Posts Tagged Diário do Comércio

Remexidos pelo vira-bosta

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de junho de 2007

Resposta a artigo de Armindo Abreu sob o título “O vira-bosta da Virgínia” que será publicado no mesmo número do DC.

O vira-bosta leva esse nome porque remexe cocôs. Mereço o apelido, porque há tempos não faço outra coisa. Que mais resta a um comentarista político no Brasil de hoje? É normal, portanto, que de vez em quando alguns dos remexidos protestem. É também previsível que o façam naquela linguagem rebuscada, tortuosa e lombricóide de oratória interiorana, que na obscuridade intestinal em que vegetam lhes parece o suprassumo da elegância literária. Apenas é fatal que, no manejo desses complexos arranjos verbais, às vezes percam o rumo do que pretendiam dizer e acabem se melando a si próprios na matéria excrementícia com que planejavam sujar o adversário. Lembro-me do ex-ministro da Justiça e assaltante de bancos aposentado, Aloysio Nunes Ferreira Filho, que ao ler uma sondagem que fiz de suas idéias me acusou de “mergulhar no esterco”, não me deixando alternativa senão lhe dar razão.

O sr. Armindo Abreu segue-lhe o exemplo. Desejando espalhar suspeitas escabrosas sobre as fontes do meu sustento nos EUA (É a CIA? É o Departamento de Estado?), comete a gafe irreparável de enviá-las justamente ao jornal que paga o meu salário de correspondente em Washington. Pretendendo afetar olímpico desprezo à minha pessoa, não consegue esconder os tremeliques de gozo que sacodem a sua vaidade senil ante a notícia de que foi mencionado na minha coluna – certamente o seu maior momento de glória nesta vida. Jurando que jamais me dirigiu a palavra, esquece que me dirigiu alguns milhares delas, já que me enviou um livro inteiro, decerto por saber que eu jamais o compraria. E, acusando-me de ter-lhe feito na minha coluna um ataque imotivado e gratuito, finge esquecer que o trecho mencionado não pode ter sido nem uma coisa nem a outra, pois foi escrito em resposta a coisas cabeludas que ele dissera de mim antes. Por que é que esse sujeito não tem um pouco de compaixão por si mesmo? Por que não relê o que escreve, em vez de se expor ao ridículo dessa maneira?

Mas no Brasil de hoje é assim: nem a substância fecal jogada no ventilador pode mais confiar no controle de vôo.

A nota que publiquei sobre o sr. Abreu tinha doze linhas. Ele me respondeu com 163. Se o leitor tiver a caridade de as ler até o fim, verificará que não respondem a nada ao que eu disse dele na coluna do dia 26.

O sr. Armindo, escrevi ali, “cacareja que meus artigos de 1999 foram plagiados do seu livro de 2005, que eu nunca disse uma palavra contra o establishment americano e que o Foro de São Paulo é ‘uma entidade quase ficcional’. Pela exatidão de qualquer das três afirmações mede-se a veracidade das outras duas. Como ele também me acusa de calúnia, injúria e difamação, mas não diz a quem caluniei, injuriei ou difamei, é ele quem, no mesmo ato, comete esses três crimes contra mim.”

Na sua resposta, ele não desmente nem justifica nenhuma de suas imputações. Ao contrário, acrescenta-lhes mais algumas: que padeço de “pretensiosa avidez em frenética busca por algum reconhecimento intelectual” (de quem, Deus do céu?), que sou um “anarquista cheio de ódio pela sociedade organizada” (organizada pelo PCC, pelo Comando Vermelho e pelas Farc), que sou bajulador de militares (o brigadeiro Ferolla, o general Andrade Nery e a Escola Superior de Guerra que o digam), que beijo as mãos dos Rockefellers (veja-se por exemplo http://www.olavodecarvalho.org/semana/060501dc.html), que fico fora do ambiente acadêmico para me furtar à “ampla concorrência de idéias” que ali vigora (você pode escolher entre ser leninista, maoísta ou trotsquista), que vivo às custas dos outros (exploro miseravelmente o Diário do Comércio) e, last not least , que meu pai e minha mãe não prestavam. Quanto a este último ponto, ele esclarece que a grande falha na minha educação doméstica foi não haver em minha casa uma penteadeira da vovó. Sim, admito essa deficiência. Mal consigo imaginar, no meu primitivismo bárbaro, os requintes de civilização que o pequeno Armindo adquiriu sentadinho horas a fio diante dessa venerável peça de mobiliário, ajeitando as ondas dos cabelos, aparando as cutículas, empoando o narizinho e se preparando, por esse meio, para os grandes embates intelectuais que o aguardavam na vida adulta.

Mas o detalhe mais patético da sua missiva é o empenho do remetente em fazer acreditar que a nota que escrevi a seu respeito foi uma tentativa – falhada e torpe, obviamente – de crítica literária ao seu livro. O leitor pode notar sem dificuldade que essa obra magna da cretinice universal só foi ali mencionada para identificar o autor; que a nota se destinava a responder a injúrias pessoais e não a comentar um livro. Se eu fosse comentá-lo, diria no máximo o seguinte:

1. A referida coisa é um compêndio de teoria da conspiração, montado com base em não mais de quinze títulos especializados (o restante da sua bibliografia é constituído de obras gerais e artigos de imprensa), o que mostra que seu autor não tem a menor idéia das exigências da pesquisa acadêmica, nem muito menos das complexidades de um tema cuja literatura superlota hoje muitas bibliotecas.

