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A boa e velha língua dupla

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 28 de novembro de 2010

Se há algo que a História confirma sem um único exemplo em contrário, é isto: Toda e qualquer verdade ou idéia valiosa que algum dia chegou ao conhecimento dos seres humanos foi descoberta de um ou alguns indivíduos isolados; ao disseminar-se entre as massas, perde o impulso originário e se cristaliza em fórmulas ôcas, infindavelmente repetíveis, que se podem preencher com os sentidos mais diversos e usar para os mais diversos fins. Tudo começa na inspiração e termina em macaqueação.

Sempre foi assim e sempre será.

O que distingue o pensamento dito “moderno”, do século XVIII em diante, e o diferencia radicalmente de todos os anteriores, é sua capacidade de gerar teorias que vêm prontinhas para ser massificadas, e que extraem daí, precisamente daí, todo o prestígio “intelectual” que possam vir a desfrutar. É como se saltassem por cima da etapa de inspiração solitária e já se enunciassem, desde o berço, como apelo às massas. Isso começou a acontecer desde o momento em que os homens de idéias perderam a fé no conhecimento da verdade e passaram a buscar, em vez dela, o afinamento com o “espírito da época”. Quantos filósofos e escritores, hoje em dia, não são abertamente louvados, não porque tenham descoberto alguma verdade, algum valor essencial, mas apenas e sobretudo porque expressaram, com seus erros e mentiras, as aspirações mais loucas e abjetas do “seu tempo”? Se não fosse por isso, tipos como Maquiavel, Diderot, Marx, Freud ou até mesmo Darwin não teriam hoje em dia um só admirador devoto. Seriam lidos, se tanto, como documentos históricos de um passado desprezível.

O traço distintivo das teorias a que me refiro é a ambigüidade congênita. Nada afirmam de muito claro, desdizem-se a cada linha, esquivam-se com destreza luciferina à confrontação com os fatos e, quando acuadas contra a parede por alguma objeção demolidora, mudam de significado com a maior facilidade, cantando vitória quando conseguem mostrar que o adversário nada provou contra o que elas não tinham dito.

É claro que a aptidão de uma teoria para essa transmutação proteiforme não aparece toda de uma vez. A continuação dos debates e o zelo dos discípulos em preservar a imagem do mestre é que trazem à mostra o potencial de desconversa escorregadia contido na exposição da idéia originária.

O darwinismo, por exemplo, começou como uma “teoria do design inteligente”, tentando mostrar a lógica de uma intencionalidade divina por trás da variedade das formas naturais. Hoje aparece como a antítese mais extrema de todo “design inteligente”, sem que ninguém nos explique como é possível que duas teorias simetricamente opostas continuem sendo uma só e a mesma.

A psicanálise, então, tem tantas versões que o que quer que você diga contra uma delas pode ser sempre reciclado como argumento em favor de alguma outra – e os ganhos de todas revertem sempre, é claro, em favor do dr. Freud. A facilidade mesma com que uma teoria se converte em suas contrárias é louvada como prova do mais alto mérito intelectual: o que importa não é a “veracidade”, mas a “fecundidade”.

Mas a teoria mais capaz de explorar em proveito próprio tudo o que a desminta é, com toda a certeza, o marxismo. Tudo o que ele diz já vem, na fonte, em duas versões: uma que diz sim, a outra que diz não. Qualquer das duas que saia vencedora aumentará formidavelmente o crédito da teoria marxista.

Como Marx se esquiva de esclarecer qual o coeficiente de influência que as causas econômicas têm na produção das mutações históricas em comparação com outras causas, você pode optar por um determinismo econômico integral ou pela completa inocuidade das causas econômicas e continuar se declarando, nos dois casos, um puro marxista. Ernesto Laclau chega a declarar que a mera propaganda cria a classe oprimida incumbida de legitimá-la ex post facto, e ninguém deixa de considerá-lo, por isso, um luminar do pensamento marxista.

A própria idéia marxista da práxis – a mistura inextricável de teoria e prática – parece criada sob medida para tirar proveito das situações mais opostas: o que desmente o marxismo em teoria pode favorecer o movimento comunista na prática (é o caso das idéias de Laclau); as derrotas do comunismo na política prática podem sempre ser alegadas como efeitos de “desvios” e, portanto, como confirmações da teoria marxista (Trótski falando de Stálin).

