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Copiando os russos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de agosto de 2011

No extraordinário relato que publicou sob o título Darkness at Dawn. The Rise of the Russian Criminal State (Yale: Universty Press, 2003), David Satter, ex-correspondente do Wall Street Jounal em Moscou, conta que o novo regime russo subseqüente à queda da URSS já nasceu criminoso porque a comissão de privatizações, no governo Yeltsin, não ligava a mínima para saber de onde vinha o dinheiro com que as empresas estatais eram compradas às pencas em leilões bilionários. Em geral vinha do próprio governo, pelas mãos de funcionários ladrões. Ou vinha do narcotráfico. Ninguém nem perguntava. Só o que queriam era privatizar tudo o mais rápido possível, para criar do nada uma classe capitalista sem lei, nem ordem, nem moralidade. Nem mesmo combater as quadrilhas criminosas lhes parecia necessário: afinal, elas faziam dinheiro, que era tudo o que importava.

Somada à súbita liberação geral dos preços, essa política, perto da qual o assalto estatal à nação e à Igreja na Revolução Francesa de 1789 fica parecendo uma rifa em colégio de freiras, não demorou a produzir os resultados logicamente previsíveis: em poucos meses, 99 por cento das poupanças tinham desaparecido, deixando o povo à míngua, enquanto no topo da sociedade uma nova casta de barões ladrões abria caminho mediante expedientes singelos como explodir as casas dos seus concorrentes ou abater a tiros os funcionários do Estado que não se rendessem à sedução das propinas, àquela altura tidas como instrumentos normais de negociação.

Se perguntamos por que os responsáveis pelas privatizações russas optaram por uma estratégia tão obviamente suicida, a resposta é simples e vem da boca dos próprios personagens, com uma candura admirável: eram todos homens de formação marxista, não só acostumados a um ambiente de crueldade incomum, mas persuadidos de que a “acumulação primitiva do capital” só é possível através do roubo, do saque, da desumanidade e da violência descontrolada. Para eles, o que estava acontecendo na Rússia era simplesmente natural, inevitável, imune a todo julgamento humano.

Ao abdicar do comunismo, adotaram o capitalismo tal como o comunismo o concebia. Simplesmente passaram a achar bom o que antes achavam ruim, sem modificar no mais mínimo que fosse a imagem que faziam dele até então.

Essa imagem é obviamente falsa. O próprio Karl Marx sabia disso quando a inventou como engodo proposital, falsificando os dados estatísticos do Parlamento britânico (os famosos Blue Books) para dar a impressão de que o capitalismo era filho do banditismo, quando a verdade era exatamente o contrário: um capitalismo selvagem primitivo, incipiente, só veio a ganhar força e vigor quando o ambiente social e psicológico foi saneado pelo império da lei e da ordem, incluída aí a influência da fé religiosa. Se a noção marxista já era falsa com relação ä Inglaterra, que Marx tomara como modelo universal, mais absurda ainda ela se revelava no confronto com o exemplo americano, onde um sistema de leis e instituições humanitárias, fortemente impregnado de moral cristã, antecedera de décadas o florescimento capitalista que aí viria a brotar com energia mais pujante do que em qualquer outro país.

Logo no começo de “O Capital”, Karl Marx avisa que seu modelo de capitalismo não se baseia na sondagem dos fatos históricos, mas na “força da abstração”. Ele despe o capitalismo de todos os elementos sociais, culturais, psicológicos, éticos e religiosos que o prepararam, e o descreve como simples esquema econômico descarnado, fundado na exploração de algo que ele chama a “mais-valia”. Com a ambigüidade característica dos pensadores revolucionários, porém, ele se esquece da advertência que acabou de fazer e logo passa a tratar esse capitalismo abstrato como se fosse realidade histórica concreta. O dano que com isso ele trouxe à economia mundial foi duplo: primeiro, o fiasco monumental da economia soviética; depois, o descalabro do capitalismo criminal russo.

Mas houve um terceiro dano, mais sutil e de conseqüências incalculáveis: ele inoculou o abstratismo econômico na mente de seus adversários, levando-os a apoiar entusiasticamente o desatino das privatizações soviéticas e a acreditar, com maior insanidade ainda, que a introdução da economia de mercado na China traria consigo a liberalização do regime político.

