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Honra ao mérito

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 27 de março de 2006

Leio no site do meu caro Políbio Braga (http://www.polibiobraga.com.br), um dos melhores comentaristas políticos do Rio Grande, o seguinte:

Se você tem conta na Caixa Econômica Federal, muita atenção: a Caixa viola o sigilo bancário dos seus clientes. Saia da Caixa Federal enquanto é tempo e fuja de repartições públicas ocupadas por trotsquistas ou ex- trotsquistas enquistados no PT, porque eles são capazes de tudo e não têm compromisso algum com a chamada ‘ordem burguesa’. Ficou comprovado que a violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa partiu da própria Caixa Econômica Federal. O formulário de extração de dados da movimentação bancária de Francenildo é exclusivo do sistema interno da estatal, ao qual nem clientes têm acesso. As duas pessoas, em última instância, responsáveis pelo sigilo dos dados dos clientes são gaúchas. São o próprio presidente, Jorge Mattoso, conhecido trotsquista de Porto Alegre, amigo de Luís Favre, o marido de Marta Suplicy, também ele um trotskista histórico, além de Clarisse Copetti, a guardiã da área de segurança da informação da Caixa, que antes de ir para Brasília ocupou uma das Diretorias da Procempa, à época presidida pelo trotsquista Jorge Mazzoni. São todos enfezados militantes do PT. Clarice Copetti é mulher de César Alvarez, do PT gaúcho, homem que despacha ao lado do gabinete do Presidente Lula, no Palácio do Planalto .”

Não sejamos injustos com a Caixa Econômica Federal. Ela não é uma ilha de espionagem comunista num mar de confiabilidade e decência. Todas as estatais, todos os órgãos da administração federal, estadual e municipal, todos os sindicatos, todos os bancos, todas as grandes empresas privadas, todas as escolas privadas e públicas de qualquer grau, todas as instituições de cultura, todos os jornais, revistas e canais de TV, todos os partidos políticos sem exceção têm hoje um, dois, vinte, trinta agentes infiltrados a serviço da máquina esquerdista de informação e contra-informação.

Essa “ocupação de espaços” começou quarenta anos atrás e prosseguiu discretamente, imperturbavelmente, sem encontrar a menor resistência, ao longo de duas gerações de brasileiros. Ela nasceu da mutação estratégica sucedida nos partidos de esquerda a partir da publicação das obras de Antonio Gramsci pela Editora Civilização Brasileira, na década de 60. Vou resumir brevemente essa mutação e em seguida analisar criticamente o seu estado atual. Quem depois disso não entenda o que está acontecendo e ainda se iluda quanto à possibilidade de reverter o estado de coisas pela via eleitoral normal, sem uma contra-estratégia de conjunto e um combate anticomunista explícito, será um caso de ingenuidade política irreversível e fatal.

1. No entender de Gramsci, o “poder” não se constitui apenas do aparelho estatal, mas de uma complexa trama de organizações espalhadas pela sociedade civil, por meio das quais a “ideologia” dominante se perpetua através das gerações, criando uma barreira de proteção invisível contra a ação revolucionária.

2. Portanto, o principal objetivo do Partido revolucionário não deve ser a tomada do poder político, mas a conquista do controle – “hegemonia” – sobre essa rede informal de organizações que produzem a “cultura”, isto é, a ideologia dominante. (O Partido não precisa ser formalmente um só, reconhecido como tal nos registros eleitorais “burgueses”, mas pode ser um amálgama de organizações diversas e sem estratégia nominal unificada, algumas até sem existência legal, como acontece com o MST.)

3. A hegemonia não é apenas um meio de obter suporte social para a conquista do poder político. Isso seria reduzi-la a um apêndice da velha estratégia leninista. Ao contrário, ela é, desde já, a transição revolucionária para o socialismo, operada por meios tão difusos e onipresentes que se torna difícil combatê-los ou mesmo reconhecê-los. Daí o nome “revolução passiva”. É a revolução que acontece sem que ninguém possa ser apontado como seu autor e mesmo sem que as vítimas do processo tomem consciência clara do que está acontecendo.

4. No esquema leninista, a transição para o regime comunista se faria por meio de uma etapa intermediária socialista. O Estado, nessa perspectiva, seria fortalecido e ampliado até apropriar-se de todos os meios de ação social existentes. Quando nada mais restasse fora da esfera do Estado, este desapareceria como tal: onde tudo é Estado, nada é Estado. Pelo menos a dialética hegeliana ensina a raciocinar assim. Marx, Lenin e tutti quanti tomavam como dissolução real do poder de Estado essa pura transmutação semântica do tudo em nada. Foi por meio dessa grotesca mágica verbal que o totalitarismo perfeito pôde ser aceito como a perfeita democracia. O esquema de Gramsci é bem diferente. Nada tem de um engodo dialético. É uma transformação material, efetiva, da estrutura de poder. A conquista da hegemonia, conforme ele a encarava, já viria a constituir, em si e imediatamente, a dissolução da ordem estatal, substituída pela obediência espontânea das massas aos estímulos acionados pelos comandos culturais espalhados por todo o corpo da sociedade. A burocracia estatal é uma expressão da cultura dominante e nada pode contra ela. Ainda que continuasse formalmente vigente, a ordem estatal, inerme ante a força onipresente e invisível da “cultura”, se tornaria um adorno inócuo e se dissolveria por si mesma. Seria o comunismo não declarado, implantado sem a etapa intermediária socialista.

