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O capitalismo anticapitalista

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de maio de 2009

Quando digo que a democracia capitalista dificilmente pode sobreviver sem uma cultura de valores tradicionais, muitos liberais brasileiros, loucos por economia e devotos da onipotência mágica do mercado, fazem aquela expressão de horror, de escândalo, como se estivessem diante de uma heresia, de uma aberração intolerável, de um pensamento iníquo e mórbido que jamais deveria ocorrer a um membro normal da espécie humana.

Com isso, só demonstram que ignoram tudo e mais alguma coisa do pensamento econômico capitalista. Aquela minha modesta opinião, na verdade, não é minha. Apenas reflete e atualiza preocupações que já atormentam os grandes teóricos do capitalismo desde o começo do século XX.

Um dos primeiros a enunciá-la foi Hillaire Belloc, no seu livro memorável de 1913, The Servile State, reeditado em 1992 pelo Liberty Fund. A tese de Belloc é simples e os fatos não cessam de comprová-la: destravada de controles morais, culturais e religiosos, erigida em dimensão autônoma e suprema da existência, a economia de mercado se destrói a si mesma, entrando em simbiose com o poder político e acabando por transformar o trabalho livre em trabalho servil, a propriedade privada em concessão provisória de um Estado voraz e controlador.

Rastreando as origens do processo, Belloc notava que, desde o assalto dos Tudors aos bens da Igreja, cada novo ataque à religião vinha acompanhado de mais uma onda de atentados estatais contra a propriedade privada e o trabalho livre.

Na época em que ele escrevia The Servile State, as duas fórmulas econômicas de maior sucesso encarnavam essa evolução temível cujo passo seguinte viria a ser a I Guerra Mundial. Quem mais compactamente exprimiu a raiz do conflito foi Henri Massis (que parece jamais ter lido Belloc). Em Défense de l’Occident (1926), ele observava que, numa Europa desespiritualizada, todo o espaço mental disponível fôra ocupado pelo conflito “entre o estatismo ou socialismo prussiano e o anti-estatismo ou capitalismo inglês”. O capitalismo venceu a Alemanha no campo militar, mas a longo prazo foi derrotado pelas idéias alemãs, curvando-se cada vez mais às exigências do estatismo, principalmente na guerra seguinte, quando, para enfrentar o socialismo nacional de Hitler, teve de ceder tudo ao socialismo internacional de Stálin.

Défense de l’Occident é hoje um livro esquecido, coberto de calúnias por charlatães como Arnold Hauser – que chega ao absurdo de catalogar o autor entre os protofascistas –, mas seu diagnóstico das origens da I Guerra continua imbatível, tendo recebido ampla confirmação pelo mais brilhante historiador vivo dos dias atuais, Modris Eksteins, em Rites of Spring: The Great War and the Birth of the Modern Age, publicado em 1990 pela Doubleday (nem comento o acerto profético das advertências de Massis quanto à invasão oriental da Europa, do qual tratarei num artigo próximo). Segundo Eksteins, a Alemanha do Kaiser, fundada numa economia altamente estatizada e burocrática, encarnava a rebelião modernista contra a estabilidade da democracia parlamentar anglo-francesa baseada no livre mercado. Esta só saiu vitoriosa em aparência: a guerra em si, por cima dos vencedores e perdedores, fez em cacos a ordem européia e varreu do mapa os últimos vestígios da cultura tradicional que subsistiam no quadro liberal-capitalista.

Outro que entendeu perfeitamente o conflito entre a economia de mercado e a cultura sem espírito que ela mesma acabou por fomentar cada vez mais depois da I Guerra foi Joseph Schumpeter. O capitalismo, dizia ele em Capitalism, Socialism and Democracy (1942), seria destruído, mas não pelos proletários, como profetizara Marx, e sim pelos próprios capitalistas: insensibilizados para os valores tradicionais, eles acabariam se deixando seduzir pelos encantos do estatismo protetor, irmão siamês da nova mentalidade modernista e materialista.