2. Sua tese é: Por trás de tudo o que acontece no mundo há um poder secreto, a oligarquia maçônico-financeira global originada na seita dos illuminatti , dominando e manipulando por igual a esquerda e a direita, o catolicismo, o judaísmo, o islamismo, o capitalismo, o comunismo, o fascismo etc. etc. etc. É em linhas gerais a mesma tese clássica dos velhos teóricos da conspiração, apenas ampliada para conceder aos “controladores”, como ele os chama, a absoluta unidade de comando em escala universal e o dom da onipotência divina. O livro reflete menos a realidade do poder global, com todas as suas ambigüidades, fraquezas e limitações, do que o efeito alucinógeno que algumas leituras assustadoras tiveram na mente em fogo do sr. Abreu.

3. Se ele parasse por aí, teria ao menos o mérito do divulgador, recolocando em circulação, ainda que num trabalho intelectualmente ginasiano, um tema importantíssimo que há mais de meio século é ignorado pela nossa classe acadêmica e pela mídia em geral. Mas ele resolve anexar aí sua própria contribuição original, que é adapar as teorias da conspiração mundial às lendas e tradições da xenofobia local, segundo as quais os gringos (conceito elástico que engloba o poder mundial, a ONU, o governo americano e cada empresa sediada nos EUA) querem nos tomar a Amazônia, o petróleo, os minerais atômicos, a água que bebemos e talvez até a penteadeira da vovó, monumento da cultura nacional.

4. Aí não há mais limites para a confusão, e não é de estranhar que os leitores, admiradores e seguidores do sr. Abreu – algumas dezenas de oficiais ditos “nacionalistas”, todos eles monstruosamente incultos – tirem do seu livro as conclusões práticas mais desastradas e as alardeiem triunfalmente em publicações comunistas e pró-comunistas (“A Hora do Povo”, www.vermelho.org , “Caros Amigos” etc.), como por exemplo a de que o Brasil deve se aliar aos demais “patriotas latino-americanos” (leia-se Hugo Chávez) para uma grande investida anti-imperialista contra “os gringos”. Evidentemente, nada no livro do sr. Abreu lhes informa que a direita americana é o único foco sério de resistência contra o poder global, nem portanto que atacando-a só fazem servir a este último e dar reforço à revolução esquerdista latino-americana, que eles mesmos juram ser um tentáculo desse poder. Que depois alguns deles fiquem chorando no travesseiro quando o desertor Lamarca recebe honras póstumas de general só mostra que não têm a menor idéia das conseqüências de suas próprias ações. Jamais os chamei de comunistas. Chamei-os de idiotas presunçosos, e por nada deste mundo perderia esta ocasião de fazê-lo de novo.

Na verdade, o poder global é assunto seríssimo, o mais sério das últimas décadas. Para estudá-lo é preciso muito mais leitura do que o sr. Abreu pode sequer imaginar, além de cuidados metodológicos que implicam — nada mais, nada menos — uma revisão integral dos conceitos fundamentais da ciência política e das relações internacionais. Venho me dedicando a essa tarefa há pelo menos duas décadas. Algo do meu esforço nesse sentido transparece nos artigos deste Diário , bem como nas minhas aulas e nas apostilas de meus cursos que circulam sob o título “Ser e Poder” e “Questões de Método nas Ciências Sociais”.

Realmente não posso gostar de ver um amador despreparado se intrometer na área e bagunçar o panorama onde eu vinha tentando tão laboriosamente introduzir alguma ordem e clareza. O tema, além da sua complexidade quase inabarcável, remexe até às raízes uma infinidade de dores, crueldades, padecimentos e misérias. Aproximar-se dele sem as devidas precauções é, além de uma irresponsabilidade intelectual, uma leviandade moral dificilmente perdoável. Ser um vira-bosta não é para qualquer um.

Os dois pilares em que se assenta o poder global são a ignorância e a confusão. A primeira se produz ocultando os fatos; a segunda, divulgando-os em desordem perturbadora, sem uma perspectiva intelectual sensata. Jurando derrubar o primeiro desses pilares, o sr. Abreu reforçou formidavelmente o segundo, ao ponto de deixar seus leitores um pouco mais bobos do que já eram.

Admito as intenções patrióticas com que o fez, mas não posso dizer que essas intenções fossem verdadeiramente boas. Não há boa intenção sem amor à verdade, nem amor à verdade sem a rendição completa da inteligência à complexidade de fatos que não se deixam prender num esquema simploriamente unívoco, principalmente quando os atacamos com base num arsenal bibliográfico tão miserável quanto o de “O Poder Secreto!”