É uma trágica ironia que a crença cega no primado da economia como motor da História tenha se impregnado tão profundamente nas almas daqueles que mais deveriam contestá-la. Tal como os privatizadores russos, muitos “formadores de opinião” ocidentais em matéria de política e economia amam o capitalismo, mas pensam como marxistas. É como achar que entre os encantos peculiares de uma bela mulher se encontra o fato de a referida sofrer de AIDS.

Uma coisa que sempre me impressionou entre os liberais é a paixão com que aderem à escola austríaca de economia, tratando-a como um conjunto de fórmulas gerais abstratas, transportáveis às mais diferentes situações, sem jamais mostrar o mínimo interesse pelas condições culturais muito peculiares que na Viena do começo do século XX permitiram e fomentaram a emergência dessa escola. Esse desinteresse, mais pronunciado entre os economistas brasileiros que entre os de qualquer outra nacionalidade, é tanto mais imperdoável porque aquele período da história cultural austríaca foi um dos mais vigorosos e criativos de todos os tempos, e não se pode imaginar um surto de genialidade eclodindo entre meia dúzia de economistas sem ter nada a ver com o que se passava em torno. A Viena daquela época era um ambiente de intercâmbio intelectual intenso, propiciando a fecundação mútua entre os mais diversos campos da atividade intelectual e artística. A economia de Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek não é uma “coisa em si”, brilhando isolada no céu das ideias puras: é o fruto de uma atmosfera intelectual de intenso diálogo entre todas as disciplinas das artes e das ciências, atmosfera que, por sua vez, não se pode compreender sem a referência ao quadro político do Império Austro-Húngaro. Ironicamente, duas das fontes mais valiosas para o estudo desse período têm traduções brasileiras. “O Mundo que Eu Vi”, memórias de Stefan Zweig, e dezenas de estudos sobre obras e idéias austríacas ao longo dos “Ensaios Reunidos” de Otto Maria Carpeaux foram bastante lidos no Brasil nos anos 50 e 60. Hoje estão completamente esquecidos, e a simples sugestão de que um economista as leia deve soar como apelo a um diletantismo indigno de profissionais sérios. “The Austrian Mind: an Intellectual and Social History, 1848-1938”, de William M. Johnston (University of California Press, 1972) dará aos interessados uma visão da prodigiosa riqueza intelectual e humana de onde brotaram as intuições econômicas não só de von Mises e Hayek, mas também de Joseph Schumpeter, Carl Menger e tantos outros. Não há desculpa para a ignorância satisfeita dos economistas liberais que acreditam poder compreender a escola austríaca sem saber de onde ela saiu. Essa atitude reflete uma obsessão dinheirista que, por sua vez, tem sua origem remota no íncubo marxista que há décadas se apossou da mente antimarxista. Os que hoje pontificam sobre a economia brasileira desde um ponto de vista liberal sem levar na mais mínima conta os fatores intelectuais, culturais, psicológicos éticos e religiosos do destino econômico das nações são privatizadores russos mal disfarçados.

Revolução social

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de agosto de 2011

Revolução social não é, como dizem os marxistas, a substituição de uma “classe dominante” por outra. Isso é apenas uma figura de linguagem, uma metonímia. Ao fim de uma revolução social, os mesmos grupos ou pessoas podem continuar no poder. Isso não faz a mais mínima diferença. Substantivamente, literalmente, revolução social é uma mudança radical dos meios de alcançar riqueza, prestígio e poder. Quem manda pode continuar mandando, mas por outras vias. Por exemplo, na Idade Média européia, havia os seguintes meios de subir na vida (ou de manter-se no alto): a posse da terra, por conquista ou herança; a profissão militar; uma bem sucedida carreira eclesiástica. Fora disso, mesmo que você tivesse muito dinheiro, mesmo que fosse um gênio, não chegaria ao primeiro escalão do poder. Quando se formaram os Estados nacionais modernos, os reis precisaram de dinheiro para criar exércitos que pudessem sobrepor-se ao poderes locais, assim como de uma burocracia administrativa e jurídico-policial, que desse ao governo central o controle do país inteiro. Resultado: de repente, banqueiros e burocratas passaram a mandar mais que os barões e cardeais. Isso quer dizer que entrou no poder uma nova “classe social”? Não. Na Inglaterra, a velha classe aristocrática ocupou os lugares na nova hierarquia, e continuou mandando. Na França, deixou a vaga para uma horda de alpinistas sociais, e estes tomaram o seu lugar. Nos dois casos houve uma revolução social. Revolução social não é troca de classe dominante: é troca dos meios de tornar-se (ou permanecer) classe dominante.