5. Nesse processo, a submissão coercitiva à autoridade estatal seria substituída pela obediência inconsciente e irreversível à “cultura”, isto é, ao conjunto de estímulos, slogans e cacoetes mentais injetados sutilmente na sociedade pelos “intelectuais”, a vanguarda partidária espalhada informalmente nos milhares de organizações da sociedade civil. A profundidade e abrangência dessa penetração pode ser medida pelo fato de que a rede de organizações a ser conquistada abrangia até escolas maternais, igrejas e confessionários, consultórios de psicologia clínica e aconselhamento matrimonial: nada na atividade psíquica da sociedade poderia escapar à influência do Partido, que adquiriria assim, segundo as palavras do próprio Gramsci, “a autoridade onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino”.

6. No esquema gramsciano, a identificação do perfeito controle totalitário com a perfeita liberdade democrática, que em Lênin era apenas um giro semântico demagógico, se torna um processo psicológico real vivenciado pelas multidões, que, não percebendo nenhuma autoridade estatal a coagi-las ou atemorizá-las por meios visíveis, acreditam piamente estar vivendo na mais libertária das democracias, no instante mesmo em que se curvam à mais completa obediência, incapazes até mesmo de conceber algum tipo de ação que escape à conduta que o Partido espera delas.

7. A subversão ativa por meio dos mecanismos tradicionais de ação comunista – greves, invasões de terras, protestos de toda ordem – não seria abandonada, mas articulada à conquista da hegemonia pela elite “intelectual”, formando o “bloco histórico”, isto é, a perfeita convergência da “pressão de cima” com a “pressão de baixo”. Operando sobre um fundo psicológico preparado pela hegemonia, a subversão já não encontraria resistência e nem mesmo seria nominalmente reconhecida como tal, pois corresponderia à simples realização de expectativas “normais” já prefiguradas e legitimadas na “cultura”.

Nenhum ser humano com QI superior a 12 pode deixar de perceber que a transformação revolucionária gramsciana não é um risco que se abre diante de nós, mas a situação em que o país já vive desde há muitos anos, um processo tão geral, profundo e avassalador que ninguém mais pensa em lhe oferecer resistência de conjunto: mesmo os descontentes com o estado de coisas só reagem a pontos de detalhe. Suas ações se dissolvem espontaneamente no oceano da hegemonia cultural e com a maior facilidade são reaproveitadas para o fortalecimento do contole partidário monopolístico.

Alguns exemplos especialmente deprimentes:

A. Aqueles que se revoltam contra a prepotência do MST já não têm sequer a força interior de lutar contra os objetivos do movimento e se limitam a protestar contra um ou outro meio de ação isolado. Contra a subversão agrária, o máximo que conseguem propor é a “reforma agrária dentro da lei”, isto é, a reforma agrária conduzida pelos agentes do mesmo movimento que só se diferenciam dos invasores de terras porque ocupam cargos na burocracia estatal. O ponto que ainda resta em disputa é apenas uma diferença quanto aos meios de fortalecer o MST: deixando-o invadir e queimar fazendas ou entregando-lhe oficialmente tudo o que ele exige e mais alguma coisa.

B. É mais que evidente que os organismos policiais e de inteligência não foram deixados de lado na conquista da hegemonia. Eles estão hoje sob o controle completo da organização partidária que, ao mesmo tempo, fomenta o banditismo através de legislações propositadamente liberalizantes e sobretudo da intensa colaboração entre as quadrilhas de traficantes e as organizações subversivas estrangeiras associadas ao partido governante através do Foro de São Paulo. É a perfeita articulação da “pressão de baixo” com a “pressão de cima”. Espremida entre esses polos, a sociedade não tem alternativa: ou se conforma com a violência criminosa descontrolada, ou fortalece o partido governante confiando-se à sua proteção, sem ousar confessar a si mesmo que assim só está se entregando oficialmente aos próprios bandidos.

C. Durante anos, a elite partidária articulou violentas campanhas de combate à corrupção com a construção discreta e abrangente de uma máquina de corrupção incomparavelmente maior e mais destrutiva do que todas aquelas que ia desmantelando pelo caminho. Pressão de cima e pressão de baixo. Durante esse período, os feitos mais espetaculares do moralismo acusador deviam-se exclusivamente ao progressivo controle que os partidos de esquerda iam adquirindo sobre os meios de informação e contra-informação através de uma infinidade de “arapongas” infiltrados em toda parte. Na época, a sociedade já estava tão estupidificada e submissa que fechava os olhos a essa monstruosa destruição da ordem legal desde dentro e só se enfezava contra os corruptos avulsos que a máquina de subversão esquerdista apontava à execração popular. A situação descrita por Políbio Braga no parágrafo citado acima não é nova. O esquema esquerdista tem toda a máquina de informações na mão, podendo usá-la à vontade tanto para enriquecer ilicitamente como para intimidar, assassinar moralmente ou mesmo mandar para a cadeia quem quer que ouse denunciar o que está fazendo. A esta altura, qualquer político anti-esquerdista que ache possível vencer esse esquema por meio de acusações isoladas de corrupção, apegando-se a esse ponto para fugir a um confronto com a estratégia geral gramsciana, é evidentemente um bocó inofensivo que só merece, de seus inimigos esquerdistas, um riso de desprezo.

