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Consciências deformadas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de dezembro de 2005

Semanas atrás, escrevi aqui que as denúncias contra Tom De Lay não passariam na Justiça; que eram apenas um truque sujo concebido para afastar de seu cargo na Câmara o líder republicano que constituía um pesadelo para os democratas. Dito e feito: as acusações principais já caíram. De Lay agora prepara o contragolpe judicial contra o promotor Ronnie Earle e provavelmente vai acabar com a carreira do distinto. Mas nem por isso conseguirá voltar à liderança em tempo de reconquistar seu prestígio antes das eleições parlamentares de 2006. O golpe baixo acertou em cheio. Uma coisa é estar limpo perante os tribunais; outra é lavar uma imagem coberta de infâmia pela vasta e persistente campanha de mídia que secundou (até no Brasil, para vocês verem como essas coisas vão longe) a investida de Ronnie Earle, tarimbado difamador judicial de inimigos políticos. Não que a palavra dos jornalistas pese alguma coisa nas eleições: uma recente pesquisa da Gallup mostra que apenas 24 por cento dos americanos acreditam um pouco neles ( http://www.mediainfo.com/eandp /news/article_display.jsp?vnu _content_id=1001614003 ). Mas pesa no ambiente social em torno, que pode oprimir com todo o peso do inferno. A prova de inocência não remove esse peso um só milímetro. De Lay continuará com a fama de escroque, e a esquerda ainda ganhará mais um mártir: Ronnie Earle.

Ninguém, como o pessoal da mídia e da intelligentzia esquerdista, tem a capacidade de continuar fingindo crença numa mentira longo tempo depois de desmascarada. Vejam, por exemplo, o último filme de George Clooney, Good Night, and Good Luck , que glorifica um jornalista medíocre, Edward R. Murrow (personificado por David Strathairn), por haver combatido o senador Joe McCarthy. A velha choradeira antimacartista ainda funciona, mais de uma década depois de provado que nenhum dos investigados do famoso Comitê McCarthy era vítima inocente, que todos eram mesmo devotados colaboradores secretos de uma ditadura genocida, usando dos direitos democráticos para destruir a democracia. Depois da abertura dos arquivos de Moscou e da publicação dos comunicados entre a embaixada soviética e o Kremlin no período da Guerra Fria, pode-se acusar McCarthy de tudo, inclusive de melar a campanha anticomunista por inabilidade afoita, mas não de ter errado os alvos. Se têm dúvidas, leiam Joseph McCarthy, de Arthur Herman (Free Press, 1999), e Venona: Decoding Soviet Espionage in America , de John Earl Haynes e Harvey Klehr (Yale Univ. Press, 2000). O filme é tão besta que, falando o tempo todo de inocentes acusados, não é capaz de mostrar um só deles. Mas a República Popular de Hollywood é capaz de ver nisso mesmo a prova de que eles existiam aos milhares. Um só chavão vale mais do que mil imagens que o desmintam.

O hábito da mentira e do auto-engano está de tal modo arraigado na elite esquerdista que se tornou como que sua segunda natureza. A amplitude do fenômeno está tão bem documentada hoje em dia que ninguém pode se considerar bem informado se ainda se surpreende com ele. Para quem está habituado ao assunto, é até redundante, por exemplo, a proposta do livro, no mais interessantíssimo, Do As Say, Not As I Do (“Faça o que eu digo, não o que eu faço”, New York, Doubleday, 2005), em que o jornalista Peter Schweitzer, autor de uma maravilhosa biografia de Ronald Reagan, compara os discursos do beautiful people esquerdista aos seus feitos na vida real. A maldade que Paul Johnson fez com os gurus clássicos do pensamento esquerdista em Intellectuals , Schweitzer faz com seus seguidores na política, na academia e no show business . O resultado, como não poderia deixar de ser, é arrasador. O enfatuado Michael Moore, fiscal número um da moralidade alheia, demoniza a Hallyburton, acusando a empresa de petróleo de lucrar com a guerra. Quando se vai ver, o próprio Moore é acionista da Hallyburton – e, tal como os demais acionistas, não ganhou coisa nenhuma com a guerra. Aliás ele vivia declarando que não tinha ações da bolsa: Scweitzer publica a lista de todas elas, extraída da sua declaração de rendimentos, com a assinatura do declarante. Al Franken, assanhado comentarista da estação clintoniana Radio America e pretendente a adversário do conservador Rush Limbaugh, chama a América inteira de racista e posa de entusiasta da lei de quotas — mas, entre seus empregados, a quota de negros é de menos de um por cento. Nancy Pelosi, enfezadíssima líder democrata na Câmara, é tão famosa como defensora dos direitos sindicais que suas campanhas eleitorais se tornaram recordistas de contribuições dos sindicatos – mas suas empresas vinícolas, hoje entre as mais prósperas dos EUA, não aceitam empregados sindicalizados. Noam Chomsky, acusador emérito do Pentágono, vive de um discreto contrato milionário com… o Pentágono. Já nem falo nada de Ted Kennedy, dos Clintons e de George Soros. Não vou tirar de vocês o prazer de ler o livro – em inglês, é claro, pois obras dessa natureza não furam o cinto de castidade que protege a virgindade intelectual brasileira.

