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Alquimia da islamização

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 21 de novembro de 2005

Um vício generalizado da nossa época é o abuso das figuras de linguagem. Abuso não quer dizer uso excessivo, mas uso errado. Figuras de linguagem existem para três finalidades: expressar de maneira compacta um aglomerado de significações, enfatizar no objeto um valor ou nuance que o seu simples conceito não enuncia, dar voz à primeira impressão de um objeto ainda mal apreendido, na esperança de que esse artifício provisório ajude a apreendê-lo melhor. O primeiro desses usos é poético, o segundo retórico, o terceiro dialético ou propriamente filosófico. Em cada um deles as relações entre o objeto apreendido e sua expressão verbal formam uma equação diferente. Em todos o emissor do discurso tem o domínio consciente da equação. A prova disto obtém-se pela análise que torna claro o que parecia obscuro: o aglomerado poético pode ser decomposto nas suas várias camadas de significado (se não pode, então não é poesia, é macumba); a qualidade retoricamente acentuada pode ser distinguida do objeto que a ostenta; a primeira impressão pode ser completada por impressões subseqüentes, expressas em outras tantas figuras de linguagem, até que da confluência das várias impressões e respectivas figuras surja, numa síntese intuitiva, a forma essencial do objeto visado.

A figura de linguagem é usada de maneira abusiva quando não serve para nenhuma dessas operações. As palavras não expressam então nem uma riqueza de significações simultâneas, nem uma ênfase valorativa consciente, nem um esforço de chegar à realidade através do véu do discurso. Expressam a paralisia do pensamento que, não sabendo resolver a equação, isto é, passar do discurso à percepção intuitiva por meio da análise, se detém na repetição hipnótica do discurso mesmo, fazendo dele um substitutivo da realidade.

Se tantos intelectuais europeus não tivessem se habituado a pensar assim — se é que isso ainda é pensar –, jamais teria surgido uma escola como o desconstrucionismo, que nega a realidade em nome do discurso. O desconstrucionismo não é uma análise filosófica: é a simples transposição metalingüistica da própria patologia verbal que o alimenta. Mais ou menos como aquelas especulações complexíssimas, intermináveis e desesperadoramente fúteis com que um esquizofrênico letrado, acreditando analisar seus sintomas, não faz senão produzir alguns novos – ou, pior ainda, um upgrade dos anteriores.

A doença, surgida na Europa, chegou até a América e, aqui, fez vítimas nos lugares mais inesperados. A metonímia – ou mais precisamente metalepse — “guerra contra o terrorismo”, que algum iluminado soprou para dentro da cabeça do presidente Bush, prova que conservadores americanos são capazes de pensar tão esplendidamente mal quanto qualquer maoísta do Quartier Latin. Guerra contra o terrorismo é guerra contra quem? Terrorismo não é o nome de um inimigo, mas de uma de suas formas de ação. Adotaram essa expressão desastrada por dois motivos. Primeiro, por covardia: não queriam dizer “islamismo” para não ser politicamente incorretos, nem “marxismo” para não parecer “nostálgicos da Guerra Fria”, nem muito menos “islamomarxismo” ou “marxo-islamismo” (nomes horríveis, mas tecnicamente apropriados, descrevendo com exatidão os elementos do composto) porque os exporia à rotulagem fácil de “teóricos da conspiração”. O segundo motivo, derivado do primeiro, é a pseudo-esperteza de usar um chavão publicitário em vez do nome da coisa. É fácil ser contra o “terrorismo” porque é um meio de ação hediondo, só aceitável naquele estado alterado de consciência que revela, precisamente, o “fanático”. Como ninguém quer ser carimbado de fanático, todo mundo adere, pelo menos da boca para fora, à “guerra contra o terrorismo”. E tão reconfortados se sentem ao ver que concordaram em lutar, que já nem ligam de continuar sem saber contra quem. Só que, sendo impossível combater por meios invariavelmente lícitos um inimigo tão protéico e evanescente, alguma violência com aparência de terrorismo todo mundo está sujeito a cometer a qualquer momento, e no instante seguinte estarão todos, em nome da concórdia, se acusando uns aos outros de terroristas. Toda a chamada “ordem internacional” baseia-se, hoje, nessa absurdidade completa. E desta nascem muitas outras.

