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Explicação terapêutica

Olavo de Carvalho


Época, 12 de maio de 2001

Por que o marxismo é uma doença da alma e por que os doentes fogem do tratamento

Quando digo que a honestidade intelectual é incompatível com a contaminação marxista da inteligência, não há nisso nenhuma “tomada de posição ideológica”. Há, sim, a conclusão de mais de 20 anos de estudos, durante os quais me abstive de opinar em matéria política justamente para evitar que uma “tomada de posição” falseasse minha visão do assunto.

Uma das conclusões a que cheguei é que não pode haver honestidade se o opinador não distingue, em suas idéias, o que é conhecimento da realidade e o que é ativa intervenção nela: ninguém pode escapar da ilusão e da mentira se seus pensamentos são profecias auto-realizáveis.

Ora, no marxismo, especulação e ação vêm essencialmente confundidas porque ele rejeita in limine qualquer conhecimento puramente teórico ou contemplativo. Para o marxista, a separação de teoria e prática é “formalismo burguês”: só podemos conhecer a realidade mergulhando de cabeça no processo ativo de sua transformação. Essa idéia penetrou fundo na mentalidade dos intelectuais e hoje impera, seja como dogma estabelecido, seja como pressuposto inconsciente, sobre todos os debates públicos neste país ou onde quer que o marxismo tenha exercido uma influência determinante.

Acontece que essa é talvez a idéia mais enganosa que alguém já teve. Enquanto não a varrermos das cabeças pensantes, não haverá honestidade, sinceridade e realismo em nenhuma discussão política ou cultural.

A “união de teoria e prática” exerce sobre as consciências um apelo muito forte porque nela reconhecem, instintivamente, sua própria linguagem interior, ignorada pelo realismo frio das filosofias científicas. Na esfera da alma individual, teoria e prática são de fato inseparáveis. Quando tomo consciência de um dado de minha realidade pessoal, o conhecimento adquirido se incorpora, imediatamente, a essa própria realidade. O preguiçoso que toma consciência de que é preguiçoso já não é apenas um preguiçoso: é um preguiçoso consciente. A consciência da preguiça já não é pura visão teórica: ela age imediatamente sobre a realidade conhecida e a transforma.

Ora, a escala do coletivo, do histórico, do social, que é onde o marxismo e seus resíduos afirmam resolutamente a união de teoria e prática, é precisamente onde ela não pode se realizar de maneira alguma. Supondo-se, por exemplo, que a visão marxista da classe proletária fosse certa, nem por isso ela se impregnaria automaticamente na prática das lutas proletárias como a consciência da preguiça se impregna na alma do preguiçoso. Entre a teoria na mente de Marx e a revolução proletária no mundo real, algumas décadas de propaganda teriam de ser percorridas. Não há transmissão automática dos pensamentos dos filósofos às ações da multidão. Na verdade, 150 anos de marxismo não bastaram para metê-lo na cabeça dos trabalhadores do mundo, malgrado os prodigiosos esforços da propaganda soviética.

Ao afirmar a unidade intrínseca e essencial daquilo que só pode ser unido por muito trabalho e artifício, o marxismo falseia, na base, os dois pilares da inteligência humana: o conhecimento e a ação.

Quem quer que tenha se deixado levar pelos encantos do marxismo está gravemente contaminado por uma mentira fundamental, que, se não for erradicada, acabará por falsear todo o seu pensamento. Só que, como na escala individual consciência e realidade estão de fato unidas, a falsidade não será só do pensamento: será também da personalidade, dos atos, da vida.

Eis por que combater o marxismo não é só combater uma “opinião” como qualquer outra: é convocar de volta à autenticidade da vida seres humanos que alienaram suas existências no altar de uma farsa e que já não sabem como sair dela. É psicoterapia, no sentido mais nobre da palavra. Se me odeiam por praticá-la, isso reflete apenas o terror pânico com que os fantasmas da neurose reagem ante a chegada da elucidação terapêutica.