No Brasil um processo claro, patente, manifesto de revolução social está em curso, e aparentemente ninguém, fora os comandantes do processo – que ao menos por enquanto não têm o menor interesse de alardeá-lo –, parece dar-se conta disso.

Até uns anos atrás, ganhar dinheiro na indústria, no comércio ou na agricultura era um meio seguro de chegar ao poder ou ao menos de influenciar os ocupantes do poder. Uma carreira militar bem sucedida tinha o mesmo resultado. Ser um cientista, um técnico, um erudito, um escritor, um jurista de primeira ordem, idem.

Agora, todos esses velhos meios de ascensão estão sendo substituídos por um novo, que os domina e os controla. Isso não quer dizer que não funcionem mais. Funcionam, mas como instrumentos auxiliares do meio principal, que rapidamente vai-se tornando o único legítimo, o único socialmente aprovado. Para adquirir ou conservar poder e prestígio no Brasil de hoje, até mesmo para conservar alguma margem de liberdade e segurança, você tem de pertencer ao Partido governante, a um de seus associados ou aos grupos de influência que orbitam em torno dele. Chamemos a esse pool de organizações, para simplificar, o Esquema. Na mais tolerante das hipóteses, você tem de negociar com essa gente e ceder. Ceder até o extremo limite da degradação e da humilhação. Aí permitem que você conserve o seu lugar na sociedade, mas sempre como concessão provisória, jamais como direito adquirido.

Suponha que você seja um juiz de Direito. Até algum tempo atrás, isso garantia poder, segurança e liberdade. Agora, depende de que você sentencie de acordo com a vontade do Esquema. Se você o contraria, logo descobre que grupos de pressão mandam mais que uma sentença judicial. De algum modo, todas as sentenças já vêm prontas, assinadas pelo Esquema. As outras são inócuas.

Nem falo dos empresários. Podem ganhar dinheiro a rodo, mas toda a sua influência no poder consiste em tentar ser úteis ao Esquema, que os tolera como um mal provisório.

E se você é um general de Exército, dê graças aos céus de que o Esquema lhe garanta ainda um lugarzinho no palanque, em troca das condecorações que você deu a comunistas, terroristas aposentados e ladrões notórios.

Um simples posto na diretoria de “movimento social” dá mais poder que tudo isso junto. Coloca você acima das leis, dos Direitos Humanos, da Constituição, dos Dez Mandamentos e das exigências da aritmética elementar (num país que tem 50 mil homicídios por ano, as mortes de duzentos homossexuais no meio dessa massa de vítimas não consta oficialmente como prova de uma epidemia de violência anti-gay?).

Os novos meios de subir e cair já são uma realidade, já são a nova estrutura social. Quarenta anos de revolução cultural anestesiaram a população para que a aceitasse sem um pio, sem um vago sentimento de desconforto sequer. Essa etapa está encerrada. A revoluç ão social já veio, já está aí, e a única reação do povo e das elites é procurar desesperadamente um lugarzinho à sombra dela, a abençoada proteção do Esquema.