O problema do Brasil, no fundo, não é o esquerdismo, não é a corrupção, não é a violência, não é nem mesmo o “poder secreto”. É o desprezo atávico pelo conhecimento, ao lado de um amor idolátrico aos seus símbolos exteriores: diplomas, medalhas, honrarias acadêmicas, títulos honoríficos. O sr. Abreu contempla diariamente os seus, com deleites de menino trancado no banheiro com um número da Playboy . Está na hora tirá-lo de lá com uns bons tapas no traseiro e uma ordem taxativa: “Vá estudar, moleque.”

A fórmula para enlouquecer o mundo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 11 de junho de 2007

Adam Smith observa que em toda sociedade coexistem dois sistemas morais: um, rigidamente conservador, para os pobres; outro, flexível e permissivo, para os ricos e elegantes. A história confirma abundantemente essa generalização, mas ainda podemos extrair dela muita substância que não existia no tempo de Adam Smith. O que aconteceu foi que o advento da moderna democracia modificou bastante a convivência entre os dois códigos. Primeiro elevou até à classe dominante o moralismo dos pobres: na América do século XIX vemos surgir pela primeira vez na História uma casta de governantes que admitem ser julgados pelas mesmas regras vigentes entre o resto da população. No século seguinte, as proporções se invertem: a permissividade não só se instala de novo entre a classe chique, mas daí desce e contamina o povão. É verdade que não o faz por completo: metade da nação americana ainda se compreende e se julga segundo os preceitos da Bíblia. Mas os efeitos da “revolução sexual” foram profundos, espalhando por toda parte o permissivismo e o deboche para muito além da esfera sexual. O episódio Clinton, perdoado pelo Parlamento após ter usado o Salão Oval da Casa Branca como quarto de motel, mostra que, para uma grande parcela da opinião pública, até as aparências de moralidade se tornaram dispensáveis. Um breve exame das estatísticas de gravidez infanto-juvenil e do uso de drogas mostra que idêntica transformação ocorreu nos países da Europa ocidental, onde a dissolução dos costumes já vinha desde o fim da I Guerra Mundial (v. Modris Eksteins, Rites of Spring ).

As conseqüências dessa transformação se ampliam para muito além do domínio “moral”. Conforme vem demonstrando E. Michael Jones numa série memorável de estudos (Degenerate Moderns: Modernity as Rationalized Sexual Misbehavior , San Francisco, Ignatius Press, 1993, e volumes subseqüentes) , é aí mesmo que se deve procurar a causa do sucesso das ideologias totalitárias no século XX. Articulando o seu diagnóstico com o de Gertrude Himmelfarb em One Nation, Two Cultures: A Searching Examination of American Society in the Aftermath of Our Cultural Revolution (New York, Vintage Books, 1999), podemos chegar a algumas conclusões bem elucidativas.

O poeta Stephen Spender, após romper com o Partido Comunista, já havia admitido que o que conduzia os intelectuais ocidentais à paixão por ideologias contrárias à própria liberdade de que desfrutavam era o sentimento de culpa e o desejo de livrar-se dele a baixo preço. A origem dessa culpa reside no fato de que amplas faixas da classe média passaram a desfrutar de lazeres e prazeres praticamente ilimitados, sem ter de arcar com as responsabilidades políticas, militares e religiosas com que a antiga aristocracia pagava o preço moral dos seus desmandos sexuais e etílicos. Num tempo em que a França era o país mais cristão da Europa, Luís XIV tinha nada menos de 28 amantes, mas sua rotina de trabalho era mais pesada que a de qualquer executivo de multinacional, sem contar o fato, tão brilhantemente enfatizado por René Girard (Le Bouc Émissaire , Paris, Grasset, 1982), de que a função real trazia consigo a obrigação de servir de bode expiatório para os males nacionais: quando a cabeça de Luís XVI rolou em pagamento das dívidas de seu pai e de seu avô, isso não foi uma inovação revolucionária, mas o simples cumprimento de um acordo tácito vigente no cerne mesmo do sistema monárquico. Já na Idade Média, os encargos da defesa territorial incumbiam inteiramente à classe aristocrática: ninguém podia obrigar um camponês ou comerciante a ir para a guerra, mas o nobre que fugisse aos seus deveres bélicos seria instantaneamente executado pelos seus pares. Noblesse oblige : a classe aristocrática era liberada de parte dos rigores morais cristãos na mesma medida em que pagava pela sua liberdade com a permanente oferta da própria vida em sacrifício pelo bem de todos. A democratização da permissividade espalha os direitos da aristocracia por uma multidão de recém-chegados que de repente se vêem liberados da pressão religiosa sem ter de assumir por isso nenhum encargo extra, por mínimo que seja, capaz de restaurar o equilíbrio entre direitos e deveres. Ao contrário, junto com a liberdade vem o acesso a bens inumeráveis e a um padrão de vida que chega mesmo a ser superior ao da velha aristocracia – tudo isso a leite de pato. Ortega y Gasset notou, no seu clássico de 1928, La Rebelión de las Masas , que o típico representante da moderna classe média, o “homem massa”, era realmente um filhinho-de-papai, um señorito satisfecho que se julgava herdeiro legítimo de todos os benefícios da civilização moderna para os quais não havia contribuído em absolutamente nada, pelos quais não tinha de pagar coisa nenhuma e dos quais, geralmente, ignorava tudo quanto aos sacrifícios que os produziram.