Medindo as palavras

Olavo de Carvalho

Época, 5 de maio de 2001

O maior criminoso do Brasil está preso, mas ninguém ousa falar mal dele

Vocês já repararam no tratamento discreto, macio, quase gentil que as classes falantes têm dado a Fernandinho Beira-Mar desde que foi preso? Imprensa, políticos, intelectuais – ninguém parece ter um pingo de raiva desse homem responsável por tantas mortes, por tanto sofrimento, por tanta iniqüidade. Ninguém o chama de assassino, de genocida, de monstro, de nenhum daqueles nomes que tão facilmente vêm à boca de todos quando se referem a desarmados vigaristas de colarinho branco ou até mesmo à pessoa do presidente da República. Nenhuma multidão em fúria, convocada pelos autodesignados porta-vozes dos sentimentos populares, se reúne na porta da delegacia para xingá-lo como se xingou Luiz Estevão. Nenhum moralista, com lágrimas de indignação nos olhos, condena como insulto à memória de inumeráveis vítimas os cuidados paternais que o traficante recebe na cadeia, como tantos julgaram um acinte a prisão especial que, em obediência à lei, as autoridades deram ao juiz Lalau, malandro septuagenário incapaz de matar uma galinha.

Não obstante, o homem que distribui drogas a crianças nas escolas e mata quem tenta impedi-lo é, obviamente, um assassino, um genocida, um sociopata amoral e cínico. Aplicados a suspeitos de crimes incruentos, esses termos são figuras de expressão, hipérboles descomunais, flores de plástico de uma retórica postiça. Usados para definir Luiz Fernando da Costa, são termos exatos, precisos, quase científicos. A liberalidade tropical no emprego das hipérboles para falar de quem rouba contrasta singularmente com a inibição de usar as palavras em seu sentido literal para falar de quem mata.

De onde vem essa assustadora inversão das cotações de palavras, homens e crimes na linguagem brasileira? De modo geral, ela reflete, inequivocamente, a influência da “revolução cultural” gramsciana que, há 40 anos, com a obstinação sutil das bactérias e dos vírus, contamina de antivalores comunistas – sem esse nome, é claro – os sentimentos e as reações de nossa opinião pública.

Mas, no caso presente, há algo mais que isso – algo de infinitamente mais sinistro. Há o temor instintivo de revelar a uma luz muito direta e crua a feiúra de um sócio das Farc. Pois essa luz ameaçaria refletir-se sobre a imagem da guerrilha e, portanto, de todos os seus amigos e apologistas: Fidel Castro, o presidente Chávez, Lula, o governador Olívio Dutra, o MST, a esquerda quase inteira.

Falar de Fernandinho Beira-Mar com uma linguagem proporcional à gravidade de seus crimes seria – para usar a expressão consagrada do jargão militante – “dar munição ao inimigo”. Naquilo que dentro de uma cabeça esquerdista faz as vezes de consciência moral, não há pecado maior. Portanto, moderação nas palavras! Abandonado há tempos em nome da “ética”, da “participação” e do “dever de denunciar”, o estilo noticioso frio, factual, sem comentários, é de repente retirado da gaveta e mostra toda a sua inesperada serventia: num ambiente de furor moralista e indignação oratória, o relato neutro, asséptico, soa quase como um elogio.

E não pensem que, para pôr em ação esses anticorpos verbais, tenha sido necessário emitir uma palavra de ordem, distribuir avisos de algum comitê central, mover alguma complexa cadeia de comando. Nada disso. A reação já se produz sozinha, por automatismo, quase inconscientemente. Todos mentem em uníssono – e ninguém tem culpa porque ninguém mandou ninguém fazer nada.

É precisamente esse domínio tácito sobre as consciências, essa redução coletiva dos formadores de opinião ao estado sonambúlico de inocentes úteis, que Antonio Gramsci denominava “hegemonia” – o prelúdio psicológico à tomada do poder. A hegemonia já está, portanto, conquistada. Se definitivamente ou não, isso depende. Depende de que ninguém diga o que está acontecendo. E é por isto mesmo que insisto em dizê-lo.