Que na era Roosevelt e na década de 50 a proposta estatista fosse personificada por John Maynard Keynes, um requintado bon vivant homossexual e protetor de espiões comunistas, não deixa de ser um símbolo eloqüente da união indissolúvel entre o antiliberalismo em economia e o antitradicionalismo em tudo o mais.

Nos EUA dos anos 60, essa união tornou-se patente na “contracultura” das massas juvenis que substituíram a velha ética protestante de trabalho, moderação e poupança pelo culto dos prazeres – pomposamente camuflado sob o pretexto de libertação espiritual –, investindo ao mesmo tempo, com violência inaudita, contra o capitalismo que lhes fornecia esses prazeres e contra a democracia americana que lhes assegurava o direito de desfrutá-los como jamais poderiam fazer na sua querida Cuba, no seu idolatrado Vietnã do Norte. Mas o reino do mercado é o reino da moda: quando a moda se torna anticapitalista, a única idéia que ocorre aos capitalistas é ganhar dinheiro vendendo anticapitalismo. A indústria cultural americana, que no último meio século cresceu provavelmente mais que qualquer outro ramo da economia, é hoje uma central de propaganda comunista mais virulenta que a KGB dos tempos da Guerra Fria. A desculpa moral, aí, é que a força do progresso econômico acabará por absorver os enragés, esvaziando-os pouco a pouco de toda presunção ideológica e transfigurando-os em pacatos burgueses. O hedonismo individualista e consumista que veio a dominar a cultura americana a partir dos anos 70 é o resultado dessa alquimia desastrada; tanto mais desastrada porque o próprio consumismo, em vez de produzir burgueses acomodados, é uma potente alavanca da mudança revolucionária, visceralmente estatista e anticapitalista: uma geração de individualistas vorazes, de sanguessugas carregadinhos de direitos e insensíveis ao apelo de qualquer dever moral não é uma garantia de paz e ordem, mas um barril de pólvora pronto a explodir numa irrupção caótica de exigências impossíveis. Em 1976 o sociólogo Daniel Bell já se perguntava, em The Cultural Contradictions of Capitalism, quanto tempo poderia sobreviver uma economia capitalista fundada numa cultura louca que odiava o capitalismo ao ponto de cobrar dele a realização de todos os desejos, de todos os sonhos, de todos os caprichos, e, ao mesmo tempo, acusá-lo de todos os crimes e iniqüidades. A resposta veio em 2008 com a crise bancária, resultado do cinismo organizado dos Alinskys e Obamas que conscientemente, friamente, se propunham drenar até ao esgotamento os recursos do sistema, fomentando sob a proteção do Estado-babá as ambições mais impossíveis, as promessas mais irrealizáveis, os gastos mais estapafúrdios, para depois lançar a culpa do desastre sobre o próprio sistema e propor como remédio mais gastos, mais proteção estatal, mais anticapitalismo e mais ódio à nação americana.

Em 1913, as previsões de Hillaire Belloc ainda poderiam parecer prematuras. Era lícito duvidar delas, porque se baseavam em tendências virtuais e nebulosas. Diante do fato consumado em escala mundial, a recusa de enxergar a fraqueza de um capitalismo deixado a si mesmo, sem as defesas da cultura tradicional, torna-se uma obstinação criminosa.

Umas ditaduras são mais iguais que as outras: Brasil-Mentira IV

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de abril de 2009

O Sr. Dines não é burro, pessoalmente. Já provou isso em escritos excelentes. Ele encontra-se emburrecido e cego pelo apoio dos seus pares, que, quando o que ele diz coincide com os desejos deles, tratam de aceitá-lo imediatamente, reprimindo em si próprios e nos outros a mais elementar exigência analítica. Confirmado retroativamente pelo apoio deles, o Sr. Dines está autorizado a jamais perceber a enormidade do que disse. Ser “formador de opinião”, no Brasil de hoje, é isso. É expressar amores e repulsas com a irracionalidade de um cão que late, reforçado pelos ecos inumeráveis de uma orquestra canina.