Por toda parte, nas civilizações anteriores, um certo equilíbrio entre custo e benefício, entre direitos e deveres, entre prazeres e sacrifícios, era reconhecido como o princípio central da sanidade humana. A liberação de massas imensas de população para o desfrute de prazeres e requintes gratuitos é uma das situações psicológicas mais ameaçadoras já vividas pela humanidade desde o tempo das cavernas. Para cada indivíduo engolfado nesse processo, o efeito mais direto e incontornável da experiência é um sentimento de culpa tanto mais profundo e avassalador quanto menos conscientizado. Mas como poderia ele ser conscientizado, se na mesma medida em que se abrem as portas do prazer se fecham as da consciência religiosa? O señorito satisfecho é corroído por um profundo ódio a si mesmo, mas está proibido, pela cultura vigente, de perceber a verdadeira natureza de suas culpas, e mais ainda de aliviá-las mediante a confissão religiosa e o cumprimento de deveres penitenciais. A culpa mal conscientizada, conforme a psicanálise demonstrou vezes sem conta, acaba sempre se exteriorizando como fantasia persecutória e acusatória projetada sobre os outros, sobre “o mundo” sobre “o sistema”. O homem medianamente instruído do nosso tempo joga suas culpas sobre “o sistema”, fingindo para si mesmo que está revoltado pelo que ele nega aos pobres, quando na realidade o odeia por aquilo que esse sistema lhe dá sem exigir nada em troca. Não que o sistema seja isento de culpas; mas a mesma prosperidade geral que espalha os benefícios da civilização entre massas crescentes que jamais poderiam sonhar com isso nos séculos anteriores mostra que essas culpas não são de ordem econômica, mas cultural: o capitalismo não cria miséria e sim riqueza; mas junto com ela espalha o laicismo e o permissivismo, rompendo o equilíbrio entre o prazer e o sacrifício, necessidade básica da psique humana. Daí o aparente paradoxo de que o ódio ao sistema se dissemine principalmente – ou exclusivamente – entre as classes que dele mais se beneficiam materialmente (lembre-se do que eu disse sobre o movimento gay no artigo da semana passada). A tentação socialista aparece aí como o canal mais fácil por onde as culpas do filhinho-de-papai são jogadas precisamente sobre as fontes do seu bem-estar e da sua liberdade. Vejam essa meninada da USP, gente de classe média e alta, depredando uma universidade gratuita, e compreenderão do que estou falando: o que esses garotos precisam não é de mais benefícios; é de uma cobrança moral que restaure a sua sanidade. Mas, como os representantes do Estado são eles próprios señoritos satisfechos que também não compreendem a origem das suas próprias culpas, sua tendência é fazer dos jovens enragés um símbolo da sua própria consciência moral faltante; daí que lhes cedam tudo, num arremedo de penitência, corrompendo-os e corrompendo-se cada vez mais e precipitando uma acumulação de culpas que só pode culminar na suprema culpa da sangueira revolucionária. “Vivemos num mundo demente, e sabemos perfeitamente disso”, dizia Jan Huizinga na década de 30, pouco antes que o desequilíbrio da alma européia desaguasse no morticínio geral. Transcorridas quase oito décadas, a humanidade ocidental nada aprendeu com a experiência e está pronta a repeti-la. Hipnotizada pela lógica do desejo, que não enxerga cura para os males senão na busca de mais satisfações e mais liberdade, como poderia ela descobrir que seu problema não é falta de bens ou prazeres, mas falta de deveres e sacrifícios que restaurem o sentido da vida e a integridade da alma?

Não é preciso dizer que a adesão ao Ersatz revolucionário e socialista, sendo na base uma farsa neurótica, não alivia as culpas de maneira alguma, mas as recalca ainda mais fundo no inconsciente, onde se tornam tanto mais explosivas e letais quanto mais encobertas por um discurso de autobeatificação ideológica (Marilena Chauí sonhava em “viver sem culpas”; o sr. Luís Inácio Lula da Silva admite modestamente ter realizado esse ideal). O ódio ao sistema – com sua expressão mais típica hoje em dia, o anti-americanismo — cresce na medida mesma em que a ilusão autolisonjeira da pureza de intenções induz cada um a sujar-se cada vez mais na cumplicidade com a corrupção e os crimes do partido revolucionário. Os capitalistas, os representantes do “sistema”, por sua vez, aceitam passivamente ser objeto de ódio e até se regozijam nele, na vã esperança de assim purgar suas próprias culpas; mas, como estas não residem onde as aponta o discurso revolucionário, cada nova concessão ao clamor esquerdista os torna ainda mais culpados e vulneráveis.

Antecipando as análises de Jones e de Himmelfarb, Igor Caruso ( Psychanalyse pour la Personne , Paris, Le Seuil, 1962) localizava a origem das neuroses não na repressão do desejo sexual, mas na rejeição dos apelos da consciência moral. O abandono da consciência de culpa não pode trazer outro resultado senão a proliferação de culpas inconscientes. E as culpas inconscientes necessitam de novos e novos bodes expiatórios, cujo sacrifício só as torna ainda mais angustiantes e intoleráveis.