Os franceses, por exemplo, ficaram contentíssimos com a fatwa – decreto inspirado – com que a autoridade religiosa islâmica amorteceu em cinco minutos a baderna ante a qual o governo tivera de se contentar com gesticulações impotentes adornadas de palavreado pomposo. Nem de longe percebem que refrear as manifestações é demonstração de força ainda mais eloqüente do que produzi-las. Se os jovens muçulmanos rebelados se mostraram capazes de criar em poucos dias mais confusão e terror do que os meninos enragés de 1968, um único mufti , com umas poucas linhas escritas, provou ter mais autoridade do que o governo, a polícia, a mídia e a opinião pública da França, todos somados. Criar o caos, qualquer bando de irresponsáveis pode, com um pouco de ousadia. Mas produzir o caos e em seguida transfigurá-lo em ordem é o máximo de controle que seres humanos podem ter sobre o fluxo dos acontecimentos. É a arte da transformação, como em alquimia: Solve et coagula . Primeiro a substância deve ser dissolvida e transformada numa pasta caótica pela ação corrosiva do “mercúrio” (entre aspas porque não corresponde ao mercúrio químico; designa a força dissolvente e desorganizante em geral). Quando está no ponto, joga-se nela o “enxofre”, que a cristaliza, produzindo o “sal” – a nova ordenação interna desejada. Há séculos – documentadamente, pelo menos desde Ibn Khaldun (1332 – 1406) — os muçulmanos sabem que esses símbolos alquímicos podem designar também forças histórico-culturais, cujo manejo sutil está então ao alcance de uma ciência política infinitamente mais fina do que aquilo que leva esse nome nas universidades ocidentais. A dialética de Hegel e Marx é uma caricatura de alquimia política em linguagem pedante. A superioridade intelectual dos muçulmanos, nesse ponto, é arrasadora (leiam Henry Corbin e Seyyed Hossein Nasr), e é nela – não na pura brutalidade do terrorismo, ou na força passiva da multiplicação genética — que reside o segredo da expansão islâmica. Por isso é que, por trás de sua aparência de imigrantes bárbaros, os muçulmanos têm manipulado os Estados ocidentais com a facilidade de quem tapeia crianças. Querem um exemplo?

Com o apoio da British Advertisings Standards Authority, desde janeiro de 2005 os muçulmanos ingleses lançaram uma campanha para proibir outdoors que, pela exibição ou insinuação de nudez, fira os seus sentimentos religiosos. O Canadá foi um pouco além: está discutindo seriamente, por sugestão de um ex-procurador geral, a hipótese de adotar a shari’a (conjunto de mandamentos corânicos) como lei reguladora para os residentes muçulmanos, que assim teriam direitos e deveres diferentes daqueles que pesam sobre o restante da população (com a conseqüência inevitável de que, com o crescimento demográfico desproporcional, logo a shari’a dominará todo o Canadá). Nos EUA, inúmeras escolas oficiais – notem bem: oficiais – punem qualquer crítica ao Islam submetendo o faltoso a um estágio obrigatório de “reeducação da sensibilidade”, que inclui horas e mais horas de recitações do Corão e audição de pregações islâmicas.

Ou seja: uma comunidade carente, que chegou anteontem trazendo nada mais que sua miséria e seu ódio ao país hospedeiro, em pouco tempo conquista direitos especiais e uma posição privilegiada na sociedade, e sua religião é tratada com a deferência devida a uma prima-dona autoritária e ranheta.

Enquanto isso, o que se passa com a religião local, cujos santos e mártires, mediante sofrimentos e trabalhos indescritíveis, criaram a civilização e a cultura desses Estados e lhes ensinaram os primeiros princípios da moralidade que fundamentam suas leis?

Em várias cidades da Europa e dos EUA, a exibição pública de um crucifixo é banida por lei como atentatória aos direitos dos ateus; o professor ou aluno que entre numa escola oficial portando uma Bíblia corre o risco de ser suspenso ou expulso; a prece em voz alta é vetada em certos edifícios estatais, os festejos de Natal são proibidos nas praças públicas, e inscrições com os Dez Mandamentos são arrancadas por iniciativa da autoridade ciosa de não ferir os sentimentos politicamente corretos.

Não vou me prolongar na descrição do estado de coisas. Digo apenas que é aviltante e criminoso. Quem quiser saber mais – e tiver estômago para isso – que leia “Persecution”, de David Limbaugh (Harper Collins), “The Criminalization of Christianity”, de Janet L. Folger (Multnomah Publishers), “The ACLU Versus America”, de Alan Sears e Craig Osten (Broadman & Holman) ou simplesmente acompanhe as notícias diárias sobre anticristianismo militante no site www.wnd.com .

