Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de março de 2006

Novamente, convido os leitores a me acompanhar numa rápida investigação filosófica. O assunto – os fundamentos, ou falta de fundamentos, da autoconsciência humana – parece estar longe da atualidade política imediata, mas quem tiver a paciência de chegar ao fim do artigo verá que não é assim. Nunca, como hoje, quando uma elite de burocratas iluminados remexe a seu belprazer os pilares da civilização como uma tropa de evadidos do hospício brincando de cientistas num laboratório nuclear, foi vital para cada habitante do planeta adquirir uma idéia clara das constantes que definem a condição humana, antes que o desenho mesmo da hominidade, sob o impacto de experimentos deformantes impostos em escala mundial, desapareça da sua lembrança. Mas uma dessas constantes é, precisamente, que toda constância humana só se revela, como em filigrana, sob o fundo da incessante mutação histórica. Só o conhecimento da história comparada das civilizações e culturas mostra, sob a variedade quase alucinante das formas, a durabilidade da estrutura geral do espírito humano. E, como aquilo que se encontra sob risco de perda imediata na voragem das transformações forçadas é sobretudo a unidade mesma da autoconsciência de cada indivíduo – a fragmentação da cultura resultando em estilhaçamento das almas –, nunca foi tão importante conhecer as mutações históricas da imagem do “eu” ao longo das épocas, para distinguir nela o que é acidental e transitório e o que é essencial, permanente e indispensável à defesa última da dignidade humana.

Um dos depósitos mais ricos de materiais para esse estudo são as autobiografias. O desenvolvimento histórico desse gênero literário evidencia de maneira particularmente clara as transformações da autoconsciência individual ao longo das épocas, paralelamente às modificações sobrevindas nas vivências respectivas do tempo, da memória e do próprio ato de narrar.

Dentre as muitas obras que têm saído a respeito, Memory and Narrative: The Weave of Life-Writing (The University of Chicago Press, 1998), de James Olsey, professor de Inglês na Universidade Estadual da Louisiana, é uma das mais úteis, porque, concentrando-se na história do gênero autobiográfico no período que vai das Confissões de Agostinho (397) até o monólogo cênico de Samuel Beckett, Company (1979), delineia muito claramente, no percurso entre esses dois extremos, a progressiva perda do sentido de unidade da autoconsciência, sem a qual a intenção mesma de narrar a própria vida se torna absurda.

O modelo estrutural da narrativa é o mesmo nos dois casos. Agostinho resume-o com o exemplo da prece. Quando ele vai recitar um salmo, já o sabe de cor, inteiro, de antemão. Enquanto o recita, as palavras que se sucedem em voz alta vão-se atualizando no tempo sobre o fundo estático do texto completo que permanece na memória. Terminada a recitação, o salmo se completou no tempo e é devolvido à memória, pronto para ser recitado de novo e de novo e de novo. Toda escrita autobiográfica tem mais ou menos essa estrutura. A vida que vai ser contada está completa na memória, mas prossegue no ato de recordá-la e continua depois de terminada a narração, devolvida à memória para ser narrada de novo, lida ou ouvida. Qual a “substância” dessa narrativa? O tempo, mas qual tempo? O passado, que já não existe mais? O presente, instante atomístico infinitesimal que se dissolve tão logo aparece? O futuro, que tem uma existência meramente conjetural? O enigma aparece mais ou menos igual nas Confissões e em Company .

Irmanados na preocupação comum com o tempo, a memória e o eu, os dois livros não poderiam ser mais antagônicos nas suas respectivas visões a respeito.

As memórias de Agostinho são a confissão formal de uma alma que, assumindo plenamente a autoria, a responsabilidade e as conseqüências de cada um de seus atos, pensamentos e estados interiores, mesmo os mais obscuros e remotos no tempo, comparece ao seu próprio julgamento como que ostentando uma identidade inteiriça, na qual as várias forças internas em conflito não fazem senão realçar a unidade tensional do todo. Agostinho consegue fazer isso porque compõe sua narrativa diante de uma platéia onisciente, o próprio Deus. “Caminhar diante de Deus” não significa outra coisa senão agir e pensar em confronto permanente com o símbolo “onisciência” – a fonte inalcançável e incontornável de toda consciência, a única garantia da sinceridade dos pensamentos, dos atos e da sua rememoração. Embora a expressão apareça na Bíblia, Agostinho foi o primeiro a explicitar em palavras o sentido da experiência aí resumida. O homem que caminha diante de Deus se governa e se concebe, a cada instante, como se estivesse diante do Juízo Final, na forma completa do seu ser individual conscientemente responsável pela escolha do seu próprio destino eterno. A vida completa do futuro é, pois, a medida da rememoração do passado, que o narrador empreende no presente.