Se depois de saber dessas coisas vocês ainda tiverem estômago para agüentar lixo esquerdista de maior tonelagem, sugiro a leitura de Stalin: The Court of The Red Tsar , de Simon Sebag Montefiore (Vintage Books, 2003), de Mao: The Unknown Story , de Jung Chang e Jon Halliday (Knopf, 2005) e de Fidel: Hollywood’s Favorite Tyrant , de Humberto E. Fontova, já citado aqui (Regnery, 2005). Estão, na opinião geral, entre os melhores estudos biográficos dos três líderes esquerdistas mais conhecidos do mundo. E o traço mais saliente das vidas dos três é a sua total inescrupulosidade, sadismo, crueldade, com doses de malícia e covardia quase inimagináveis para o cidadão comum. Tudo isso aliado, é claro, à pretensão de personificar a autoridade da presciência histórica, habilitada a julgar os vivos e os mortos desde as alturas de uma virtude quase angélica. Sem dúvida, o movimento esquerdista mundial criou um tipo humano característico, marcado pela presunção de impecabilidade, pela licença ilimitada para praticar o mal com consciência tranqüila e sobretudo pela compulsão autovitimizante que leva cada um desses indivíduos, no alto do poder despótico, a sentir-se um pobre menino incompreendido pelo coração duro dos pérfidos conservadores.

Junte todo esse material na sua cabeça e depois medite o seguinte ponto: quem conhecesse essas coisas em 2002 teria caído no engodo da “ética” petista, mesmo não possuindo nenhum indício concreto de corrupção no partido? A resposta é um decidido “Não”.

Mas, saltando por cima da atualidade, os dados também sugerem a pergunta sobre as origens: como foi possível, historicamente, o surgimento e a ascensão de tipos humanos tão formidavelmente ruins, perto dos quais qualquer tirano da antigüidade, qualquer inquisidor da Idade Média, qualquer corrupto do Renascimento ou, mais ainda, qualquer líder conservador como Disraeli, Churchill ou a sra. Thatcher, por mais estragado que seja, fica parecendo São Francisco de Assis?

A resposta tomaria vários volumes, mas um fator incontornável é a mudança do eixo da auto-imagem moral íntima dos indivíduos humanos, inaugurada pelo movimento revolucionário entre os século XVIII e XX. Os documentos mais vivos dessa mudança são, evidentemente, as narrativas autobiográficas, que se tornam abundantes nessa época e, a partir das Confissões e Devaneios de Jean-Jacques Rousseau, contrastam agudamente com suas precursoras antigas e medievais, cujo modelo são as Confissões de Sto. Agostinho. Todo discurso, ensina a arte retórica, tem um destinatário ideal. Sto. Agostinho faz por escrito o traslado ampliado do que seria uma confissão sacramental. Seu ouvinte, por definição, não pode ser enganado, porque é onissapiente. A consciência da sua presença permanente defende Agostinho contra a tentação da mentira interior, mas defende-o também do desespero, da autocondenação radical, da dramatização excessiva dos próprios males, porque aquela presença é também a do perdão universal.

Jean-Jacques, por seu lado, fala para a “opinião pública”, cujos favores solicita. Não é de espantar que procure enganá-la por todos os meios, enganando-se a si próprio por tabela. Quando fala de seus pecados, ele ou os esconde por completo ou, ao contrário, os exagera histrionicamente, deleitando-se nas suas próprias misérias, quase ao mesmo tempo que admite, com modéstia exemplar, ser portador de qualidades morais jamais superadas e, pensando bem, a alma mais linda e pura da Europa. Substituída a onissapiência amorosa do ouvinte pela extensão quantitativa de um “público” que o autor ao mesmo tempo corteja e despreza, a imagem da alma refletida também se modifica proporcionalmente, deformando-se à medida da ilusão coletiva, móvel e incerta, na qual o autor busca um espelho onde enxergar-se objetivamente, sem lembrar-se que é ele mesmo que a está criando pela influência que exerce sobre o público.