A idéia de que não haja comparação possível entre autoritarismos iguala, na base, os campos para prisioneiros japoneses nos Estados Unidos durante a II Guerra e os campos de concentração nazistas. Iguala as medidas defensivas, tomadas por uma nação em perigo, à construção da máquina totalitária que cresce justamente na medida em que as oposições desaparecem e em que se torna necessário inventar mais e mais oposições imaginárias para justificá-la. O Brasil teve, ao longo de vinte anos, aproximadamente dois mil prisioneiros políticos, nenhum deles totalmente isento de ligações diretas ou indiretas com a guerrilha e com a ditadura cubana. Cuba, com uma população doze vezes menor, chegou a ter cem mil ao mesmo tempo – a quase totalidade sem processo legal, e levada ao cárcere por crimes hediondos como fazer uma piada, recusar-se a usar um crachá patriótico ou, nos casos mais graves, possuir uma casa. Se não há nenhuma diferença entre uma coisa e outra, também não há diferença entre matar seis milhões de judeus e dar um discreto pontapé no traseiro do sr. Alberto Dines, ou entre jogar milhões de padres no Gulag, por serem padres, e, como se fez na Grã-Bretanha durante a II Guerra, prender sem processo uns quantos colaboradores do inimigo. Abolir as diferenças equivale a neutralizar o próprio conceito de democracia, que só é democracia, precisamente por basear-se no senso das proporções, que essa abolição impugna.

A prova de que proibir toda gradação entre autoritarismos é inviável na teoria e na prática nos é dada pelo próprio Sr. Dines quando, ao referir-se a Fulgêncio Batista, o rotula de “tirano” e, no mesmo parágrafo, falando de Cuba, atenua a linguagem dizendo apenas que “está longe de ser uma democracia”, como se Cuba não tivesse feito outra coisa ao longo destes últimos quarenta anos senão esforçar-se para ser uma democracia. Se isso não é uma gradação, eu sou o Alberto Dines em pessoa.

Graduando mais ainda, ele faz questão de frisar que, se Cuba “ainda” (depois de breves quatro décadas) não se transformou em democracia, isso ocorreu ‘a despeito das magníficas intenções dos rebeldes”. Ora, os militares brasileiros, em 1964, derrubaram o governo que acobertava uma guerrilha financiada por Cuba, e prometeram em lugar dele, o quê? Uma democracia, ora bolas! Uma democracia com eleições plenas em seis meses. Não seriam, essas também, “magníficas intenções”, embora falhadas? Falar em “magníficas intenções”, neste caso, não seria ainda mais legítimo do que no tocante aos guerrilheiros cubanos que instantaneamente implantaram um regime de terror da ilha e não cederam um milímetro até hoje, enquanto os nossos militares acabaram se afastando do poder por obediência à pressão popular? Em vão o Sr. Dines afirma que todas as ditaduras são iguais, pouco importando as intenções. O que ele acaba dizendo, no fim das contas, é que todas são iguais, mas algumas são mais iguais que as outras. Ele jura “abominar as gradações”, mas ele próprio gradua, só que em sentido inverso: odeia o mal menor e ama decididamente o pior dos piores.