Figuras de linguagem

Toda figura de linguagem expressa compactamente uma impressão sem indicar com clareza o fenômeno objetivo que a suscitou. Decomposta analiticamente, ela se revela portadora de muitos significados possíveis, alguns contraditórios entre si, que podem corresponder à experiência em graus variados. No Brasil de hoje, todos os “formadores de opinião” mais salientes, sem exceção visível – comentaristas de mídia, acadêmicos, políticos, figuras do show business — pensam por figuras de linguagem, sem a mínima preocupação – ou capacidade – de distinguir entre a fórmula verbal e os dados da experiência. Impõem seus estados subjetivos ao leitor ou ouvinte de maneira direta, sem uma realidade mediadora que possa servir de critério de arbitragem entre emissor e receptor da mensagem. A discussão racional fica assim inviabilizada na base, sendo substituída pelo mero confronto entre modos de sentir, uma demonstração mútua de força psíquica bruta que dá a vitória, quase que necessariamente, ao lado mais barulhento, histriônico, fanático e intolerante. Como as pessoas pressentem de algum modo que essa situação ameaça descambar para a pura e simples troca de insultos, se não de tapas ou de tiros, o remédio que improvisam por mero automatismo é apegar-se às regras de polidez como símbolo convencional e sucedâneo da racionalidade faltante, como se um sujeito declarar calma e educadamente que os gatos são vegetais fosse mais racional do que berrar indignado que são animais. O resultado é que a linguagem dos debates públicos se torna ainda mais artificiosa e pedante, facilitando o trabalho dos demagogos e manipuladores.

É um ambiente de alucinação e farsa, no qual só o pior e mais vil pode prevalecer.

O cúmulo da devassidão mental se alcança quando as leis penais passam a ser redigidas dessa maneira. Se a definição de uma conduta delituosa é vaga e imprecisa, a tipificação do crime correspondente se torna pura matéria de preferência subjetiva do juiz ou de pressão política por parte de grupos interessados. Assim, por exemplo, o agitador que pregue abertamente a inferioridade da raça negra e o engraçadinho que faça uma piada ocasional sobre negros podem ser condenados à mesma pena por delito de “racismo”. Duas condutas qualitativamente incomparáveis são niveladas por baixo: não há mais diferença entre delito e aparência de delito. É a mulher de César às avessas: não é preciso ser criminoso, basta parecê-lo. Basta caber numa definição ilimitadamente elástica que inclui desde o uso impensado de certas palavras até a doutrinação genocida explícita e feroz. “Racismo” é uma figura de linguagem, não um conceito rigoroso correspondente a condutas determinadas. Uma lei que o criminalize é um jogo de azar no qual a justiça e a injustiça são distribuídas a esmo, por juízes que têm a consciência tranqüila de estar agindo a serviço da liberdade e da democracia. É uma comédia. Quem se der o trabalho de distinguir analiticamente os vários sentidos com que a palavra “racismo” é usada em diversos contextos verificará que eles correspondem a condutas muito diferentes entre si, das quais algumas podem ser criminosas. Estas é que têm de ser objeto de lei, não o saco de gatos denominado “racismo”. E “homofobia”, então? Seu sentido abrange desde o impulso homicida até devoções religiosas, desde a discussão científica de uma classificação nosológica até a repulsa espontânea por certo tipo de carícias – tudo isso criminalizado por igual. Quem cria e redige essas leis são obviamente pessoas sem o mínimo senso de responsabilidade por seus atos: são adolescentes embriagados de um delírio de poder; são mentes disformes e anti-sociais, são sociopatas perigosos. Só eleitores totalmente ludibriados podem ter elevado esses indivíduos à condição de legisladores, dando realidade à fantasia macabra do “Doutor Mabuse” de Fritz Lang: a revolução dos loucos, tramada no hospício para subjugar a humanidade sã e impor a demência como regra. E não pensem que ao dizer isso esteja eu mesmo apelando a uma figura de linguagem, hiperbolizando os fatos para chamar a atenção sobre eles. A incapacidade de distinguir entre sentido literal e figurado, a perda da função denominativa da linguagem, a redução da fala a um jogo de intimidação e sedução sem satisfações a prestar à realidade, são sintomas psiquiátricos característicos. Quando tomei conhecimento dos diagnósticos político-sociais elaborados pelos psiquiatras Joseph Gabel e Lyle H. Rossiter, Jr., que indo além da concepção schellinguiana da “doença espiritual” classificavam as ideologias revolucionárias como patologias mentais em sentido estrito, achei que exageravam. Hoje sei que estavam certos.