Nenhum homem alcança a onissapiência, mas saber que ela existe o ajuda a não se enganar, quando ele, ao ingressar na aventura do autoconhecimento, se sente observado por olhos eternos que “sondam os rins e os corações”. Durante séculos a disciplina do exame de consciência, à luz dos Dez Mandamentos, deu a cada homem o máximo de objetividade possível no julgamento de si. Já os olhos da platéia se movem conforme os gestos do ator, que a manipula ao mesmo tempo que se submete às suas preferências do momento.

A modernidade começa com essa mutação fraudulenta da consciência de si. Que ainda levasse dois ou três séculos para que monstros de falsa consciência como Stalin, Mao e Fidel fossem considerados modelos de virtude, é algo que se deve, é claro, à subsistência discreta do antigo critério de julgamento no seio mesmo da cultura que o nega e que desejaria extingui-lo para sempre.

Se ainda há um pouco de moral e dignidade no mundo, é porque algo da consciência de ser visto por um observador onissapiente, imune às flutuações da alma individual e da platéia coletiva, subsiste no coração humano. Em plena apoteose do laicismo moderno, ainda há muitos seres humanos que caminham diante dos olhos do Senhor. Eles são a única régua e medida para o julgamento dos demais. Por isso o Evangelho diz que vão julgar o mundo. O que os outros pensem ou deixem de pensar não pesa nisso no mais mínimo que seja.

A farsa da farsa

Olavo de Carvalho


 O Globo , 26 de janeiro de 2002

No famoso “Imposturas intelectuais”, Alan Sokal pôs em teste a erudição científica dos mestres da esquerda contemporânea — Althusser, Foucault, Derrida, Lacan et caterva — e demonstrou que eram todos charlatães da mais baixa espécie.

O historiador australiano Keith Windschuttle, em “The killing of History”, prova que em matéria de conhecimentos históricos eles não se saem nada melhor. Somem-se a isto os impiedosos exames lógicos empreendidos por Roger Scruton em “Thinkers of the new left” e a descrição apocalíptica que em “Tenured radicals” Roger Kimball apresentou da devastação mental das universidades americanas submetidas à influência desses gurus, e sobra no fundo de tudo apenas uma pergunta: como foi possível que durante meio século a intelectualidade esquerdista, a casta letrada mais pretensiosa que já existiu, a que mais candidamente se arrogou a missão de guiar o mundo, se deixasse por sua vez guiar pelos mais estúpidos, perversos, mentirosos e incapazes?

A resposta é que estamos diante de um fenômeno coletivo de racionalização neurótica, com todas as conseqüências letais que o esforço de fugir da realidade pode ter sobre a inteligência humana. “Neurose é uma mentira esquecida na qual você ainda acredita”, dizia meu falecido amigo Juan Müller, um gênio da psicologia clínica. Quando o vendaval de fatos em torno ameaça remover a mentira de dentro do entulho inconsciente, a alma se agarra a subterfúgios cada vez mais desesperados, mais inconseqüentes e mais tolos para evitar o choque da luz, a revelação libertadora da culpa longamente negada.

A culpa, no caso, não poderia ser mais incontornável. Por toda parte onde conquistou o poder, o socialismo provou a essência maléfica e genocida dos ideais pretensamente lindos que o inspiravam.

Explicar cem milhões de mortos, o Gulag e o Laogai como efeitos acidentais e epidérmicos da aplicação de idéias que em si permanecem sublimes e generosas é mais do que pode o discurso humano.

Moralmente, socialismo e nazismo são indiscerníveis. Querem um exemplo? Leiam Máximo Gorki, o piedosíssimo Gorki de “A mãe”, que até hoje arranca lágrimas da militância pueril e senil. Ele aconselhava a seus companheiros de luta: “O ódio de classe deve ser cultivado por meio da repulsa orgânica ao inimigo, enquanto ser inferior, enquanto degenerado não somente no plano moral, mas no físico.” O doutor Goebbels não o diria com mais brilho. Partindo daí, como não concluir com Sartre que Robespierre, aquele frouxo, não matou gente o bastante?