A religião declaradamente inimiga do Ocidente (v. “The West’s Last Chance. Will We Win The Clash of Civilizations?”, de Tony Blankley, Regnery, 2005) é tratada nos países ocidentais como se fosse senhora do espaço inteiro, enquanto as religiões-mães da nossa civilização, judaísmo e cristianismo, são escorraçadas como cães sarnentos, por iniciativa das próprias autoridades governamentais que, por outro lado, se dizem em “guerra contra o terrorismo islâmico”.

Cada vez mais a posição da religião cristã e judaica no Ocidente, principalmente na Europa e nos Estados americanos governados pela esquerda, se torna a mesma que têm nas ditaduras islâmicas — como por exemplo o Irã, onde todo culto não-muçulmano só pode ser praticado em recinto fechado, sendo proibida toda pregação pública, distribuição de livros, etc. – ao mesmo tempo que o Islam se coroa dos direitos e privilégios de uma religião hegemônica.

Mas, partindo daquela premissa inicial incongruente, muitas análises da situação, correntes na mídia e nos meios universitários, conseguem inverter os termos do problema, seja por maquiavelismo cínico, seja por ignorância:

“A batalha subjacente (à luta contra o terrorismo) será entre a civilização moderna e os fanáticos antimodernistas; entre aqueles que acreditam no primado dos indivíduos e os que acreditam que os seres humanos devem obediência cega a uma autoridade mais alta; entre os que dão prioridade à vida neste mundo e aqueles que acreditam que a vida humana não é senão a preparação para uma existência além da vida…”

Quem escreveu isso foi o ex-secretário do Trabalho do governo Bill Clinton, que se gaba de ser um grande “analista simbólico” das mudanças civilizacionais. Movido por seu ódio à “direita religiosa” americana, ele descreve um campo mundial dividido entre “fundamentalistas” ou “transcendentalistas”, como George W. Bush e Bin Laden, e “modernistas” ou “laicistas” como ele próprio, e conclui: “O terrorismo rompe e destrói vidas. Mas o terrorismo não é o único perigo que enfrentamos.”

Não é. O “perigo que enfrentamos” são inscrições dos Dez Mandamentos, são crianças cristãs cantando canções de Natal, são padres, pastores e rabinos recitando Salmos, são famílias religiosas que não aceitam o casamento gay e o abortismo em massa, é, enfim, tudo aquilo que se opõe à ética materialista, atéia e politicamente correta.

Só há um problema: essa ética é que, em nome do “multiculturalismo”, concede direitos especiais à minoria muçulmana enquanto sufoca tradições ocidentais milenares. Como poderia então ser ela a grande inimiga do radicalismo islâmico? Ela é o instrumento mesmo de que este se serve para debilitar a cultura da Europa e da América e subjugá-la ao seu ímpeto revolucionário e destruidor.

E não há nisso nenhuma estranha coincidência. A origem dessas modas culturais é bem conhecida: remonta, através de uma cadeia de intermediários fiéis, à Escola de Frankfurt e ao filósofo húngaro George Lukacs. Elas são o chamado “marxismo cultural” em estado puro – a arma mortífera concebida dentro do próprio Ocidente para destruir sua civilização.

Impressionados com o fracasso da revolução socialista na Europa Ocidental no começo do século XX, e especialmente com a defecção geral dos proletários que foi a sua causa imediata, os frankfurtianos e Lukacs começaram a especular se, além da resistência político-militar da “burguesia”, não haveria outro fator, como direi, astravancându us pogréssio do çossializmu. Chegaram à conclusão de que havia: eram milênios de herança judaico-cristã, o universo simbólico inteiro da civilização Ocidental. “Quem nos livrará da civilização Ocidental?”, perguntava Lukacs.