As figuras de linguagem são instrumentos indispensáveis não só na comunicação como na aquisição de conhecimento. Quando não sabemos declarar exatamente o que é uma coisa, dizemos a impressão que ela nos causa. Todo conhecimento começa assim. Benedetto Croce definia a poesia como “expressão de impressões”. Toda incursão da mente humana num domínio novo e inexplorado é, nesse sentido “poética”. Começamos dizendo o que sentimos e imaginamos. É do confronto de muitas fantasias diversas, incongruentes e opostas que a realidade da coisa, do objeto, um dia chega a se desenhar diante dos nossos olhos, clara e distinta, como que aprisionada numa malha de fios imaginários – como a tridimensionalidade do espaço que emerge das linhas traçadas numa superfície plana. Suprimir as metáforas e metonímias, as analogias e as hipérboles, impor universalmente uma linguagem inteiramente exata, definida, “científica”, como chegaram a ambicionar os filósofos da escola analítica, seria sufocar a capacidade humana de investigar e conjeturar. Seria matar a própria inventividade científica sob a desculpa de dar à ciência plenos poderes sobre as modalidades “pré-científicas” de conhecimento.

Mas, inversamente, encarcerar a mente humana numa trama indeslindável de figuras de linguagem rebeldes a toda análise, impor o jogo de impressões emotivas como substituto da discussão racional, fazer de simbolismos nebulosos a base de decisões práticas que afetarão milhões de pessoas, é um crime ainda mais grave contra a inteligência humana; é escravizar toda uma sociedade – ou várias – à confusão interior de um grupo de psicopatas megalômanos.

Conseqüências mais que previsíveis

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 04 de junho 2007

Como não cabe ao analista político dizer às pessoas o que devem ou não devem fazer nas suas vidas privadas, nunca escrevi uma linha a favor ou contra as práticas homossexuais ou qualquer outra conduta erótica existente ou por inventar. Escrevi, sim, contra o movimento gay como fórmula ideológica e projeto de poder. Isso bastou para que eu fosse rotulado de “homofóbico” vezes sem conta. Conclusão: se estivesse em vigor a lei maldita que o nosso Parlamento quer aprovar, eu iria para a cadeia por conta de opiniões políticas.

Na verdade a lista de atitudes humanas puníveis como “homofóbicas” é bem variada. Ela abrange:

1. Citações da Bíblia ou de livros sagrados de qualquer religião que façam objeções morais ao homossexualismo.

2. Opiniões médicas, psiquiátricas e psicoterapêuticas que ponham em dúvida, de maneira mais ou menos explícita, a sanidade da conduta homossexual. Isso inclui obras clássicas de Freud, Adler, Szondi, Frankl e Jung, entre outros.

3. Manifestações pessoais de repulsa física ante o homossexualismo, emoção tão espontânea e irreprimível quanto o próprio desejo homossexual. (Inversa e complementarmente, a repulsa do homossexual pela sexualidade hetero, ou até por variantes homossexuais que não coincidam com a sua, como por exemplo a repulsa dos gays machões pelos travestis e transexuais, não apenas será considerada lícita mas estará sob a proteção da lei, condenando-se como “homofóbica” toda objeção que se lhe apresente ou, mais ainda, toda tentativa de reprimi-la. Ou seja: o direito à repulsa sexual será monopólio exclusivo da comunidade gay.)

4. Expressões verbais populares, de uso espontâneo e irreprimível, consideradas depreciativas e anti-homossexuais.

5. Piadas e gracejos que mostrem a conduta homossexual sob um ângulo risível.

6. Opiniões políticas contrárias aos interesses do movimento gay, que já são e serão cada vez mais necessariamente interpretadas como adversas aos direitos da comunidade homossexual.

7. Análises sociológicas, históricas ou estatísticas que ponham em evidência qualquer conduta negativa da comunidade gay. Essas análises já estão praticamente excluídas do universo cultural decente. A lei vai proibi-las por completo.

8. Qualquer resistência que um pai ou mãe de família oponha à doutrinação homossexual de seus filhos nas escolas ou à participação deles em grupos e entidades homossexuais.

9. Qualquer tentativa de impedir ou reprimir, por atos ou palavras, as expressões públicas de erotismo gay, discretas ou ostensivas, moderadas ou extremas, mesmo diante de crianças ou em lugares consagrados ao culto religioso.

10. Qualquer observação casual, feita no escritório, na rua ou mesmo em casa (se houver testemunhas) que possa ser considerada desairosa aos homossexuais ou ao movimento gay. Isso inclui a simples expressão de satisfação que um cidadão possa ter por ser heterossexual.

A lei, enfim, criminaliza e pune com pena de prisão inumeráveis condutas consideradas normais, legítimas, aceitáveis e até meritórias pela quase totalidade da população brasileira. E não pensem que ficará no papel. Neste momento já estão sendo organizados grupos de olheiros – espalhados primeiro nas escolas, depois em toda parte – para vigiar, delatar e punir os dez tipos de conduta acima assinalados.