É daí também que Agostinho extrai a solução do problema da insubstancialidade do tempo. Deus não é apenas onisciente: é eterno. Boécio, mais tarde, definirá a eternidade como “a posse plena e simultânea de todos os seus momentos”, mas o conceito já está implícito em Agostinho. Se os vários momentos não tem nenhuma unidade entre si, só lhes resta esfarelar-se num imenso nada. Só a sua unidade total e simultânea tem existência, mas essa unidade é a própria eternidade, e nada mais. O tempo, em si, não tem mesmo substancialidade nenhuma. É apenas uma miragem, uma “imagem móvel da eternidade”. Se Agostinho pode dominar intelectualmente o seu passado é porque o expõe ante o olhar da onisciência. Se pode ter a intuição da continuidade da sua existência, é porque a enxerga como um reflexo temporal da eternidade. A articulação da autoconsciência moral é a mesma articulação dos três tempos no eixo da eternidade.

A idéia do indivíduo como uma unidade complexa e dramática que se forma e se assume na encruzilhada dos três tempos incorpororou-se de tal modo à tradição ocidental que veio a inspirar toda a moderna psicologia da personalidade. Dezesseis séculos depois de Agsotinho, Maurice Pradines, no seu Traité de Psychologie Générale (1948), definiria a consciência como “a memória do passado preparada para as tarefas do futuro”. Mesmo em Freud, ao qual se atribui erroneamente muito da culpa (ou do mérito) pela dissolução da unidade do eu, a personalidade é a resultante de uma arbitragem progressivamente imposta pela consciência aos impulsos antagônicos do Id e do Super-ego. Nada poderia celebrar mais claramente a vitória final da unidade do que a célebre profecia do pai da psicanálise: “Onde há Id, haverá Ego.”

Totalmente diversa é a perspectiva em Company. Aqui, um velho entrevado, no palco, ouve episódios da sua vida – a vida do próprio Samuel Beckett – narrados e comentados, em monólogo, por uma voz sem rosto. Será a “voz da consciência”? Sim e não. Ela lhe fala dele próprio ora na segunda pessoa, ora na terceira. Aquele que, no presente, recorda o passado, já não sabe se esse passado é seu, de um terceiro ou de um personagem inventado. E a voz lança ao senso de identidade do ancião um temível desafio: se você não se recorda do seu nascimento, como pode ter a certeza de que essa vida que está recordando é a mesma daquele que cujo nascimento você acha que é o seu?

Tal como Agostinho, o personagem de Beckett – indiscernível do autor – desenha suas memórias sobre a superfície de contraste fornecida por um interlocutor invisível que transcende o narrador e tem sobre ele a autoridade de uma instância formadora. O resultado, por isso, difere conforme a identidade desse interlocutor. A eternidade e onissapiência de Deus conferem à auto-imagem biográfica de Agostinho a unidade de uma história assumida como criação pessoal responsável. Mas o interlocutor de Beckett não é onissapiente: é apenas mais arguto que o personagem. Ele é a razão crítica, poção corrosiva que dissolve o sentimento de unidade temporal do eu por meio de exigências epistemológicas que ele não tem como atender. O ancião entrevado não tem sequer o poder de dizer “eu” com consciência de causa, mas por isso talvez não lhe caibam também a culpa de seus pecados ou o mérito de suas realizações. O eu esfarelado, incapaz de contar sua própria história, é vítima de sua própria existência e não tem portanto nenhuma responsabilidade sobre ela. A narrativa de Agostinho sobe do fundo obscuro do coração para a luz divina que, em resposta, lhe confere a participação na sua própria unidade e claridade. A de Beckett vem de uma treva externa que obscurece o pouco de luz que o ego julgava possuir.

Na passagem de um extremo a outro, Olsey documenta algumas etapas da “crise da memória narrativa” que, como um fio condutor, atravessa toda a história da mentalidade ocidental moderna. Ele data das Confissões de Jean-Jacques Rousseau (1782) o começo da “crise”, mas está errado. Ela já estava plenamente instalada nas Meditações de Filosofia Primeira de René Descartes (1641), que se apresenta como uma autobiografia interior, a narrativa de um experimento cognitivo (v. http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/descartes.htm e http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/descartes2.htm). A confusão medonha que o filósofo aí produz entre o eu existencial concreto e o conceito abstrato do eu como autoconsciência absoluta ( cogito ergo sum ), passando do primeiro ao segundo sem notar que saltou da ordem temporal para a ordem dedutiva, é uma das mais prodigiosas mutilações já impostas à consciência autobiográfica do homem ocidental. Todo o problema de Beckett já estava aí. Como bem observou Jean Onimus (Beckett, un Écrivain devant Dieu, Desclée de Brouwer, 1967): “Instalai-vos no cogito cartesiano em seu ponto de origem, … e vereis o homem de Beckett em toda a extensão do seu infortúnio.”