No Brasil atual, a autodemolição do Estado e sua substituição pela onipotência do Partido já são fatos consumados e, nesse sentido, a profecia gramsciana se revelou perfeitamente veraz. O problema com Gramsci não é a falta de realismo. Gramsci nunca foi vitima de utopismo revolucionário. Ele sempre foi atento aos fatos e sensível à hierarquia das forças objetivas que movem a sociedade. O problema com ele não está nos fatos, mas nos valores. Tal como seu guru Maquiavel, ele tinha uma consciência moral doente, disforme, incapaz de sentir o mal mesmo nas suas expressões mais óbvias e escandalosas. Por exemplo, ele via a dissolução do Estado como o advento de uma era de liberdade jamais sonhada. Mas o Estado é uma ordem explícita sobre a qual sempre se pode exercer um controle crítico. Já a rede de operadores da hegemonia é oculta, inacessível ao público. É uma elite onipotente como uma casta de deuses, controlando o processo desde alturas inatingíveis. Só uma mente perversa pode conceber isso como um reino da liberdade. Ao mesmo tempo, é óbvio que a elite esquerdista pode dissolver o Estado por meio do fomento ao banditismo, mas com isso entrega a população à sanha de traficantes e assassinos, sem lhe deixar esperança de refúgio exceto por meio de um retorno ao Estado forte, dominado, é claro, pela mesma elite que criou, protegeu e alimentou o império do crime.

Gramsci sabia como funcionava a estrutura de poder. Só não sabia diferenciar o bem do mal. Era um gênio da engenharia social com a consciência moral de um rato de esgoto. Se o Brasil é hoje a nação recordista mundial de homicídios no mundo e ao mesmo tempo o único país em que a estratégia gramsciana foi aplicada de maneira integral e bem sucedida, só tipos patéticos nos quais a impotência e a cretinice tenham chegado à síntese perfeita da estupidez superior podem achar que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Ora, praticamente toda a política “de oposição”, no momento, consiste precisamente em agir como se uma coisa não tivesse nada a ver com a outra.

Quando observo esse estado de coisas e me lembro de que, ao longo das décadas, todas as minhas tentativas de denunciar o processo antes que ele chegasse às suas últimas conseqüências foram recebidas com bocejos de indiferença ou com aquela franca hostilidade que os preguiçosos e comodistas reservam para os portadores de notícias desagradáveis, não posso escapar à conclusão de que as vítimas da opressão esquerdista receberam exatamente aquilo que fizeram por merecer. No fundo do caos, da violência, do cinismo triunfante e da mais formidável degradação moral que qualquer nação do mundo já vivenciou, reina, no fim das contas, uma certa justiça. Todos estão sendo recompensados pelos méritos da sua covardia moral e da sua indolência intelectual. Parabéns.

***

Nota – Na análise dos fatos, Gramsci só falhou num ponto decisivo. Ele não entendia absolutamente nada de economia, e por isso imaginou que a aplicação bem sucedida da sua estratégia produziria automaticamente a transfiguração mágica do sistema econômico. Ao contrário, a evolução posterior dos acontecimentos mostrou que a implantação de um sistema de poder comunista gramsciano é inteiramente compatível com a subsistência do capitalismo monopolístico. Na verdade, ela até exige isso, porque, a economia comunista sendo inviável em si (a demonstração cabal disto já foi feita desde 1928 por Ludwig von Mises), o esquema gramsciano precisa de uma certa quota de capitalismo para manter-se de pé, exatamente como acontece na economia nazista ou fascista. Daí a parceria infernal do partido governante com os bancos. Mantendo satisfeita uma parcela da burguesia, esse esquema pode durar indefinidamente. E, se alguém acha ruim, o protesto mesmo pode ser canalizado em favor da propaganda esquerdista, lançando-se as culpas do mal sobre o “sistema”, como se o sistema não fosse o próprio gramscismo realizado.

O estupro das soberanias nacionais

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 20 de março de 2006

A ONU está firmemente decidida a tornar o abortismo obrigatório em todas as nações do mundo, sob pena de sanções econômicas. É a mais vasta e brutal interferência uniformizante que um poder transnacional já ousou fazer em países nominalmente soberanos. A intromissão vai furar a casca jurídica e administrativa e ir direto aos fundamentos de cada sociedade. Será a extirpação completa das raízes morais e religiosas milenares de culturas inteiras – e não é preciso dizer que junto com esses fundamentos irão embora as respectivas identidades nacionais.

Nomeada e paga por Estados independentes, a burocracia internacional da ONU e da CE se empenha ativamente em destruí-los e em erguer-se acima deles como governo mundial. A decisão explícita nesse sentido já está tomada desde 1994: “Os problemas da humanidade já não podem ser resolvidos pelos governos nacionais. O que é preciso é um Governo Mundial. A melhor maneira de realizá-lo é fortalecendo as Nações Unidas” ( Relatório sobre o Desenvolvimento Humano ).

Até o momento, a imposição desse novo poder era camuflada e sutil. Decisões da alçada dos governos e parlamentos iam sendo, pouco a pouco, transferidas para comissões técnicas transnacionais, inteiramente protegidas de qualquer fiscalização pelos eleitorados. A soberania política, jurídica, econômica e militar das nações ia sendo cortada fatia por fatia, lentamente, sem que os povos afetados recebessem informação em tempo de organizar-se para reagir. Uma autêntica “operação salame” em escala global. Foi assim que a burocracia internacional conseguiu impor programas uniformes em matéria de educação, saúde, economia, etc., até mesmo às nações mais fortes e orgulhosas (a total devastação do ensino público americano foi obra da ONU, implantada com a cumplicidade de Jimmy Carter e George Bush pai). A obra-prima do maquiavelismo anestésico veio quando a Inglaterra, tradicionalmente refratária à promiscuidade internacional, consentiu em ceder ao escritório da Comunidade Européia, em Bruxelas, os poderes de decisão do governo de Londres quanto a orçamento, comércio, transportes, defesa nacional, relações internacionais, imigração, justiça e direitos humanos, reduzindo o Parlamento à condição de assembléia local subordinada (v. http://www.olavodecarvalho.org /semana/030524globo.htm ). Uma pesquisa do jornal The Sun mostrou que 84 por cento dos ingleses ignoravam tudo a respeito.

