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Brincar de genocídio

Olavo de Carvalho

Época, 23 de Junho de 2001

É o que a gente faz quando aceita falar respeitosamente do comunismo

Não há insolência maior nem mais pérfida armadilha verbal que exigir daquele que combate o comunismo que o faça “em tom respeitoso”. Vou lhe mostrar o que acontece quando você, por medo de ser chantageado em nome de supostas regras de polidez do debate democrático, cede a essa exigência.

Logicamente falando, só há dois motivos possíveis para continuar respeitando uma ideologia depois que ela matou 100 milhões de pessoas: ou você admite que esse resultado letal foi um desvio acidental de percurso, um detalhe supérfluo na evolução histórica de um lindo ideal, ou parte logo para a legitimação ostensiva do genocídio. Ou você defende o marxismo mediante a supressão do nexo essencial entre fatos e idéias que é a própria base dele, ou o enaltece mediante um argumento que faz dele uma apologia do crime. No primeiro caso, você é um idiota; no segundo, é um monstro de amoralidade e frieza. Não há como escapar dessa alternativa quando se aceita apostar 100 milhões de vidas num ameno e respeitoso joguinho de idéias.

Tão logo entra nisso, com boa-fé e sem se dar conta das implicações morais de sua decisão, você se desliga de sua consciência profunda – que percebe essas implicações perfeitamente bem – e passa a raciocinar só com a periferia de seu ser pensante. Rompido o elo entre o coração e a máquina de tagarelar, você já é um esquizóide ao menos honorário: e quando a patologia adquirida começa a se manifestar em sintomas – um sentimento de culpa difusa, um medo sem razão, umas inibições súbitas e inexplicáveis – você já não tem a menor condição de saber de onde eles vieram.

Todas as neuroses, dizia Igor Caruso, são produzidas pela repressão da consciência moral, da voz interior que nos indica o sentido profundo de nossas escolhas e a lógica implacável de suas conseqüências. Quando você sufoca a voz da consciência, é essa lógica que você expele de seu horizonte de visão. Por não querer arcar com o peso da escolha moral consciente, você entrega as rédeas de seu destino à mecânica do inconsciente – ou ao primeiro que, em torno, deseje pegá-las. E quem mais desejaria pegá-las que o manipulador que sonha em conduzi-lo pela argola do nariz, como um boi sonso, a transigências e complacências que lúcido e consciente você não poderia aceitar de maneira alguma?

Então, ao admitir que matar ou não matar 100 milhões de pessoas é apenas uma livre escolha entre “linhas ideológicas”, você já nem pode se dar conta de que isso é o mesmo que um assassino declarar que entre ele e sua vítima nada mais se passou que uma divergência quanto à interpretação do Código Penal.

Contra essa insinuação, subentendida na exigência acima referida, é preciso reiterar com todo o vigor: a condenação do comunismo não é um ato político ou ideológico, é um ato moral. Não é livre escolha, é obrigação elementar e indeclinável como a condenação do nazismo e do fascismo. A moral transcende infinitamente a esfera das ideologias e dos jogos de poder. Submetê-la a essa esfera é prostituí-la, e ninguém a prostitui mais que o comunista que, após tê-la assim subjugado, alardeia querer “ética na política”, com uma piscadela maliciosa ao círculo dos iniciados que sabem aonde ele quer chegar com isso.

Contra esse jogo é preciso não esquecer jamais que comunismo é genocídio. É genocídio na teoria, é genocídio na estratégia, é genocídio na prática historicamente conhecida e é genocídio nos métodos atuais com que subsiste em Cuba, se fortalece na China e se propaga na Colômbia. É genocídio na apologia da violência por Karl Marx, na técnica leninista do terror sistemático, na arquitetura stalinista e maoísta do Estado-presídio cuja máxima eficiência, segundo técnicos da KGB, foi alcançada em Cuba. O comunismo prega o genocídio, justifica o genocídio, orgulha-se do genocídio e, onde quer que tenha reinado, sempre viveu do genocídio. Discuti-lo respeitosamente é admitir que exista o direito moral à propaganda do genocídio.