A duplicidade de línguas no marxismo aparece não só nas grandes linhas da teoria e da estratégia, mas nas atitudes dos intelectuais marxistas ante qualquer acontecimento da vida cultural ou política. Tudo aí tem duas caras, cada uma exibida ou encoberta, em rodízio, conforme as conveniências do momento. Em 1967, quando a União dos Escritores da URSS proclamava Soljenítsin um tipo execrável e perigosíssimo, o filósofo comunista Georg Lukács jurava que o autor de Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch tinha uma visão ortodoxamente marxista das coisas. O movimento comunista ficava assim preparado para as duas eventualidades: se o romancista viesse a ser ignorado no Ocidente, já estava garantido o seu lugar na lata de lixo da História; se fizesse sucesso, seria um sucesso do marxismo. Alguns exemplos próximos de nós ilustram o jogo com ainda mais clareza. Lula e o comandante das Farc, Raul Reyes, podem presidir juntos as assembléias do Foro de São Paulo e em seguida alegar que nunca fizeram nada em parceria. As Farc podem publicar em sociedade com o PT a mais importante revista de discussão marxista do continente (America Libre) e ao mesmo tempo ser proclamadas, na mídia, umas malditas traidoras que abandonaram o marxismo para entregar-se à pura cobiça de dinheiro. Se as Farc vencem, o Foro de São Paulo vence junto com elas. Se perdem, ele sai limpo.

A língua dupla caracteriza as serpentes, no mundo natural, o diabo, no reino do espírito, e as idéias queridas da modernidade, no mundo humano e histórico.

Um partido moribundo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de novembro de 2010

O DEM é hoje um partido moribundo. Seus próprios líderes assim o proclamam e se dizem muito preocupados, mas duvido que, com uma ou duas exceções, tenham alguma idéia clara das causas que os levaram a essa situação deprimente, bem como das saídas possíveis que ainda lhes restam. Temo que a solução que buscam venha a ser uma repetição – a última – de erros fatais já bem comprovados.

O primeiro deles foi acreditar que um partido pode viver de alianças de ocasião antes de ter uma identidade bem definida e uma estratégia abrangente que o habilitem a servir-se das alianças para seus próprios fins, em vez de servir a elas em vão como de fato aconteceu.

O PT logrou articular um belo sistema de alianças precisamente porque durante décadas se entrincheirou na sua modesta fatia do eleitorado, cultivando-a e reforçando-a por todos os meios até assegurar-se de que seus votantes já não eram mais simples eleitores e sim fiéis devotos, unidos ao partido por laços emocionais e culturais duradouros, difíceis de romper. Ao entrar em alianças, veio a fazê-lo portanto na condição de elemento estável, firme e seguro de si, que se associa a entidades instáveis justamente para explorar sua instabilidade em proveito próprio. Alianças podem somar votos ocasionalmente, mas o que faz a força de um partido não é o número, e sim a fidelidade dos seus eleitores. Ela é a base das alianças vantajosas. O PT entendeu isso faz tempo, e agiu em conseqüência.

O DEM fez exatamente o contrário. Sentindo-se debilitado, buscou reforçar-se por meio de alianças, sacrificando num ritual masoquista de autodissolução o pouco que lhe restava de identidade própria. Fez isso, decerto, porque media pelo número de votos e portanto pelo número de cargos a força partidária, sua e alheia, esquecendo que antes de acumular quantidade é preciso ser alguma coisa, ter alguma substância identificável, representar uma força cultural e histórica na qual os eleitores possam enxergar, de algum modo, a figura do seu próprio destino.

No preciso momento em que consentiu em rebaixar-se à condição de instrumento auxiliar de um partido maior, o então PFL se encontrava tão incerto quanto à sua identidade que acabou resolvendo mudar de nome, movido pela esperança mágica de que, na falta de substância, a palavra gerasse a coisa.

E o nome escolhido não poderia ter sido pior. Ele expressava, declaradamente, o desejo que a agremiação sentia de tomar como modelo o Partido Democrata americano. Esse desejo, por sua vez, evidenciava o quanto os pefelistas se haviam deixado intoxicar e manipular às tontas pela “revolução cultural” gramsciana, cedendo às regras do jogo ditadas pelo adversário, copiando figurinos e cacoetes esquerdistas sem nem mesmo ter muita consciência de que eram esquerdistas, ou pelo menos sem examinar as conseqüências dessa escolha, já tão abundantemente ilustradas por experiências catastróficas em outros países. Conseqüências que podem ser resumidas numa regra simples: se você imita o discurso e as poses do adversário, na ilusão de parasitar seus votos, pode até ganhar com isso alguma vantagem eleitoral imediata, mas já deu a ele a vitória ideológica e cultural que acabará fatalmente por prevalecer mais dia menos dia.

Um partido que não tem ou pelo menos não projeta sobre os eleitores uma imagem ideológica e moral nítida não tem, decerto, nada a ganhar com trejeitos miméticos que tornam seu perfil ainda mais nebuloso e indeciso.