A resposta não demorou a vir de Moscou. Stalin, transferindo para as nações a teoria da luta de classes, dividiu o mundo em Estados proletários e Estados burgueses. Os primeiros estavam, evidentemente, no chamado “Terceiro Mundo”. A ideologia do terceiromundismo começou a nascer aí, entre as duas guerras, com o intuito de levantar contra o Ocidente burguês todas as forças políticas, culturais, psicológicas e psicopáticas da Ásia, da África e da América Latina. Os “condenados da Terra” libertariam da civilização Ocidental o pobre Lukacs por meio do intenso trabalho dos partidos comunistas para arregimentar, treinar e armar a grande “nação islâmica” para a guerra mortal contra o Ocidente. A história é longa para contar em detalhes, mas a leitura do segundo volume de “The Sword and the Shield. The Mitrokhin Archive”, de Christopher Andrew e Vassili Mithrokin, recém publicado sob o título “The World Was Going Our Way. The KGB and the Battle for the Third World” (Basic Books, 2005), é um bom começo para compreendê-la.

A invasão física e cultural do Ocidente por hordas de imigrantes ao menos implicitamente solidários com o terrorismo é a bomba de efeito retardado plantada pela estratégia global estalinista. É claro que, nisso, o Islam não teve o papel passivo de massa de manobra. Elites islâmicas versadas tanto nas tradições muçulmanas quanto nas doutrinas ocidentais, especialmente o marxismo, o positivismo (no sentido amplo da palavra), o existencialismo e o estruturalismo-desconstrucionis mo, tinham suas próprias ambições e um plano de longo prazo.

Nos anos 50, um suíço islamizado, Frithjof Schuon, voltou da Argélia, transfigurado por uma longa imersão nas ciências espirituais islâmicas, àquela altura praticamente desconhecidas no Ocidente fora de um reduzido círculo de interessados. Sua promessa ao chegar foi: “Vou islamizar a Europa.” Disse e fez. Sem comícios nem bombas. Tornou-se o guia espiritual de eminentes intelectuais, milionários e homens de governo europeus. Almas de elite, que haviam perdido a conexão íntima com o cristianismo, recuperaram um sentido de ordem islamicamente moldado. Não se “converteram” ao Islam, pelo menos exteriormente. Apenas, suas almas foram dissolvidas e recristalizadas no forno da alquimia espiritual islâmica. Discípulo do principal discípulo de Schuon — o lituano naturalizado britânico Martin Lings – é, por exemplo, o futuro rei da Inglaterra, o príncipe Charles. Só por essa amostra vocês imaginam o poder da coisa. O rombo por onde o Islam invadiu o Ocidente não está em baixo, entre o povão revoltado e estudantes furiosos. Está acima do que o comentário político usual enxerga.

Pode parecer absurdo que altas doutrinas espirituais convirjam com o marxismo, mas a identidade do alvo – a destruição do Ocidente – é patente demais para que a diversidade de inspirações originárias constitua problema. Ademais, inúmeros teóricos marxistas e muçulmanos vêm fazendo há décadas um profundo trabalho de harmonização das duas grandes utopias: o socialismo planetário e o califado global. A orientação mais geral é tomar o islamismo como um coroamento espiritual do socialismo meramente “terrestre”.

A visão monstruosamente invertida que Robert Reich apresenta da invasão islâmica – visão hoje compartilhada por quase todos os defensores “modernistas” do Ocidente, é, como a expressão mesma “guerra contra o terrorismo”, produto de um pensamento auto-impugnante que toma figuras de linguagem como objetos reais. “Fundamentalismo” é figura de linguagem. “Modernidade” é figura de linguagem. “Fanáticos” é figura de linguagem. “Choque de civilizações” é figura de linguagem. Nenhuma delas usada como utensílio provisório para a investigação da verdade, mas todas como fetiches verbais com que a confusão mental se camufla a si própria, fazendo-se passar por discurso de conhecimento.

É óbvio demais

Olavo de Carvalho


O Globo, 6 de março de 2004

Depois dos estudos de Eric Voegelin, Norman Cohn, Stefan Rossbach, James Billington e tantos outros, não se pode mais negar seriamente que os modernos movimentos revolucionários — socialismo, nazismo, etc.– descendam em linha direta das seitas gnósticas do início da era cristã.

O essencial da mitologia gnóstica é o sentimento de que o ser humano é uma entidade celeste aprisionada no mundo mau que uma divindade rebelde criou contra a vontade do verdadeiro “deus”. Essa anástrofe da narrativa do Gênesis traduz-se numa prática ascética que é, por sua vez, a inversão parasitária, a caricatura demoníaca da obediência judaica e da humildade cristã. O gnóstico, ao tomar consciência de sua condição de prisioneiro do cosmos, decide se libertar dela, seja pela evasão subjetivista ou pela destruição ativa do mundo e de seu cortejo de injustiças, a começar pela “desigualdade social”. Por meio da conversão gnóstica, o sujeito adquire uma dignidade espiritual excelsa e já não pode ser julgado pela moral comum. Mesmo que cometa crimes e atrocidades piores do que aqueles que denuncia, ele está previamente justificado pela esperança redentora e transfiguradora que o anima.