A decisão quanto ao aborto assinala o que Mao Tsé-tung chamaria “salto qualitativo”: uma lenta acumulação quantitativa de fatores homogêneos muda, de repente, a natureza do processo. Décadas de manipulação sorrateira tornaram as nações suficientemente passivas para curvar-se, sem o mais mínimo questionamento, à imposição ostensiva de uma nova lei moral, contrária a tudo em que acreditaram durante séculos ou milênios.

Se há uma situação em que faz sentido falar de “genocídio cultural”, é essa. E não é preciso dizer que novas medidas do mesmo teor virão nos próximos anos, varrendo do mapa símbolos, valores, costumes e tradições que desagradem ao autonomeado governo do mundo. A profundidade e abrangência da mutação planejada vai além de tudo o que a imaginação banal dos politólogos acadêmicos e dos analistas econômicos da mídia pode hoje conceber.

De um lado, a substância ideológica dessa revolução é extraída diretamente do materialismo revolucionário do século XVIII: trata-se de criar uma sociedade global totalmente administrada e controlada por uma elite de intelectuais iluminados, porta-vozes da razão científica contra o obscurantismo das religiões e culturas tradicionais.

Mas todo esse racionalismo é somente uma casca brilhante construída para engodo das multidões (nisto incluído o “proletariado intelectual” das universidades). Por dentro, o iluminismo inteiro foi um amálgama tenebroso de ocultismo, magia, gnosticismo, sociedades secretas, rituais entre cômicos e macabros. Não há um só historiador sério que ignore isso.

Do mesmo modo, o laicismo “esclarecido” da nova ordem global é puro teatro. Suas fontes são as mesmas do ocultismo da “Nova Era”. Seus gurus são Helena Petrovna Blavatsky, Alice Bailey, Aleister Crowley e outros saídos do mesmo esgoto espiritual. Se duvidam, informem-se sobre um movimento denominado United Religions Initiative. Já mencionei aqui o livro de Lee Penn, False Dawn: The United Religions Initiative, Globalism and the Quest for a One-World Religion , Hillsdale, NY, Sophia Perennis, 2004. Está tudo lá. Apelo ao leitor para que estude essa obra enquanto é tempo. São centenas de páginas de documentos de fonte primária, que não deixam a menor margem a dúvidas. O governo mundial que se forma diante dos nossos olhos tem um programa “religioso” bem definido: criar uma nova “espiritualidade global” biônica que domestique as religiões tradicionais e as nivele a qualquer seita ocultista, mágica, ufológica ou satanista, e na qual o objetivo essencial da atividade religiosa não seja o culto a Deus, mas a “reforma social” – na linha, é claro, escolhida pela burocracia.

A intelectualidade brasileira está radicalmente desqualificada para discutir essas mutações e suas conseqüências para o país. O destino nacional está sendo decidido por forças que ninguém, no Congresso, na mídia, nas universidades ou nas Forças Armadas, entende nem mesmo por alto. Nunca os cérebros foram tão pequenos para desafios tão grandes. As discussões a respeito são meros concursos de literatice provinciana, enquanto em volta tudo é arrastado na voragem de uma revolução que não é compreendida nem pelos seus próprios agentes locais.

Notícias do mundo real

Quem quiser saber o que se passa no país e no mundo, que pare de ler os jornalões e comece a vasculhar a internet . Três exemplos:

Primeiro . Leio no site www.alertabrasil.blogspot.com que, segundo Leonardo Attuch, autor do livro “A CPI que Abalou o Brasil”, Mino Carta recebeu R$ 2,5 milhões do Mensalão para sua revista Carta Capital , cujo petismo fiel e intransigente fica assim explicado. O dinheiro saiu por ordem direta de Luiz Gushiken. Attuch informa que uma lista extensiva de jornalistas “amiguinhos do governo” está para vazar a qualquer momento. Que acontecerá a esses mensaleiros da mídia? O mesmo que aconteceu a seus oitocentos colegas subsidiados pela CUT em 1993. Nada. Continuarão posando de fiscais impolutos da moralidade alheia.

Segundo . No site www.vcrisis.com , você encontra tudo sobre a Venezuela – desde listas de presos, mortos e desaparecidos até acordos secretos de colaboração atômica entre Hugo Chávez e o governo da Coréia do Norte. Em represália contra essa mania de jornalismo, seu editor, Alexander Boyd, cidadão venezuelano auto-exilado na Inglaterra, é acusado pelos agentes chavistas de representar uma “conexão anglo-venezuelana” subsidiada pelo governo americano. Ameaçam até pedir sua extradição ao governo britânico, sob alegações que até o momento não consigo imaginar. Boyd é meu amigo, passou uns dias aqui em casa e asseguro que ele não tem onde cair morto. Se o governo americano o subsidia, o raio do cheque deve estar atrasado há anos.

Terceiro . Partindo de uma informação divulgada por mim tempos atrás, o blog www.cacom.blogspot.com cobrou da senadora Heloísa Helena uma explicação das relações perigosas entre seu partido e o terrorista italiano Achille Lollo, condenado pela justiça de seu país pelo assassinato dos dois filhos de seu inimigo político Mario Mattei, um deles de oito anos de idade, ambos queimados vivos num incêndio proposital. Com uma sentença de dezoito anos de prisão a cumprir na Itália, o terrorista vive no Brasil, sob proteção do governo ao qual a sra. Heloísa Helena finge fazer oposição ao mesmo tempo que continua a colaborar com ele no Foro de São Paulo. Lollo é co-fundador do PSOL e publica artigos de teoria marxista no jornal do partido da senadora.