As conseqüências mais que previsíveis da aprovação dessa lei são tão portentosas e ilimitadas que a maioria dos cidadãos tem dificuldade de concebê-las, limitando-se a apreender por alto suas aparências mais superficiais e patentes, se não a tratar o assunto com leviana indiferença. Mas essas conseqüências podem ser resumidas da seguinte maneira: Com um só golpe de caneta, um grupo militante organizadíssimo, fartamente subsidiado do Exterior, associado aos partidos de esquerda e agindo em consonância com a estratégia geral que os orienta, terá conquistado uma quantidade de poder policial discricionário tão vasta e ameaçadora quanto se poderia obter mediante um golpe de Estado ou uma revolução. Dotado do aparato jurídico necessário para aterrorizar toda oposição, reduzi-la a um silêncio humilhante, marginalizá-la e torná-la socialmente inoperante, esse grupo terá se tornado, nas mãos da aliança esquerdista que nos governa, mais um poderoso instrumento de controle social e político somando-se à polícia fiscal, à ocupação do território pelos “movimentos sociais”, ao domínio hegemônico sobre as instituições de cultura e ensino, às campanhas policiais soi disant moralizantes que só atingem sempre os desafetos da esquerda ou bandos criminosos menores, politicamente inócuos, jamais os agentes das Farc, os verdadeiros grão-senhores do crime no continente, cada vez mais ostensivamente protegidos pelo establishment petista.

Na verdade, o movimento gay não precisou esperar pela aprovação da lei para fazer sentir o peso das suas ambições policialescas sobre os que ousaram contestar sua pretensa autoridade. O assédio judicial a D. Eugênio de Araújo Sales (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/040724globo.htm ), os esforços de gayzistas e simpatizantes para destruir a carreira, a família e até a alma do escritor Júlio Severo, a repetição do mesmo procedimento contra o pastor catarinense Ademir Kreuzfeld (v. http://www.juliosevero.blogspot.com/ ), mostram que não faltam armas à elite gay para perseguir, amedrontar e marginalizar seus adversários, quanto mais para defender-se dos perigos imaginários que a ameaçam. A nova lei é material bélico excedente, só utilizável em eventuais demonstrações de força perfeitamente supérfluas.

Que tão avassaladora ascensão do autoritarismo seja necessária para proteger os pobrezinhos homossexuais contra piadas, gracejos e citações da Bíblia é um argumento tão risível que somente um idiota completo ou um mentiroso desavergonhado poderia fazer uso dele num debate sério.

Pior ainda é a alegação de violência contra os homossexuais. Já expliquei o que o simples uso do termo “homofóbico” contra os adversários do movimento gay tem de maquiavélico, de perverso, de criminoso ( http://www.olavodecarvalho.org/semana/070523dce.html ). Mas ao delito semântico acrescenta-se ainda a perversão aritmética. Entre os cinqüenta mil brasileiros assassinados anualmente, o movimento gay não tem conseguido apontar mais de dez ou doze indivíduos que o teriam sido – se é que o foram – por motivos “homofóbicos”. Pretender que a fúria anti-homossexual seja um fato social alarmante e epidêmico, necessitado de legislação especial e drástica, é nada mais que uma farsa cínica, um estelionato parlamentar que, houvesse na política brasileira um pingo de racionalidade e decência, custaria a seus autores a perda do mandato por falta de decoro, por uso indevido do Congresso como instrumento para servir a ambições grupais injustificáveis.

Muito maior que o número de vítimas fatais da “homofobia” é o de homossexuais assassinos, um fato óbvio que a mídia esconde sistematicamente, reforçando o engodo legislativo com a fraude jornalística. E digo que é óbvio por um motivo ainda mais óbvio. Não sendo racionalmente aceitável que a porcentagem de homossexuais seja muito diferente entre os criminosos e a população honesta, a alegação usual do movimento gay de que esta última quota é de cinco a dez por cento nos levaria necessariamente a alguns milhares de homossexuais assassinos, sem contar os homossexuais ladrões, os homossexuais traficantes e, evidentemente, os homossexuais chantagistas parlamentares.

Mas nem esse cálculo seria preciso para desmascarar a fachada protetiva com que a lei se apresenta. Um dos traços mais salientes do movimento gay é seu esforço de combater a discriminação onde ela não existe e de ignorá-la por completo onde existe. No Irã o homossexualismo é punido com a pena de morte. Vocês já viram a liderança gay organizar um protesto internacional contra isso? Ao contrário, ela se alia às demais forças de esquerda para defender a ditadura dos aiatolás contra o “imperialismo ianque”. Em Cuba os homossexuais e travestis são considerados casos de polícia, e quando pegam Aids são isolados para sempre da sociedade. A elite gayzista não apenas se abstém de protestar contra esse tratamento desumano, mas também não quer que ninguém proteste. Recentemente, um documentário sobre a condição humilhante dos homossexuais em Cuba foi excluído de um festival em Nova York – por exigência da militância gay .

Em compensação, nos EUA e na Europa ocidental, onde os gays têm um lugar privilegiado na sociedade e a prática do homossexualismo é uma tradição elegante entre o beautiful people pelo menos desde a década de 20 do século passado, o clamor por legislações que criminalizem toda crítica à conduta homossexual vem num tom de quem advogasse medidas de emergência para salvar a comunidade gay de um genocídio iminente.