Ter empenhado toda a força dos seus talentos na defesa de semelhante monstruosidade fez de gerações inteiras de intelectuais de esquerda cúmplices de crimes contra a espécie humana, exatamente no sentido em que esses crimes são definidos no Código Penal da própria pátria dos Sartres e Bourdieus: “Deportação, escravização ou prática sistemática e em massa de execuções sumárias, de tortura ou outros atos inumanos, inspirados por motivos políticos, raciais ou religiosos, segundo plano concertado contra um grupo de população civil.”

O pertinaz embelezamento do genocídio é culpa suficiente para alimentar na alma da intelligentzia esquerdista o terror ante a mera possibilidade de um Julgamento de Nuremberg para os crimes do comunismo. Desde 1956, com o Relatório Krutchov, esse terror veio crescendo, até atingir a máxima intensidade com a queda da URSS e a abertura dos arquivos de Moscou. À medida que ele crescia, enrijeciam-se as defesas neuróticas, proliferavam os subterfúgios, superavam-se em inventividade os contragolpes retóricos e as manobras diversionistas.

Tudo o que a casta letrada esquerdista escreveu e disse desde a década de 50 não passa de uma sucessão de encenações desesperadas para escapar à consciência de suas culpas. Tudo: chantagens morais, intimidações de testemunhas, afetações histéricas de horror ao liberalismo, acrobacias lógicas concebidas para separar de suas conseqüências históricas um platônico marxismo ideal. In extremis, apelou-se à demolição da lógica, da linguagem e da cultura. Quando já não se pode negar a realidade, resta destruir o próprio senso da realidade. Não sendo possível apagar a luz, furam-se os olhos da platéia. Se toda a humanidade aderir à semiótica, ao desconstrucionismo, à etno-história, ao relativismo, ao historicismo absoluto etc., ninguém mais poderá associar com certeza razoável as idéias aos atos, os atos às conseqüências: tudo se tornará incerto, e ninguém mais terá de suportar a medonha consciência de ter feito o que fez. A elite esquerdista terá livrado sua cara, à custa de mergulhar a Humanidade nas trevas.

Os reflexos dessa alucinação auto-induzida dos intelectos mais covardes e mendazes que já ocuparam o cenário público do Ocidente vão parar longe — e quanto mais longínquos, mais grotescos. Nem um perfeito charlatão pode competir, em ridículo e miséria, com macaqueadores de charlatães: tal é a diferença entre a intelligentzia esquerdista da Europa e a do Terceiro Mundo. A farsa do centro repercute, na periferia, como imitação de farsa. Farsa da farsa. Se num Althusser ou num Foucault a mentira existencial conservava ao menos a autenticidade da tragédia interior que ela encobria, já nem esse farrapo de dignidade resta a seus imitadores tupiniquins. Os efeitos sociais de seu duplo fingimento são portentosos: toda a história cultural e política do Brasil nos últimos quinze anos pode ser descrita como a progressiva perda, pelas classes falantes, do mais elementar discernimento moral, diluído na mistura de tagarelice pseudo-intelectual nas universidades e de vociferação pseudo-ética nos palanques.

No auge da pantomima, aqueles que ensinaram aos delinqüentes a técnica dos seqüestros e os princípios da organização paramilitar; que durante quarenta anos adularam a alma criminosa até instilar nela o orgulho autobeatificante e a ambição de poder sem limites; que apregoaram do alto das cátedras e dos púlpitos o desprezo a toda moral, a toda lei, a toda autoridade; que assim colocaram a sociedade inteira no banco dos réus ante um júri de assassinos e seqüestradores — esses mesmos, quando o monstro que criaram escapa de seu controle e se volta contra alguns deles, de repente aparecem em público travestidos de paladinos da ordem. Choram por seus companheiros mortos o que nunca choraram por milhares de vítimas de seus pensamentos, transmutados em ações cruentas pelo fértil convívio na Ilha Grande. Nos seus rostos, nenhum sinal de arrependimento. Nenhuma dúvida, nenhuma inquietação moral. É que para ter problemas de consciência seria preciso ter consciência. Livres desse mal, partem para a terça-feira gorda do longo carnaval sangrento envergando sua nova fantasia com a naturalidade de quem tivesse nascido dentro dela. Disto, nem os mais escorregadios charlatães parisienses seriam capazes. A mentira brasileira tem profundidades que seus próprios modelos desconhecem.

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