Crescendo em silêncio

Olavo de Carvalho


Época, 16 de junho de 2001

Quanto mais forte o comunismo se torna no Brasil, menos se pode falar dele

Nunca no mundo se publicaram tantos e tão bons livros sobre o comunismo quanto nestes anos que se seguiram ao desmantelamento da URSS. O motivo é óbvio: a abertura, ainda que parcial, dos Arquivos do Comitê Central do PCUS, um tesouro inesgotável para os estudiosos. Não é de espantar que, rompida a barreira do segredo estatal, tantos investigadores se precipitem sobre os registros de um passado macabro para decifrar o que foi certamente um dos maiores mistérios da História humana: a genuflexão voluntária de milhões de homens cultos ante o altar de uma doutrina grotesca, assassina e intrinsecamente absurda.

Todos os paradoxos, todas as contradições da alma humana se espremem e se fundem na composição desse mistério de iniqüidade: compreendê-lo para não reencená-lo é o dever número 1 de quem tenha assimilado a lição de Sócrates segundo a qual “uma vida não examinada não é digna de ser vivida”.

Mas o que espanta não é a onda mundial de curiosidade que fez de Moscou a meca dos historiadores. É o absoluto desinteresse que, no Brasil, se opõe à divulgação de suas descobertas.

Mais que depressa, no começo dos anos 90, no Brasil o comunismo foi decretado coisa do passado, e quem se interessasse em relembrar-lhe os crimes e atrocidades se tornava suspeito de fanatismo macarthista, se não de obsessão monomaníaca merecedora de cuidados psiquiátricos. Esquecer, silenciar – ou na melhor das hipóteses despedir-se do assunto com meia dúzia de lugares-comuns aceitos como explicação definitiva – tornou-se uma lei natural a que somente os anormais poderiam furtar-se.

Mas anormal, digo eu, é um cérebro capaz de julgar mera coincidência que essa década de esquecimento do comunismo fosse também a de maior expansão da influência comunista sobre os destinos do país.

Não me refiro só ao crescimento eleitoral da esquerda. Refiro-me à conquista do monopólio da pregação política nas escolas (onde a hipótese de um discurso anticomunista é hoje inconcebível) e à consolidação de certos direitos morais adquiridos que são ostensivamente negados ao restante da população.

Um movimento comunista abertamente violento é hoje aceito como parceiro do Estado sem precisar sequer de registro legal. Políticos comunistas podem associar-se a quadrilhas de traficantes sem ser jamais investigados. Grupos comunistas podem bloquear à vontade as vias de comunicação, sem que ninguém veja nisso um óbvio exercício de treinamento insurrecional.

Com o apoio ostensivo do governo, os comunistas colocaram-se acima da lei e ainda detêm em suas mãos o monopólio quase completo dos meios de investigar, denunciar, julgar e condenar. Antes mesmo de ocupar nominalmente o poder, eles já se tornaram uma classe especial, uma nomenklatura onipotente, arrogante e intolerante. Em conseqüência, o simples ato de escrever uns artigos contra eles tornou-se um insulto, uma ameaça, um abuso insuportável.

Eis aí a razão do desinteresse a que me referi. Há uma direta conexão de causa e efeito entre a proibição tácita de olhar o passado e a rapidez fulminante com que ele se repete diante de milhões de olhares sonsos que, não o conhecendo, não o podem reconhecer. O comunismo “saiu da moda” como as roupas que saem das passarelas para entrar no uso geral e cotidiano. Simplesmente foi preciso mantê-lo fora do horizonte de consciência nacional para que, sem ser incomodado por olhares inquisitivos, ele pudesse crescer à sombra da indiferença geral de suas vítimas.

Por isso mesmo interpreto em sentido inverso os conselhos inibidores que me recomendam falar menos do comunismo para não parecer maluco ou fanático. Diante da grande tragédia que se prepara, só um observador morbidamente intimidado se absteria de tocar no assunto para não dar a impressão de estar vendo coisas. E, sinceramente, não vale a pena se deixar enlouquecer por mera obsessão de parecer normal.