Despertando da hipnose

Olavo de Carvalho

Época, 28 de abril de 2001

Pela primeira vez um homem de esquerda percebe que no Brasil não existe direita

Quem imagina que a imprensa se alimenta de novidades não tem a menor idéia do que se passa na cabeça de jornalistas. Eles gostam mesmo é da novidade-padrão, indefinidamente requentável com pequenas variações. O motivo é simples: ela é fácil de escrever e de efeito garantido. Denúncias de corrupção, fofocas do beautiful people, taxas de desemprego, brigas de políticos infundem no redator aquela segurança do mágico que vai brilhar com o mesmo truque, pela milésima vez, ante uma platéia que já o esqueceu 999 vezes. Quando você tem pressa e o trabalho é muito – duas condições que jamais falham nas redações –, a melhor notícia é aquela que já vem escrita.

A novidade autêntica, inédita, sem nome no catálogo, é um problema, um abacaxi: o sujeito não sabe nem por onde começar. Faltam-lhe os esquemas verbais, os lugares-comuns, os argumentos de apelo automático sem os quais mesmo o redator mais talentoso fica desamparado como uma tartaruga sem casca. O inédito, o esquisito, o incatalogável requer meios de expressão também inéditos. Exige algo mais que técnica jornalística: exige uma inventividade literária que raramente consente em dar o ar de sua graça no alvoroço do “fechamento”. Por falta de meios de expressão, às vezes aquilo que é mais interessante, mais urgente, mais útil vai para a lata de lixo, inapelavelmente condenado pela fatalidade da regra wittgensteiniana: “O que não se pode falar, deve-se calar”. E, quando casos desse tipo se acumulam, a imprensa deixa de cumprir seu papel de abrir para o leitor as janelas do mundo. Torna-se um repressivo “guardião do portal”, incumbido de lacrar os horizontes e manter a imaginação popular presa do repetitivo e do convencional.

Por isso mesmo é uma alegria ler o que li na coluna de Zuenir Ventura da semana passada. Pela primeira vez um jornalista reconhecidamente “de esquerda” dá uma espiada no mundo e, ao voltar, repara que desembarcou num país anormal – num país onde não existe direita. Normalmente, seria preciso ser direitista para notar isso, mas no Brasil nem os direitistas são direitistas o bastante para chegar a tamanho atrevimento de percepção. Em geral admitem o uso consagrado que faz do direitismo uma modalidade de crime hediondo e dizem que são “de centro”, sentindo-se mais ou menos como as prostitutas quando dizem que são massagistas.

Mas a criminalização da direita não se produziu sozinha. Ela é o resultado de meio século de “revolução cultural” – a ocupação esquerdista de todos os espaços, que inclui, como área privilegiada, o espaço verbal. E isso vai muito além do domínio sobre a linguagem dos jornais e das escolas. Os mestres soviéticos de desinformação recomendavam especial empenho na redação de dicionários. A partir dos anos 50, os principais dicionários em circulação no Brasil são verdadeiros receituários de semântica esquerdista, a qual assim se integra no uso corrente como se fosse a coisa mais normal e apolítica do mundo, rejeitando para o limbo do indizível, portanto impensável, tudo o que escape da ortodoxia consagrada. Passadas duas gerações, a anormalidade da situação transfigurou-se em normalidade postiça, e aí, mesmo quando o sujeito viaja, não lhe ocorre reparar numa diferença como aquela que Zuenir assinalou: pois o indizível e impensável se torna também imperceptível, mesmo quando nos posa diante dos olhos da cara com a sutileza de um hipopótamo.

É preciso ser muito inteligente e muito sincero para romper o cerco da repetição dessensibilizante e, num relance, perceber algo que está fora da pauta mental admitida. Quando os homens dormem, dizia Heráclito, eles se fecham cada qual em seu mundo; quando acordam, voltam todos ao mesmo mundo. Não fica bem a gente criticar ou elogiar, nas páginas de uma revista, os colegas de redação. Mas Zuenir ajudou o leitor a emergir da hipnose brasileira para voltar ao mundo de todos os homens. Que mais se pode exigir de um jornalista?

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