Gabriel Castro, editor do blog , achou com razão que uma candidata à Presidência da República não poderia andar de mãos dadas com um parceiro tão sujo sem dar ao menos alguma satisfação à opinião pública. Ante a pergunta, a assessoria da senadora, que antes havia concordado com a entrevista, reagiu com quatro pedras na mão, fazendo pose de dignidade ofendida e espalhando no ar toda sorte de insinuações perversas para fugir de dar uma resposta. O jornal então avisou que iria publicar as perguntas sem as respostas , e a senadora, agora em pessoa, não perdeu a ocasião de se fazer de vítima, uma das técnicas de desconversa mais usuais nos meios esquerdistas: “Ameaça? Acha V.Sa. que eu tenho medo de alguma coisa? Passei a vida como sobrevivente tendo que engolir meus próprios medos, entendeu?” Performance comovente, senadora. Mas, encerrado o espetáculo, cadê a explicação? Nada. Silêncio total. O blog então publicou as provas da participação de Lollo no PSOL, acompanhadas de um documento aterrorizante: a foto de uma das vítimas do incêndio, queimada mas ainda viva, tentando em vão escapar pela janela da casa em chamas.

O que achei mais bonito na reação da assessoria foi a pergunta insolente enviada a Gabriel Castro: “O seu público sabe quem é Olavo de Carvalho? Assim fica difícil agente ( sic ) fazer alguma coisa.” Que é que seus ajudantes querem dizer com isso, senadora? Que a senhora me conhece, que sabe a meu respeito algo de terrivelmente comprometedor que o editor do blog ignora? Pois então diga logo, madame. Na verdade, você não vai dizer é nada, nem contra mim nem a seu favor. Não vai dizer, porque não tem nada a dizer. Já está suja pela parceria com esse assassino monstruoso, sujou-se mais ainda por fugir da pergunta e, ao defender-se por trás de alusões difamatórias a um terceiro, completou a porcaria. O valente Gabriel Castro encerra o relato do episódio com uma conclusão incontornável: “Quando um entrevistado foge e não responde a uma pergunta, sem querer ele diz muito mais do que se houvesse respondido.”

Derrota completa

Os soldados do Exército voltando aos quartéis, sob uma chuva de cusparadas da mídia, após uma frustrada incursão nos morros cariocas, são a imagem da derrocada aparentemente irremediável das nossas Forças Armadas. Desde o tempo em que optaram por responder às sucessivas ondas de calúnias com tímidas notinhas oficiais em vez dos processos judiciais devidos e moralmente obrigatórios, os comandantes das três armas mostraram sua disposição de sacrificar a dignidade das suas corporações no altar de uma simulação gramsciana de democracia e ordem. Depois passaram da omissão ao masoquismo explícito, condecorando os detratores das Forças Armadas, mostrando reverência indevida a um governo cúmplice das Farc e submetendo-se alegremente à ordem de transformar soldados em cavouqueiros a serviço do MST. Negando contra toda evidência o alcance militar e estratégico do narcotráfico no continente, deixaram crescer impunemente o inimigo, enquanto se vangloriavam de não se rebaixar a “funções policiais”. Fugindo à luta maior, à luta para salvar o país da trama continental urdida pela aliança macabra de comunistas e traficantes, agora só lhes resta tentar mostrar serviço saindo à cata de bandidinhos avulsos e provando que já não estão capacitadas nem para isso.

Mas, se nossas tropas têm capacidade para sufocar a bandidagem no Haiti, por que mostram um desempenho tão chinfrim no Rio de Janeiro? É simples: no Haiti não havia mídia hostil, não havia ONGs e políticos maliciando tudo, não havia a pressão de uma elite cheia de ódio e despeito à classe militar. Tiros e bombas não assustam o soldado brasileiro. O que o amedronta é o olhar perverso do beautiful people , a malícia difusa dos falsos moralistas, a língua pérfida dos maiores fofoqueiros do universo. É a esses que as nossas Forças Armadas, tão valorosas sob outros aspectos, foram cedendo tudo. Caluniadas, aviltadas, achincalhadas, sabotadas por todos os meios imagináveis, não souberam reagir com eficácia enquanto era tempo, e agora têm de inventar às pressas algum pretexto edificante para justificar sua transformação em tropa auxiliar do Foro de São Paulo. Quanto falta para isso? Depois que nossos soldados foram submetidos à tarefa humilhante de montar estandes para o Fórum Social Mundial, falta realmente muito pouco.

Nada disso teria acontecido se ao menos uma parte da alta oficialidade não se tivesse deixado induzir por pseudo-intelectuais fardados e civis a acreditar que, com a queda da URSS, a luta ideológica era coisa do passado e daí por diante o conflito Leste-Oeste tinha cedido lugar à concorrência Norte-Sul, ou países ricos contra países pobres. Engolindo essa estupidez infame, não percebiam – ou fingiam não perceber — que se tornavam intrumentos ao menos passivos da estratégia comunista internacional no instante mesmo em que proclamavam a morte do comunismo.

