar mesmo muito desesperado, para chegar a apostar tudo num clone geneticamente defeituoso de Bill Clinton.

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Com Das Casernas à Redação. A Era de Turbulências, publicado esta semana pela Editora UniverCidade, Paulo Mercadante nos dá mais uma prova de seu talento para apreender a unidade de sentido por trás de acontecimentos heterogêneos. É, antes de tudo, a história de um grande jornal — este mesmo jornal em que tenho a honra de escrever –, contada com foco nos três personagens que lhe deram vida: Irineu, Roberto e Rogério Marinho. Mas O Globo não aparece aí apenas como empresa jornalística, e sim como expressão de um movimento político decisivo, o tenentismo, desde suas origens no começo do século XX até seu declínio na era Geisel. Não creio que algum dia a trajetória de uma publicação brasileira tenha sido delineada sobre um fundo histórico tão vasto, nem com uma visão tão aguda das ligações entre jornalismo, política e cultura.

Sempre fico sem jeito para elogiar Paulo Mercadante, porque temo que a minha admiração ilimitada pareça devoção boboca. Mas como poderia a amizade que lhe tenho amortecer minha inteligência crítica, se tudo o que leio dele revigora essa inteligência mais do que qualquer outro produto da farmacopéia cultural brasileira?

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