Na edição subseqüente do seu Observatório, ele mesmo deu a maior prova disso, ao falar da rebelião chefiada em 1936 por Francisco Franco contra a república pró-comunista espanhola. Ele rotula as forças rebeldes como “ditatoriais” e “fascistas” e o outro lado como “forças legalistas”. Tentando camuflar a escolha, ele apela ao seu usual artifício de fingir equanimidade, nivelando “as violências contra sacerdotes e freiras” e “a participação do clero na repressão fascista”, como se fossem ambas episódios da guerra civil, quando de fato as primeiras antecederam a guerra e foram a causa direta da rebelião franquista. Matanças em tempo de guerra podem ser debitadas na conta da violência geral, mas matanças em tempo de paz, promovidas por forças governistas contra a própria população local, caracterizam não somente uma ditadura, mas uma ditadura totalitária e genocida. É absolutamente imoral chamar de “legalista” ou “democrático” um regime que promoveu a matança sistemática de padres e freiras simplesmente por serem padres e freiras e que incendiou centenas de igrejas católicas nos territórios sob o seu domínio, fechando todas as restantes e tornando virtualmente ilegal a religião majoritária do país. A república espanhola foi obviamente uma ditadura, e entre ela e a ditadura franquista que a sucedeu Alberto Dines, desmentindo seu fingido horror a comparações dessa ordem, não hesita em estabelecer uma gradação de preferências, com o agravante de que, nessa gradação, não se limita a cotejar a extensão de dois males, mas eleva um deles ao estatuto de um bem, ao afirmar que os “libertários do mundo inteiro” – assim ele qualifica os membros das Brigadas Internacionais – lutavam pelos “conceitos de República, democracia e solidariedade”. Ora, as Brigadas Internacionais foram à Espanha obedecendo a uma convocação de Stálin, e, se delas participou a inevitável quota de idiotas úteis que não sabiam estar servindo à ditadura soviética – os depoimentos de John dos Passos e de George Orwell a respeito são bastante significativos –, o fato é que as Brigadas foram sempre um instrumento a serviço do comunismo, e não da liberdade. Chamar comunistas de “libertários” é mais do que mera impropriedade vocabular, é trapaça pura e simples, de vez que o segundo termo designa um movimento político existente, notoriamente hostil ao comunismo e atuante na política até hoje, inclusive no Brasil.

Para piorar as coisas, Dines nivela dois fenômenos radicalmente diferentes: a participação soviética ao lado dos republicanos e a ajuda nazifascista às tropas de Franco. É notório que o general rebelde obteve ajuda técnica e militar da Itália e da Alemanha, mas sem nada ceder a esses incômodos fornecedores (os únicos de que dispunha), defendendo a soberania do seu país com obstinada teimosia, timbrando em manter a neutralidade espanhola durante a II Guerra contra todas as pressões de Hitler e Mussolini e ainda concedendo abrigo a judeus foragidos, no mínimo como agradecimento à comunidade judaica de Valencia que ajudara a financiar sua rebelião. Em contrapartida, o governo dito “republicano” colocou-se sob as ordens de Stalin da maneira mais servil, chegando a ser controlado diretamente pelos russos nas etapas finais da guerra e a transferir para Moscou, sob a grotesca desculpa de “segurança”, todas as reservas estatais de ouro espanhol, um óbvio crime de alta traição que os russos festejaram com risos de escárnio, sabendo que os espanhóis jamais veriam aquele tesouro de volta, como de fato não viram.

A proibição de comparar: Brasil-Mentira III

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de abril de 2009

Exemplos recentes da radical abolição do senso das proporções nas discussões públicas neste país, e da sua substituição por proclamações absolutistas rancorosas e pueris até à demência, aparecem em dois artigos do Observatório da Imprensa, publicação que, sublinhando o grotesco da situação, se autodefine não como um agente entre outros no jornalismo brasileiro, mas como um tribunal para o julgamento da idoneidade dos demais agentes.

Discutindo a celeuma causada pelo uso do termo “ditabranda” na Folha de S. Paulo para qualificar o regime militar brasileiro, o Sr. Alberto Dines, fundador, diretor, e guru máximo do Observatório, proclama:

“O debate sobre a ‘ditabranda’ estava errado desde o início porque fixou-se numa classificação de ditaduras, quando o certo seria discutir a inflexibilidade do processo democrático. Há um certo momento pareceu que as partes estavam querendo inventar um medidor de ditaduras, ou ditadurômetro, por meio do qual as diferentes relativizações, devidamente equacionadas, estabeleceriam um kafkiano ranking de autoritarismo, do suportável ao insuportável… A ‘Guerra Suja’ argentina matou 30 mil, a nossa matou 300 ou 3 mil. A quantificação é desumana, armadilha brutalizante…”

Vamos por partes. O Sr. Dines afirma que toda comparação de autoritarismos é indecente. Só vale a democracia absoluta. “O pacifismo é ncondicional ou é hipócrita. A democracia é integral ou é uma farsa.” Não vou apelar ao expediente, até covarde nas presentes circunstâncias, de mostrar que nenhuma democracia no mundo jamais foi integral. Os meros fatos não alcançam as alturas do rigorismo platônico exigido pelo Sr. Dines. Em compensação, conceitos puros são o domínio da lógica e não podem furtar-se ao dever de definir-se a si mesmos. Ora, a “democracia integral” é indefinível, porque é autocontraditória.