Bem sei que a maioria absoluta dos militares não quer nada disso. Já escrevi, e repito, que só na classe dos homens de armas encontrei no Brasil um genuíno patriotismo, um sentimento profundo da continuidade histórica do país como um legado de heroísmo e de sacrifícios. Sei que eles continuam fiéis ao seu primeiro amor. Mas o que pode haver de mais perturbador que o conflito de lealdades? Ser um militar brasileiro, hoje, é ter o coração dilacerado entre a obediência formal a um regulamento e o apego aos valores que o originaram. Normalmente, as leis são a expressão dos valores. Mas, quando estes são subvertidos por baixo da carapaça legal enquanto esta permanece intacta, aí se instaura a luta entre a forma e o conteúdo. Criar e explorar esse antagonismo, levando o país à confusão, ao cansaço, ao desespero e por fim à rendição, eis a obra da “revolução cultural” gramsciana. Ela não tem preferência pela farda do soldado, pela toga do magistrado, pelo terno do executivo ou pelo macacão do operário: ela divide e enfraquece todas as almas. Por sobre a derrota de todos, só o Partido se forlalece. E quando digo “partido”, não me refiro ao PT, mas ao complexo de partidos de esquerda bem articulados, por trás de suas divergências de superfície, na estratégia continental da subversão e do roubo. Se o sr. Luís Inácio da Silva, para assumir a presidência do país, abandonou a do Foro de São Paulo, isso é apenas uma formalidade administrativa sem alcance político nenhum. Depois que esse indivíduo confessou tomar decisões estratégicas em encontros secretos com ditadores estrangeiros, sem dar ciência delas ao Congresso ou à população, só mentalidades covardes demais para admitir a realidade podem continuar negando que o Brasil é governado desde o Foro de São Paulo, que Hugo Chávez e Fidel Castro mandam aqui dentro mais que qualquer ministro de Estado ou comandante militar. O país sabe que está de quatro, mas continua fazendo de conta que sua humilhação é motivo de orgulho. Decididamente, está havendo alguma confusão entre orgulho nacional e orgulho gay .

Ainda há tempo para salvar a dignidade das Forças Armadas? Há, mas encurta velozmente. Se querem uma fórmula, a lição 1 é simples: que os militares parem de acariciar os inimigos que os bajulam com doces palavras e aprendam a ouvir os amigos que os desagradam com verdades duras. A verdade é boa em si. Não tem por que tentar ser agradável. Quem prefere antes agrado do que sinceridade, é porque já está fraco demais para admitir a gravidade da sua própria situação. Homens de valor não pedem agrado. Pedem o conhecimento necessário para tomar decisões viris. Se é isso o que querem, contem comigo. Se querem agradinho, que vão pedir aos seus falsos amigos interesseiros.

A consciência humana em perigo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de março de 2006

Novamente, convido os leitores a me acompanhar numa rápida investigação filosófica. O assunto – os fundamentos, ou falta de fundamentos, da autoconsciência humana – parece estar longe da atualidade política imediata, mas quem tiver a paciência de chegar ao fim do artigo verá que não é assim. Nunca, como hoje, quando uma elite de burocratas iluminados remexe a seu belprazer os pilares da civilização como uma tropa de evadidos do hospício brincando de cientistas num laboratório nuclear, foi vital para cada habitante do planeta adquirir uma idéia clara das constantes que definem a condição humana, antes que o desenho mesmo da hominidade, sob o impacto de experimentos deformantes impostos em escala mundial, desapareça da sua lembrança. Mas uma dessas constantes é, precisamente, que toda constância humana só se revela, como em filigrana, sob o fundo da incessante mutação histórica. Só o conhecimento da história comparada das civilizações e culturas mostra, sob a variedade quase alucinante das formas, a durabilidade da estrutura geral do espírito humano. E, como aquilo que se encontra sob risco de perda imediata na voragem das transformações forçadas é sobretudo a unidade mesma da autoconsciência de cada indivíduo – a fragmentação da cultura resultando em estilhaçamento das almas –, nunca foi tão importante conhecer as mutações históricas da imagem do “eu” ao longo das épocas, para distinguir nela o que é acidental e transitório e o que é essencial, permanente e indispensável à defesa última da dignidade humana.

Um dos depósitos mais ricos de materiais para esse estudo são as autobiografias. O desenvolvimento histórico desse gênero literário evidencia de maneira particularmente clara as transformações da autoconsciência individual ao longo das épocas, paralelamente às modificações sobrevindas nas vivências respectivas do tempo, da memória e do próprio ato de narrar.

Dentre as muitas obras que têm saído a respeito, Memory and Narrative: The Weave of Life-Writing (The University of Chicago Press, 1998), de James Olsey, professor de Inglês na Universidade Estadual da Louisiana, é uma das mais úteis, porque, concentrando-se na história do gênero autobiográfico no período que vai das Confissões de Agostinho (397) até o monólogo cênico de Samuel Beckett, Company (1979), delineia muito claramente, no percurso entre esses dois extremos, a progressiva perda do sentido de unidade da autoconsciência, sem a qual a intenção mesma de narrar a própria vida se torna absurda.

O modelo estrutural da narrativa é o mesmo nos dois casos. Agostinho resume-o com o exemplo da prece. Quando ele vai recitar um salmo, já o sabe de cor, inteiro, de antemão. Enquanto o recita, as palavras que se sucedem em voz alta vão-se atualizando no tempo sobre o fundo estático do texto completo que permanece na memória. Terminada a recitação, o salmo se completou no tempo e é devolvido à memória, pronto para ser recitado de novo e de novo e de novo. Toda escrita autobiográfica tem mais ou menos essa estrutura. A vida que vai ser contada está completa na memória, mas prossegue no ato de recordá-la e continua depois de terminada a narração, devolvida à memória para ser narrada de novo, lida ou ouvida. Qual a “substância” dessa narrativa? O tempo, mas qual tempo? O passado, que já não existe mais? O presente, instante atomístico infinitesimal que se dissolve tão logo aparece? O futuro, que tem uma existência meramente conjetural? O enigma aparece mais ou menos igual nas Confissões e em Company .

Irmanados na preocupação comum com o tempo, a memória e o eu, os dois livros não poderiam ser mais antagônicos nas suas respectivas visões a respeito.