Quando, a partir do século XVI, o desejo de supressão do universo criado evoluiu para a idéia aparentemente mais factível de transmutar a estrutura do tempo e inaugurar na Terra um paraíso milenarista de igualdade e justiça, o gnosticismo estava maduro para transformar-se, de um aglomerado de seitas exóticas, num esquadrão de poderosos movimentos de massas. O peculiar ethos gnóstico — a convicção da impecabilidade essencial do revolucionário — confere a esses movimentos o direito de elevar a quota de mal no mundo até um nível que os profanos não teriam podido sequer imaginar, e de não obstante, ou por isso mesmo, continuar a considerar-se a encarnação máxima do bem. As lideranças revolucionárias podem promover a seu belprazer o genocídio, o terrorismo, o narcotráfico, o contrabando, os seqüestros, bem como a corrosão das defesas morais da sociedade por meio de modas intelectuais como o desconstrucionismo, o relativismo, a utopia lisérgica ou a teologia da libertação, ao mesmo tempo que, vendo a devastação resultante, jamais reconhecem aí a obra de suas próprias mãos e, quanto mais pervertem a ordem social, mais jogam sobre ela a culpa de todos os pecados, adquirindo com isso uma considerável autoridade moral sobre as multidões.

O cidadão comum, ignorante das correntes históricas que geraram esse estado de coisas, fica atônito ante a degradação geral e dá tanto mais crédito aos discursos de acusação revolucionária, sem suspeitar que vêm da mesma fonte dos horrores que o atormentam. A mentalidade vulgar, incapaz de explicar as condutas humanas senão pelos motivos banais que se aplicariam a ela própria — hipocrisia, busca de vantagens materiais, compulsão neurótica etc. –, torna-se presa fácil da manobra revolucionária justamente porque não pode atinar com as complexidades tenebrosas da alma gnóstica.

Por isso, a cada nova revelação de seus crimes e desvarios, o movimento revolucionário emerge fortalecido e não debilitado. O método de gerenciamento de danos é constante e auto-reprodutível há mais de um século. Primeiro espalha-se o mal por toda parte, impugnando seus denunciadores como agentes a soldo do pérfido mundo presente, empenhados em defender seus “privilégios” contra o advento do “outro mundo possível”. Quando, como sempre acontece, as denúncias se confirmam, o movimento se salva in extremis entregando ao patíbulo alguns militantes apanhados com a boca na botija — ou bodes expiatórios escolhidos a esmo –, mas acusando-os, não de ter feito precisamente o que ele próprio os mandou fazer, e sim de ter-se vendido aos adversários. Se o cristianismo condena o pecado absolvendo o pecador, a moral gnóstica sacrifica o pecador para proteger o pecado, que assim renasce interminavelmente de sua própria punição simulada.

Por favor, poupem-me de detalhar como esse processo se verifica no Brasil de hoje. É demasiado óbvio para merecer um artigo.

 

A ingenuidade da astúcia

Olavo de Carvalho

O Globo, 23 de setembro de 2000

O século XX julgou-se muito astuto porque descobriu, com Marx, Freud e Nietzsche, que as mais altas qualidades humanas podiam encobrir preconceitos de classe, desejos recalcados e a busca de compensações para o ressentimento.

À luz dessas revelações, a imagem dos grandes homens que os séculos anteriores haviam exaltado fragmentou-se numa poeira de pequenas misérias, a tal ponto que se tornou necessário explicar seus feitos e obras notáveis como projeções imaginárias do meio cultural.

Pelo fim do século, virou moda nos círculos universitários a produção de biografias pejorativas, empenhadas em ressaltar pecados, defeitos e pontos cegos nas almas dos indivíduos melhores, de modo a sugerir à multidão de leitores que nesses personagens nada havia de especial que não tivesse sido depositado lá pelos acasos da fama, por uma bem orquestrada campanha de publicidade ou por um concurso de arranjos convenientes aos interesses da classe dominante.