O eu cartesiano não pode narrar sua história porque é apenas uma forma abstrata isolada no espaço, amputada da experiência temporal. Se o filósofo, no entanto, o apresenta sob forma narrativa, é porque, literalmente, não percebe o que está fazendo. O cartesianismo não é o capítulo inaugural da dissolução da autoconsciência narrativa (numa apostila inédita do meu Seminário de Filosofia atribuí essa duvidosa honra aos fragmentos autobiográficos de Nicolau Maquiavel), mas é um episódio importante do processo. A incongruência de Descartes será formidavelmente ampliada por Immanuel Kant mediante a idéia do “eu transcendental”. Esta assombrosa criatura da filosofia alemã tem a autoridade de demarcar as fronteiras da experiência acessível ao pobre eu existencial sem ser ela própria limitada por elas, mas sem por isso abrir ao eu existencial nem mesmo uma estreita frestinha por onde ele pudesse enxergar o que está para além dessas fronteiras. Ele é chamado “transcendental” precisamente porque fecha as portas de acesso ao “transcendente”. Instalado nas alturas medianas do eu transcendental, que fica só um pouco acima do eu existencial, o filósofo não permite que ninguém suba acima dele. A satisfação perversa com que ele crê determinar os “limites do conhecimento humano” mostra que ele tinha a consciência de ser algo assim como, nas escaladas iniciáticas, o “guardião do portal”, uma espécie de Pasionária metafísica, gritando aos buscadores da eternidade: No pasarán! No pasarán! Não tenho a menor dúvida de que o interlocutor de Beckett é o eu transcendental kantiano. Kant, por um lado, acreditava que o conhecimento humano está limitado à experiência sensível, ao espaço e ao tempo; por outro, dizia que os dados da experiência são um farelo caótico, ao qual a consciência impõe sua própria unidade. Mas, deixada a si mesma, sem o pano de fundo da eternidade, a própria consciência se esfarela. Mais claramente ainda do que em Descartes, o homem isolado e desesperado de Samuel Beckett está presente e manifesto na Crítica da Razão Pura de Kant (1781). Ao proibir o acesso da consciência à eternidade, o eu transcendental torna a própria consciência inacessível e evanescente. Daí a lógica aparente e a absurdidade profunda da cobrança que vem das trevas: a idéia de que só o eu que recordasse claramente o seu próprio nascimento teria autoridade para afirmar que sua história é sua própria história se baseia inteiramente numa pegadinha kantiana, e esta pegadinha, por sua vez, tem como premissa uma inépcia colossal: resulta em supor que a única autoconsciência legítima seria a de um ente que pudesse observar conscientemente seu próprio nascimento. Só que para isso ele teria de existir temporalmente antes de entrar na existência temporal. Na experiência real, todo começo, toda gestação, se dá na obscuridade: a luz é uma conquista progressiva. Narrar a própria vida sem ser testemunha do próprio nascimento não é uma pretensão indevida: é simplesmente a condição real da experiência humana. O eu transcendental, pretendendo fazer a crítica da experiência, estabelece premissas que negam a possibilidade de toda experiência e, portanto, da própria crítica. Beckett está consciente do caráter humorístico de suas especulações. Mas o humorismo kantiano é pateticamente involuntário. O estudo de Olsey guarda o mérito de elaborar o conceito fundamental da “crise”, mas, ao exemplificá-lo, é muito incompleto. Descartes só é mencionado de passagem, e o nome de Kant nem aparece. Imperdoável é a omissão de Proust, que passou a vida tentando resolver o problema agostiniano do tempo, assim como a de Arthur Koestler, que, em Darkness at Noon (1940), documentou a redução da autoconsciência, sob a pressão do totalitarismo moderno, a uma “ficção gramatical”. O autor também não dá sinal de associar a “crise da memória” a um processo paralelo e inseparável: a epidemia de narrativas autobiográficas e biográficas conscientemente falseadas para fins de propaganda política, fenômeno observado na França desde pelo menos um século antes desse mentiroso não muito consciente que foi Rousseau. Seria impossível, de fato, que a dissolução da autoconsciência não viesse junto com a perda progressiva do sentido de responsabilidade intelectual e a expansão formidável da amoralidade, do cinismo manipulador, da crueldade sádica. A destruição das bases civilizacionais da existência humana não começa nos campos de batalha nem nas bolsas de valores: começa nos tranqüilos gabinetes onde homens aparentemente inofensivos – quer se trate de filósofos ou de burocratas da ONU — tentam ser mais sábios que Deus. Não tem cabimento dissociar da crise da autoconsciência a progressiva rejeição moderna do senso de eternidade, e não é possível aceitar a dissolução da autoconsciência tentando preservar, ao mesmo tempo, altos padrões morais de conduta. Neste fim de era, as conseqüências históricas de decisões intelectuais tomadas três, quatro, cinco séculos atrás assumem a forma do totalitarismo, da violência generalizada, do genocídio e, sobretudo, do império universal da mentira. Aqueles que buscam na ação política um remédio para esses males vão ter de compreender, mais dia menos dia, que a raiz deles está nas regiões etéreas do pensamento abstrato. E aqueles que, por afeição pessoal, se dedicam ao pensamento abstrato, devem examinar com toda a seriedade de consciência os efeitos devastadores dos abstratismos aparentemente inócuos criados pelos filósofos dos séculos passados. Nesse sentido, a filosofia é política, e a política é filosofia.

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