As memórias de Agostinho são a confissão formal de uma alma que, assumindo plenamente a autoria, a responsabilidade e as conseqüências de cada um de seus atos, pensamentos e estados interiores, mesmo os mais obscuros e remotos no tempo, comparece ao seu próprio julgamento como que ostentando uma identidade inteiriça, na qual as várias forças internas em conflito não fazem senão realçar a unidade tensional do todo. Agostinho consegue fazer isso porque compõe sua narrativa diante de uma platéia onisciente, o próprio Deus. “Caminhar diante de Deus” não significa outra coisa senão agir e pensar em confronto permanente com o símbolo “onisciência” – a fonte inalcançável e incontornável de toda consciência, a única garantia da sinceridade dos pensamentos, dos atos e da sua rememoração. Embora a expressão apareça na Bíblia, Agostinho foi o primeiro a explicitar em palavras o sentido da experiência aí resumida. O homem que caminha diante de Deus se governa e se concebe, a cada instante, como se estivesse diante do Juízo Final, na forma completa do seu ser individual conscientemente responsável pela escolha do seu próprio destino eterno. A vida completa do futuro é, pois, a medida da rememoração do passado, que o narrador empreende no presente.

É daí também que Agostinho extrai a solução do problema da insubstancialidade do tempo. Deus não é apenas onisciente: é eterno. Boécio, mais tarde, definirá a eternidade como “a posse plena e simultânea de todos os seus momentos”, mas o conceito já está implícito em Agostinho. Se os vários momentos não tem nenhuma unidade entre si, só lhes resta esfarelar-se num imenso nada. Só a sua unidade total e simultânea tem existência, mas essa unidade é a própria eternidade, e nada mais. O tempo, em si, não tem mesmo substancialidade nenhuma. É apenas uma miragem, uma “imagem móvel da eternidade”. Se Agostinho pode dominar intelectualmente o seu passado é porque o expõe ante o olhar da onisciência. Se pode ter a intuição da continuidade da sua existência, é porque a enxerga como um reflexo temporal da eternidade. A articulação da autoconsciência moral é a mesma articulação dos três tempos no eixo da eternidade.

A idéia do indivíduo como uma unidade complexa e dramática que se forma e se assume na encruzilhada dos três tempos incorpororou-se de tal modo à tradição ocidental que veio a inspirar toda a moderna psicologia da personalidade. Dezesseis séculos depois de Agsotinho, Maurice Pradines, no seu Traité de Psychologie Générale (1948), definiria a consciência como “a memória do passado preparada para as tarefas do futuro”. Mesmo em Freud, ao qual se atribui erroneamente muito da culpa (ou do mérito) pela dissolução da unidade do eu, a personalidade é a resultante de uma arbitragem progressivamente imposta pela consciência aos impulsos antagônicos do Id e do Super-ego. Nada poderia celebrar mais claramente a vitória final da unidade do que a célebre profecia do pai da psicanálise: “Onde há Id, haverá Ego.”

Totalmente diversa é a perspectiva em Company. Aqui, um velho entrevado, no palco, ouve episódios da sua vida – a vida do próprio Samuel Beckett – narrados e comentados, em monólogo, por uma voz sem rosto. Será a “voz da consciência”? Sim e não. Ela lhe fala dele próprio ora na segunda pessoa, ora na terceira. Aquele que, no presente, recorda o passado, já não sabe se esse passado é seu, de um terceiro ou de um personagem inventado. E a voz lança ao senso de identidade do ancião um temível desafio: se você não se recorda do seu nascimento, como pode ter a certeza de que essa vida que está recordando é a mesma daquele que cujo nascimento você acha que é o seu?

Tal como Agostinho, o personagem de Beckett – indiscernível do autor – desenha suas memórias sobre a superfície de contraste fornecida por um interlocutor invisível que transcende o narrador e tem sobre ele a autoridade de uma instância formadora. O resultado, por isso, difere conforme a identidade desse interlocutor. A eternidade e onissapiência de Deus conferem à auto-imagem biográfica de Agostinho a unidade de uma história assumida como criação pessoal responsável. Mas o interlocutor de Beckett não é onissapiente: é apenas mais arguto que o personagem. Ele é a razão crítica, poção corrosiva que dissolve o sentimento de unidade temporal do eu por meio de exigências epistemológicas que ele não tem como atender. O ancião entrevado não tem sequer o poder de dizer “eu” com consciência de causa, mas por isso talvez não lhe caibam também a culpa de seus pecados ou o mérito de suas realizações. O eu esfarelado, incapaz de contar sua própria história, é vítima de sua própria existência e não tem portanto nenhuma responsabilidade sobre ela. A narrativa de Agostinho sobe do fundo obscuro do coração para a luz divina que, em resposta, lhe confere a participação na sua própria unidade e claridade. A de Beckett vem de uma treva externa que obscurece o pouco de luz que o ego julgava possuir.

Na passagem de um extremo a outro, Olsey documenta algumas etapas da “crise da memória narrativa” que, como um fio condutor, atravessa toda a história da mentalidade ocidental moderna. Ele data das Confissões de Jean-Jacques Rousseau (1782) o começo da “crise”, mas está errado. Ela já estava plenamente instalada nas Meditações de Filosofia Primeira de René Descartes (1641), que se apresenta como uma autobiografia interior, a narrativa de um experimento cognitivo (v. http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/descartes.htm e http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/descartes2.htm). A confusão medonha que o filósofo aí produz entre o eu existencial concreto e o conceito abstrato do eu como autoconsciência absoluta ( cogito ergo sum ), passando do primeiro ao segundo sem notar que saltou da ordem temporal para a ordem dedutiva, é uma das mais prodigiosas mutilações já impostas à consciência autobiográfica do homem ocidental. Todo o problema de Beckett já estava aí. Como bem observou Jean Onimus (Beckett, un Écrivain devant Dieu, Desclée de Brouwer, 1967): “Instalai-vos no cogito cartesiano em seu ponto de origem, … e vereis o homem de Beckett em toda a extensão do seu infortúnio.”