Quando falo disso aos meus amigos americanos, eles riem: “Quer dizer que a direita do seu país tem por modelo a esquerda americana?” Baixo a cabeça e pergunto a mim mesmo quantos dirigentes do DEM sabem o que é o Partido Democrata hoje em dia. É o partido de George Soros, de Fidel Castro, de Hugo Chávez, dos potentados árabes que compram a peso de ouro a proteção ao terrorismo internacional. Quantos, no DEM, têm a consciência de que esse já não é o partido de Harry Truman e de John Kennedy? Como nada da transformação radical sofrida pelo Partido Democrata nos últimos quarenta anos saiu jamais na grande mídia brasileira, embora nos EUA seja o assunto de milhares de livros que no Brasil ninguém leu, provavelmente a ignorância a respeito é, entre esses cavalheiros, total e sólida. Copiando um modelo morto, só podiam mesmo acabar na UTI.

O DEM ainda pode salvar-se? Pode. Mas isto é assunto para um próximo artigo.

Às avessas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 22 de novembro de 2010

Se você lê com a dose esperada de ingenuidade as declarações de Mehmet Ali Agca na versão que O Globo publicou no último dia 11, fica com a nítida impressão de que descobriu finalmente a verdade sobre o atentado que quase matou o Papa João Paulo II em 13 de maio de 1981. Quem encomendou o crime, diz Agca, não foi a KGB, mas o secretário de Estado do Vaticano, cardeal Agostino Casaroli. O jornal carioca descreve Agca como “membro de um grupo de extrema-direita” e Casaroli como “uma das figuras centrais do esforço do Vaticano para defender a Igreja nas nações do bloco soviético”.

A conclusão, implícita mas nem por isso menos eloqüente, só pode ser uma: a maldita direita católica tramou o assassinato para frustrar a abertura diplomática do Vaticano para com o governo soviético.

Se ainda restasse um pingo de consciência jornalística no Globo, uma breve pesquisa teria bastado para informar ao autor da matéria que:

1. O cardeal Casaroli pode ter escrito no seu livro de memórias umas coisinhas quanto ao sofrimento dos cristãos na URSS, mas, no campo da ação prática, muito mais decisivo para o conhecimento das intenções humanas do que meras palavras, foi ele próprio o grande articulador da “abertura para o Leste”, um dos maiores responsáveis pelo ingresso em massa de comunistas no clero e, last not least, o cérebro por trás da grande operação de engenharia política destinada a esvaziar a Igreja da sua missão espiritual tradicional e transformá-la numa agência da Nova Ordem Mundial. Nos escalões superiores da hierarquia vaticana, ele era o protetor por excelência da Companhia de Jesus, criadora da “Teologia da Libertação” e quartel-general dos comunistas infiltrados na Igreja. De todos os altos dignitários da Igreja Católica na época, nenhum teve mais contatos com os governos comunistas do que ele. Se algo ele fez em favor dos católicos perseguidos, muito mais fez para submeter a Igreja Católica ao jogo comunista.

2. Embora Mehmet Ali Agca tivesse realmente participado de uma organização de extrema-direita, os “Lobos Cinzentos”, nos meses que precederam o crime ele esteve em intenso contato, não com a KGB diretamente, mas com o serviço secreto da Bulgária comunista. Contratar assassinos que serviram ao outro lado é prática quase obrigatória de organizações desse tipo quando desejam matar algum personagem famoso. O envolvimento búlgaro no atentado foi abundantemente provado pela repórter Claire Sterling no livro The Time of the Assassins (Henry Holt & Co., 1983), e uma negativa genérica de participação “da KGB”, sem qualquer menção à Bulgária, é com toda evidência mera desconversa.

3. O estado de guerra entre Casaroli e João Paulo II durante todo o reinado deste último é fato universalmente conhecido, e nessa guerra a “maldita direita” era representada pelo Papa, não pelo cardeal, que o grande conhecedor de intrigas vaticanas, Malachi Martin, no roman à clefque publicou sob o título Windswept House (“A Casa Batida pelo Vento”) retrata, sob o nome de Cosimo Maestroianni, como um ateu puro e simples.

Mesmo admitindo-se que a denúncia de Mehmet Ali Agca contra o ex-secretário de Estado seja verdadeira, coisa que não tenho a menor condição de afirmar ou negar, resta o fato de que o crime foi cometido a favor dos interesses comunistas e não contra eles. Com ou sem Casaroli, a mão assassina atacou pelo lado esquerdo. Mais uma vez O Globo brinda seus leitores com uma história contada às avessas.

Publicado com o título “A história contada às avessas”

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