Racismo, aqui e em Cuba

Olavo de Carvalho


Época, 9 de junho de 2001

Há menos negros na elite cubana que na brasileira

Nunca houve no Brasil partido racista, militância racista, pregação racista, imprensa racista, comícios racistas, panfletos racistas, filmes racistas, programas de rádio ou peças de teatro racistas.

Não obstante a total ausência de meios materiais de difusão, a ideologia racista, transmitindo-se por meios telepáticos, sutis e não identificados, parece ser um sucesso entre nós. A acreditarmos nas altas autoridades que opinam sobre a matéria, inclusive o presidente da República, este é um país barbaramente racista.

Muitos intelectuais brasileiros vivem hoje de divulgar essa tese, encomendada e paga por fundações americanas, por motivos, decerto, puramente humanitários e de maneira alguma geopolíticos. Um dos argumentos decisivos alegados em favor dela é que negros e mulatos, constituindo a maioria da população, são minoria nas elites e nos bons empregos.

A diferença de nível econômico-social entre comunidades raciais pode ter várias causas. Uma delas é que do fim da escravatura até o primeiro surto industrial brasileiro decorreram mais de 40 anos: a população negra e mulata cresceu vertiginosamente sem que aumentasse ao mesmo tempo o número de empregos. A industrialização, por sua vez, coincidiu com a chegada de imigrantes, que, com excelente formação profissional, levaram a melhor no mercado de trabalho.

Mas nunca se fez um estudo científico que confrontasse as várias causas possíveis. Uma delas foi escolhida a priori e oficializada como única explicação permitida: a “discriminação”. Os negros e mulatos ficaram na pior porque somos todos uns malditos racistas e não lhes damos a mínima chance. Uma revista semanal chegou a anunciar “a prova definitiva” do racismo dominante: numa enquete, 90% dos entrevistados disseram que sim, que existe muito racismo no Brasil. Logo, provado estava.

Não ocorreu aos editores ponderar que, se tantos diziam isso, era precisamente por serem contra o racismo e que os demais podiam ter negado a existência dele por julgá-lo coisa feia demais para existir aqui. Isso evidentemente inverteria a conclusão da pesquisa. Mas esse cuidado metodológico foi excluído in limine como preconceito racista – e a pesquisa chegou cientificamente ao resultado premeditado. Desde então, consagrou-se como norma designar o fenômeno investigado pelo nome da causa a averiguar, ficando assim dispensada a averiguação e provada a discriminação racial.

Os partidos de esquerda, sempre devotos da probidade científica, exultaram, adotando a denúncia do racismo brasileiro em seus programas eleitorais. Escrevo este artigo na piedosa intenção de sugerir que a retirem de lá imediatamente, porque descobri uma coisa temível: examinada pelo mesmo critério estatístico, Cuba é o país mais racista da América Latina. Com 60% de negros e mulatos na população em geral, só 10% de sua elite política não é branca. Fulgencio Batista era um ditador mulato rodeado de assessores mulatos. Pelo método científico brasileiro, a conclusão se impõe: uma revolução racista branqueou o governo.

Para piorar as coisas, Oscar Lopez Montenegro, um mulato que fugiu de Cuba e hoje distribui em Miami panfletos contra o racismo cubano, informou ao Washington Times que, quando o governo de Fidel é pressionado pela opinião pública estrangeira para soltar prisioneiros, invariavelmente solta um branco. Outro exilado, Manuel Questa Morna, diz que no Exército de Cuba não há generais negros. “Cuba é um país dirigido por velhos brancos”, confirma Juan Carlos Espinosa, diretor do Cuban Studies Center da St. Thomas University, em Miami. E Denis Rousseau, ex-correspondente da France-Presse em Havana, afirma que a elite cubana está preocupadíssima com o aumento do número de mestiços na população.

Logo, das duas uma: ou vocês param de denunciar o racismo brasileiro, ou param de louvar as qualidades excelsas da democracia cubana.

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