No Brasil — uma das sociedades mais permissivas do planeta, onde homossexuais declarados ocupam cadeiras no Parlamento sob aplausos gerais, onde as vovós assistem a shows de travestis na TV junto com seus netinhos e onde um espetáculo público de carícias lésbicas entre a esposa de um governador e a de um ministro não suscita o menor escândalo na mídia –, a gritaria “anti-homofóbica” dá a impressão de que os homossexuais estão sendo abatidos a tiros, nas ruas, por um exército de talibãs cristãos.

Ao longo das últimas décadas, à medida que toda resistência moralista à conduta homossexual cedia lugar à compreensão generosa e à aceitação incondicional, as reivindicações do movimento gay no Ocidente vieram num crescendo, exigindo primeiro a equiparação moral de suas práticas com o casamento heterossexual, depois o ensino do homossexualismo nas escolas infantis, por fim as penas da lei para padres, pastores e rabinos que citem os versículos da Bíblia contrários ao homossexualismo.

O contraste entre discurso e realidade é patente: o movimento gay cresce em arrogância, virulência e pretensões ditatoriais à medida que a sociedade se torna mais tolerante, simpática e subserviente às exigências da comunidade homossexual. Quem diria que a inversão sexual, com tanta freqüência, viesse junto com a inversão mental?

Basta observar esse fenômeno para perceber imediatamente que a alegação característica do discurso gay , de proteger uma comunidade oprimida, é apenas uma camuflagem, um véu ideológico estendido por cima de objetivos bem diferentes, incomparavelmente mais ambiciosos.

Uma pista para a compreensão efetiva do fenômeno são os grupos de intelectuais, políticos e artistas homossexuais, tremendamente poderosos e influentes, que marcaram a história política e cultural do século XX com o culto da supremacia gay . Três deles são particularmente importantes: o círculo de Stefan George na Alemanha, o de André Gide na França e, na Inglaterra, a confraria dos “Apóstolos” de Cambridge. Em cada um dos três casos, a militância pública – sempre do lado errado, nazista ou comunista – encobria uma dimensão mais profunda e mais sinistra, de seita gnóstica empenhada em subjugar a humanidade comum a uma elite homossexual imbuída de um senso de superioridade quase divina.

Voltarei ao assunto quando possível. Por enquanto, basta dizer o seguinte: o atual movimento gay é a materialização possante e assustadora de um projeto de revolução civilizacional que, a pretexto de proteger oprimidos, não hesita em entregá-los às feras quando isso convém à sua grande estratégia. Que esse projeto seja apenas um desenvolvimento específico dentro do quadro maior do movimento revolucionário mundial é algo tão óbvio que não necessita ser enfatizado. Mas, por absoluta incompreensão desse ponto, os adversários do movimento gay, quase sem exceção, têm cometido dois erros monstruosos.

Primeiro: Combatem, junto com o movimento, a homossexualidade em si. Politicamente , isso é loucura. O movimento gay existe há algumas décadas e só em alguns lugares do planeta; o homossexualismo existe por toda parte desde que o mundo é mundo. O primeiro pode ser derrotado; o segundo não pode ser eliminado. Condicionar a vitória sobre o movimento gay à erradicação do homossexualismo é adiar essa vitória para o Juízo Final.

Segundo: Procurando atenuar a má impressão de autoritarismo dogmático que essa atitude inevitavelmente suscita, apressam-se a declarar que respeitam os direitos dos gays e que desejam apenas preservar, lado a lado com eles, os direitos da consciência religiosa. Com isso, igualam o inigualável, negociam o inegociável, nivelam a liberdade de consciência a uma “opção sexual”, à preferência por determinado tipo de prazer erótico. Será preciso lembrar a esses cavalheiros que, privado de satisfação erótica, o ser humano sofre alguma incomodidade, mas, desprovido da liberdade de consciência, perde o último resquício de dignidade, o sentido da vida e a razão de existir?

Em suma: são intransigentes onde deveriam ceder, cedem onde deveriam ser intransigentes, inflexíveis e até intolerantes. Não há nada de mais em aceitar o homossexualismo como uma realidade social que não pode ser erradicada e que, se deve ser combatida, é com todos os cuidados necessários para não ferir e humilhar pessoas. Em contrapartida, tratar como igualmente nobres e respeitáveis o mais elevado princípio da moralidade e o simples direito legal de fazer determinadas coisas na cama é uma inversão hedionda da hierarquia lógica e moral, é uma desobediência acintosa ao Primeiro Mandamento, cuja implicação mais óbvia é o dever incondicional de colocar as primeiras coisas primeiro. Se os adversários do movimento gay querem a proteção de Deus na sua luta, deveriam começar por não ofendê-Lo dessa maneira.

Da minha parte, afirmo que defenderia por todos os meios ao meu alcance o direito que os homossexuais têm de que sua preferência sexual não lhes custe humilhações ou constrangimentos. Mas, tão logo uma dessas criaturas pretendesse igualar ou sobrepor esse direito à liberdade de consciência, da qual ele próprio não é senão uma decorrência lógica aliás bem remota e secundária, eu lhe responderia, na mais polida das hipóteses, com as seguintes palavras:

— Cale a boca, burro. Não me peça para respeitar um direito que você mesmo, embora talvez sem se dar conta, está pisoteando com quatro patas.

Veja todos os arquivos por ano