O eu cartesiano não pode narrar sua história porque é apenas uma forma abstrata isolada no espaço, amputada da experiência temporal. Se o filósofo, no entanto, o apresenta sob forma narrativa, é porque, literalmente, não percebe o que está fazendo. O cartesianismo não é o capítulo inaugural da dissolução da autoconsciência narrativa (numa apostila inédita do meu Seminário de Filosofia atribuí essa duvidosa honra aos fragmentos autobiográficos de Nicolau Maquiavel), mas é um episódio importante do processo. A incongruência de Descartes será formidavelmente ampliada por Immanuel Kant mediante a idéia do “eu transcendental”. Esta assombrosa criatura da filosofia alemã tem a autoridade de demarcar as fronteiras da experiência acessível ao pobre eu existencial sem ser ela própria limitada por elas, mas sem por isso abrir ao eu existencial nem mesmo uma estreita frestinha por onde ele pudesse enxergar o que está para além dessas fronteiras. Ele é chamado “transcendental” precisamente porque fecha as portas de acesso ao “transcendente”. Instalado nas alturas medianas do eu transcendental, que fica só um pouco acima do eu existencial, o filósofo não permite que ninguém suba acima dele. A satisfação perversa com que ele crê determinar os “limites do conhecimento humano” mostra que ele tinha a consciência de ser algo assim como, nas escaladas iniciáticas, o “guardião do portal”, uma espécie de Pasionária metafísica, gritando aos buscadores da eternidade: No pasarán! No pasarán! Não tenho a menor dúvida de que o interlocutor de Beckett é o eu transcendental kantiano. Kant, por um lado, acreditava que o conhecimento humano está limitado à experiência sensível, ao espaço e ao tempo; por outro, dizia que os dados da experiência são um farelo caótico, ao qual a consciência impõe sua própria unidade. Mas, deixada a si mesma, sem o pano de fundo da eternidade, a própria consciência se esfarela. Mais claramente ainda do que em Descartes, o homem isolado e desesperado de Samuel Beckett está presente e manifesto na Crítica da Razão Pura de Kant (1781). Ao proibir o acesso da consciência à eternidade, o eu transcendental torna a própria consciência inacessível e evanescente. Daí a lógica aparente e a absurdidade profunda da cobrança que vem das trevas: a idéia de que só o eu que recordasse claramente o seu próprio nascimento teria autoridade para afirmar que sua história é sua própria história se baseia inteiramente numa pegadinha kantiana, e esta pegadinha, por sua vez, tem como premissa uma inépcia colossal: resulta em supor que a única autoconsciência legítima seria a de um ente que pudesse observar conscientemente seu próprio nascimento. Só que para isso ele teria de existir temporalmente antes de entrar na existência temporal. Na experiência real, todo começo, toda gestação, se dá na obscuridade: a luz é uma conquista progressiva. Narrar a própria vida sem ser testemunha do próprio nascimento não é uma pretensão indevida: é simplesmente a condição real da experiência humana. O eu transcendental, pretendendo fazer a crítica da experiência, estabelece premissas que negam a possibilidade de toda experiência e, portanto, da própria crítica. Beckett está consciente do caráter humorístico de suas especulações. Mas o humorismo kantiano é pateticamente involuntário. O estudo de Olsey guarda o mérito de elaborar o conceito fundamental da “crise”, mas, ao exemplificá-lo, é muito incompleto. Descartes só é mencionado de passagem, e o nome de Kant nem aparece. Imperdoável é a omissão de Proust, que passou a vida tentando resolver o problema agostiniano do tempo, assim como a de Arthur Koestler, que, em Darkness at Noon (1940), documentou a redução da autoconsciência, sob a pressão do totalitarismo moderno, a uma “ficção gramatical”. O autor também não dá sinal de associar a “crise da memória” a um processo paralelo e inseparável: a epidemia de narrativas autobiográficas e biográficas conscientemente falseadas para fins de propaganda política, fenômeno observado na França desde pelo menos um século antes desse mentiroso não muito consciente que foi Rousseau. Seria impossível, de fato, que a dissolução da autoconsciência não viesse junto com a perda progressiva do sentido de responsabilidade intelectual e a expansão formidável da amoralidade, do cinismo manipulador, da crueldade sádica. A destruição das bases civilizacionais da existência humana não começa nos campos de batalha nem nas bolsas de valores: começa nos tranqüilos gabinetes onde homens aparentemente inofensivos – quer se trate de filósofos ou de burocratas da ONU — tentam ser mais sábios que Deus. Não tem cabimento dissociar da crise da autoconsciência a progressiva rejeição moderna do senso de eternidade, e não é possível aceitar a dissolução da autoconsciência tentando preservar, ao mesmo tempo, altos padrões morais de conduta. Neste fim de era, as conseqüências históricas de decisões intelectuais tomadas três, quatro, cinco séculos atrás assumem a forma do totalitarismo, da violência generalizada, do genocídio e, sobretudo, do império universal da mentira. Aqueles que buscam na ação política um remédio para esses males vão ter de compreender, mais dia menos dia, que a raiz deles está nas regiões etéreas do pensamento abstrato. E aqueles que, por afeição pessoal, se dedicam ao pensamento abstrato, devem examinar com toda a seriedade de consciência os efeitos devastadores dos abstratismos aparentemente inócuos criados pelos filósofos dos séculos passados. Nesse sentido, a filosofia é política, e a política é filosofia.

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