Todo principiante no estudo da teoria política tem de saber, desde logo, que a democracia não é uma substância, uma coisa, mas uma qualidade que se tenta impor a uma substância preexistente, isto é, à sociedade tal como estava antes do advento da democracia. Tem de saber também, em conseqüência, que a democracia não é uma quantidade fixa, mas uma proporção – e que, por isso mesmo, não pode ser “integral”. A democracia constitui-se essencialmente de uma limitação mútua entre os poderes, o que subentende que esses poderes existam e que cada um deles não seja integralmente capaz de limitar-se a si mesmo. Todos os teóricos da democracia, mesmo os mais entusiastas, sempre ressaltaram que ela é um estado de equilíbrio instável, incapaz de fixar-se na perfeição do equilíbrio puro subentendido na palavra “integral”. A democracia não é um princípio universal, mas um arranjo pragmático. Princípios universais podem ser aplicados ad infinitum sem levar jamais a contradições. Por exemplo, o próprio suum cuique tribuere, ou a noção de que a responsabilidade de um ato incumbe a quem o cometeu e não a outra pessoa. Você pode aplicar indefinidamente esses princípios a todos os casos possíveis e imagináveis, nunca eles levarão a situações paradoxais e sem saída.

Bem diferentes são os arranjos pragmáticos, cuja aplicação é limitada por definição e que, estendidos para além do seu campo próprio de aplicação, se autodestroem ou se convertem nos seus contrários. A democracia é um dos exemplos mais óbvios dessa distinção, e isso é mesmo uma das primeiras coisas que o estudante de teoria política tem de aprender. Em toda democracia há, por definição, uma infinidade de abusos antidemocráticos. Suprimi-los por completo, como subentendido na noção de “democracia integral”, exigiria a instalação do controle social perfeito, portanto a eliminação da própria democracia. A democracia reside precisamente na busca permanente da compensação mútua entre fatores que, em si, não são democráticos. Isso quer dizer que enormes coeficientes de autoritarismo subsistem necessariamente dentro de qualquer democracia e que sem eles o próprio conceito de democracia não faria sentido. A “democracia integral” coincidiria em gênero, número e grau com a ditadura.

Em segundo lugar, democracias não existem no ar, mas em unidades políticas soberanas que coexistem com outras unidades políticas soberanas. Um regime de um país só pode ser democrático para dentro. Não pode conceder aos cidadãos e governos de outros países os mesmos direitos e garantias que dá aos nacionais. Isso implicaria a sua dissolução imediata. Uma “democracia integral” pressuporia a inexistência de fronteiras, mas parece difícil explicar isso a uma mente como a do Sr. Dines. Tratados internacionais podem, por sua vez, retroagir sobre as leis internas, diminuindo o coeficiente de direitos desfrutados pelo cidadão da democracia. Por outro lado, o governo mundial, necessário à implantação da “democracia integral”, seria também contraditório com a noção de democracia, por ser inatingível à fiscalização direta de todos os eleitorados locais – a não ser na hipótese de uma humanidade ilimitadamente poliglótica. Uma expressão como “democracia integral” só pode ser usada por um leviano opinador que não examinou o problema por um só minuto e que se limita a manifestar desejos arbitrários como uma criancinha que esbraveja e chora quando contrariada.

A existência mesma de um poder legislativo, que é um componente essencial da democracia, prova que ela não pode ser integral. Se você tem de estar continuamente produzindo novas leis, é porque as anteriores não produziram a “democracia integral”. Se a produzirem, a subseqüente supressão do legislativo a transformaria ipso facto em ditadura. Basta isso para mostrar como as idéias de pureza e democracia são radicalmente incompatíveis, não apenas no baixo mundo dos fatos, mas na própria esfera dos conceitos absolutos. Como é possível que um sujeito que ignora uma coisa tão elementar da teoria política tenha os meios de sair por aí dando lições de democracia?

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