Perguntas proibidas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de agosto de 2011

Max Weber, quando o acusavam de exagerar em seus diagnósticos, respondia: “Exagerar é a minha profissão!” A boutade referia-se, naturalmente, à técnica dos “tipos ideais”, com que o autor de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, ao descrever uma conduta, um sentimento, uma atitude, ampliava certos traços típicos para maior nitidez do objeto puro, isolado de diferenças e semelhanças acidentais. Mas referia-se também, mais profundamente, à missão do cientista social em geral, que tem de olhar as coisas numa escala que não é a da atualidade patente, visível nos debates públicos e na mídia popular, mas deve cavar em busca das sementes, não raro modestas e discretíssimas, onde o futuro está se gerando longe dos olhos da multidão. Se há uma coisa que nenhum estudioso da sociedade e da História tem o direito de ignorar, é que o poder dos fatores determinantes do curso das coisas é, no mais das vezes, inversamente proporcional à sua visibilidade presente. Daí o descompasso entre os respectivos “sensos de realidade” dos observadores do dia a dia, meros constatadores do fato consumado, e o do estudioso que mergulha em águas profundas para saber o que há de vir à superfície amanhã ou depois. Com o agravante de que o fato consumado só faz sentido para quem o viu crescer desde as raízes. Para os demais, tudo é surpresa desnorteante ou mera coincidência.

Mas, quando digo “cientista social”, uso o termo como um tipo ideal weberiano. Refere-se ao que os cientistas sociais deveriam fazer para merecer o título, não ao que os profissionais universitários que o ostentam estão fazendo realmente no Brasil de hoje. Estes, coitados, não conseguem acompanhar nem o fato consumado, tão presos estão aos seus esquemas mentais rotineiros, à pressão dos seus pares e ao temor de desagradar à mídia. Não ousam sequer fazer perguntas, como por exemplo: Quantos assentados do MST foram recrutados entre militantes urbanos, falsificando completamente o panorama dos “conflitos rurais”? Qual é o peso estatístico real de duzentos assassinatos de homossexuais num país que tem 50 mil homicídios por ano, mesmo sem averiguar quantos daqueles foram assassinados por seus parceiros? Quantas pesquisas sociológicas com resultado previamente estabelecido pelas fundações estrangeiras que as financiaram foram realizadas nas universidades brasileiras nos últimos anos, e quantas foram em seguida usadas como material de propaganda por ONGs e “movimentos sociais”, se não como argumento cabal para justificar leis e decretos? Quanto dos benefícios distribuídos pelo governo federal aos pobres foi pago com puro dinheiro de empréstimos, endividando as gerações vindouras para ganhar os votos da presente? Quantos crimes de morte são praticados com armas legais registradas, e quanto com armas clandestinas cuja circulação o tal “desarmamento civil” não poderá diminuir em nada? Quantas leis e decisões federais vieram prontas de organismos internacionais e tiveram seu caminho aplanado por campanhas bilionárias financiadas do exterior? Quantas delas vieram de decisões tomadas no Foro de São Paulo com anos de antecedência, em assembléias promíscuas onde terroristas, narcotraficantes e seqüestradores debatem em pé de igualdade com políticos eleitos? Se for liberado o comércio de drogas, quem terá mais chances objetivas de dominar esse mercado?

Sem fazer essas perguntas, ninguém pode compreender nada do que está acontecendo neste país, muito menos o que está para acontecer. Mas cada uma delas é um tabu. O simples pensamento de vir a formulá-las um dia já basta para fazer um profissional universitário tremer desde os alicerces, prevendo os olhares de ódio que fulminarão sua pessoa e sua carreira – ao menos ele assim o imagina – tão logo comece a falar. Sim, o brasileiro de hoje em dia – e os cientistas sociais não são exceções – é aquele sujeito valente que teme olhares e caretas como se fossem balas de canhão, que enfia o rabo entre as pernas à simples idéia de que falem mal dele, que troca a honra e a liberdade por um olhar de simpatia paternal de quem o despreza.

É por isso que os processos históricos profundos, que estão mudando a face do Brasil com uma rapidez avassaladora, passam ainda despercebidos até àqueles mesmos que, arrastados na voragem de leis, decretos e portarias, perdem prestígio e poder a cada dia que passa e, iludidos por vantagens financeiras imediatas que o governo atira à sua mesa como migalhas, não ousam nem confessar uns aos outros que estão sendo jogados à lata de lixo da História.

Não vi até agora um único analista político, na mídia ou nas universidades, declarar em voz alta aquilo que, nos altos escalões do petismo e do Foro de São Paulo, todo mundo sabe: a fase da revolução cultural terminou, já estamos em plena revolução social. Explicarei isso melhor no próximo artigo.

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