Tendo assim levado a conseqüências extremas a propensão moderna de deleitar-se na autocorrosão masoquista, o século XX parecia não ter maior motivo de orgulho do que a inflexível suspicácia que fizera dele, depois de tantos séculos de sonhos e desvarios, o primeiro a não se deixar enganar.

Essa estranha soberba de olhar frio, que se compraz na visão da própria miséria porque ela investe seu portador do poder soberano de desfazer com uma frase lacônica os mais altos valores e esperanças, é a perfeita inversão da humildade cristã, que só vasculha com idêntico rigor os próprios pecados para enaltecer através deles a glória da cura divina.

Enquanto o cristão se humilha para que Deus o exalte, o homem moderno se humilha para humilhar os outros. Deus nos amedronta porque conserva em Suas mãos, em vez das nossas, o segredo da salvação; o discurso da modernidade nos amedronta porque nos persuade de que possui o segredo último de que não há salvação.

O modelo supremo de sabedoria a que aspira a inteligência moderna é, indiscutivelmente, o demônio. Ele não pode nos salvar; mas pode justificar de maneira cada vez mais científica a nossa danação. Essa ascese demoníaca tornou-se tão disseminada e obrigatória nos meios acadêmicos, que praticamente chegou a se identificar com a imagem do saber científico em geral, ao ponto de, quando se fala em fé e caridade hoje em dia, ser quase sempre no tom de uma concessão paternal que o rigor intelectual faz às necessidades pueris de consolo e de ilusão, incontornáveis naquela parcela majoritária da espécie humana que ainda não alcançou os patamares mais altos de consciência reservados aos acadêmicos de olhar frio e sorriso desdenhoso.

Foi numa avançada etapa desse desenvolvimento que surgiu a idéia de esfarelar, depois das imagens divinas, as próprias qualidades humanas que as manifestavam. A atração que as biografias pejorativas e os diagnósticos insultuosos da psique dos grandes homens exercem sobre a massa dos leitores “médios” explica-se facilmente pelo mecanismo de sedução. “Sedução” vem de “sub ducere”, conduzir ou atrair por baixo: dominar a mente de um sujeito apelando às suas piores qualidades, às suas fraquezas, aos seus temores.

Sobretudo à sua inveja. Inveja é um sentimento de inferioridade que encontra alívio na contemplação das inferioridades reais ou imaginárias dos outros. Incapaz de superar suas fraquezas, o invejoso consola-se com o pensamento de que todos as têm em dose igual. É a democracia dos complexos.

Esse tipo de literatura acadêmica visa a despertar no leitor aquilo que John Le Carré chamou “a típica percepção corrosiva dos fracos”. Tê-la disseminado entre as classes letradas fez o século XX sentir-se especialmente astuto.

Mas o que parecerá supremamente ingênuo aos futuros historiadores é que tão vastas porções das classes letradas de uma época acreditassem na possibilidade de apreender a personalidade e o gênio de um Goethe, de um Shakespeare — isto para não mencionar os santos e os profetas –a partir do exame das deficiências e pecados que eles tinham em comum com o restante da humanidade, sem ter em conta o que tinham de diferente. Porque, justamente, se suas fraquezas são iguais às de todo mundo, resta explicar por que nem todo mundo consegue escrever o “Fausto” ou o “Hamlet” – e muito menos operar curas milagrosas ou fazer profecias confirmadas pelo tempo.

Para aliviar a incomodidade dessa questão, a engenharia acadêmica concebeu teorias como o desconstrucionismo e a estética da recepção, que, desviando a atenção dos leitores da unidade estrutural na qual se apreende o sentido superior das grandes obras, dispersam sua inteligência na contemplação da infinidade de elementos soltos que as compõem ou da variedade inesgotável de reações que os públicos de várias épocas e lugares tiveram ante essas obras.

Invariavelmente, da dispersão da inteligência segue-se o esfarelamento do seu objeto: no fim o que é negado é a própria integridade das obras, o que é o mesmo que dizer: sua existência.

Com isto fica definitivamente sanada a incomodidade acima referida, pois ninguém se sente inferiorizado diante do que não existe.

Que milhares de invejosos em todo o mundo cedessem tão facilmente à tentação desse alívio barato e chegassem a acreditar piamente nos truques intelectuais pueris concebidos para obtê-lo, eis o que fará do século XX, na visão dos tempos vindouros, o mais ingênuo século da História.

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