Posts Tagged democracia

Saramago e os judeus

Olavo de Carvalho

O Globo, 20 de abril de 2002

O sr. José Saramago proclama que a Igreja não tem nenhum direito de emitir opiniões sobre seus livros, mas ele próprio, além de opinar abundantemente sobre os livros da Igreja, ainda se atribui, com humildade exemplar, a divina missão de reescrevê-los. Primeiro foram os Evangelhos, agora é o Livro de Samuel. O jovem Davi, assegura-nos o inspirado escritor, não foi à batalha com o gigante Golias armado somente de uma funda, mas de uma pistola. Esse importante detalhe provavelmente escapou ao profeta hebraico em razão de sua inexperiência em tecnologia bélica, um ramo em que o Nobel português se mantém atualizadíssimo por meio de consultas ao sr. Yasser Arafat, não sei se também às Farc.

Copy desk da revelação eterna, tarimbado especialista em censura e corte de textos — que o digam os jornalistas portugueses dos bons tempos da ditadura Otelo Saraiva –, por que não haveria esse velho ateu e comunista de sentir-se também habilitado a fazer cobranças morais aos judeus de hoje em nome dos judeus de ontem? Para humilhar aqueles patifes, ele insinua que os mortos de Auschwitz, no Paraíso, coram de vergonha de Sharon e tutti quanti. Deploravelmente, ele escreve isso no mesmo parágrafo em que acusa os israelenses de usar a recordação do Holocausto como instrumento de chantagem psicológica — uma fatal pisada no tomate que será interpretada pelos maliciosos como ato falho freudiano, mas na qual eu prefiro ver uma amostra do rigor dos procedimentos hermenêuticos com que esse cérebro notável interpreta não somente os escritos do Todo-Poderoso, mas até os dele próprio, que é um pouco menos poderoso.

Baseado nesse método revolucionário, ele afirma que os judeus estão “contaminados pela monstruosa e enraizada ‘certeza’ de que neste catastrófico e absurdo mundo existe um povo eleito por Deus e que, portanto, estão automaticamente justificadas e autorizadas… todas as ações próprias”. Quem quer que tenha lido a Bíblia pelo método antigo, denominado “alfabetização”, sabe que a condição de povo eleito, longe de isentar os judeus de responder por seus pecados, os investe do pesadíssimo encargo da profecia, sujeitando-os a temíveis cobranças e castigos da parte de Deus. Segundo estudiosos treinados nesse método, como Eric Voegelin, James Billington e Norman Cohn, o privilégio autoconcedido da indulgência antecipada e incondicional é atributo exclusivo das seitas gnósticas que deram origem às ideologias totalitárias modernas: nacional-socialismo e socialismo internacional. Seja no altar da deusa Raça ou da deusa História, quem sempre alegou o dogma da sua própria concepção imaculada para dar a seus pecados uma aura de santidade não foram os judeus: foram os Saramagos. Que Saramago em pessoa não se dê conta disso e ingenuamente projete sobre uma raça a conduta que é especificamente a do seu próprio partido, eis uma coisa aliás bastante lógica, pois ninguém poderia desfrutar dos benefícios da autobeatificação se esta não o privasse instantaneamente, e talvez para sempre, da possibilidade mesma de enxergar seus próprios atos antes de julgar os alheios. Elevando-se por decreto próprio às alturas de um juiz iluminado do povo judeu, um homem não pode deixar de mergulhar, por choque de retorno, naquela total inconsciência de quem já não consegue seguir a lógica do que ele próprio escreve, nem portanto perceber que, a poucas linhas de intervalo, chantageia e acusa o chantageado de chantagem.

Tal é o método hermenêutico de Saramago.

Para mim, a mais sugestiva apreciação crítica que já se fez desse autor saiu anos atrás na coluna do Agamenon Mendes Pedreira: sob a foto de um burro atrelado a uma carroça, a legenda — “O escritor José Saramago puxando a marcha dos Sem-Terra.”

***

O retorno de Hugo Chávez ao poder mostrou, mais uma vez na História, que é mais fácil implantar uma ditadura por meios democráticos do que uma democracia por meios ditatoriais. Arrivistas como Chávez e Hitler apostam na primeira dessas hipóteses e saem ganhando. Os militares latino-americanos que apostam na segunda quase sempre perdem: ou são derrotados logo de cara, ou se deixam prender na sua própria arapuca autoritária durante décadas sem saber como sair, ou, quando conseguem restaurar a normalidade democrática, acabam no banco dos réus de algum tribunal de lindos democratas que não se lembram mais da temível alternativa da qual foram salvos pelos acusados.

Durante anos Chávez e Hitler construíram seus Estados policiais, peça por peça, dentro da Constituição, com fortíssimo respaldo popular e o apoio do Parlamento e da Suprema Corte, sem que quase ninguém na mídia internacional se desse conta da ratoeira sinistra em que estavam metendo seus respectivos povos. Se houvesse um golpe militar contra Hitler em 1937 ou 1938, seria sem dúvida condenado universalmente como uma ruptura da ordem constitucional, um atentado contra a democracia. Assim foi recebido o golpe contra Chávez — daí a sensação de alívio, perfeitamente ilusória, que a volta do sargentão comunista inspirou mesmo aos que o detestavam.

Mas a experiência venezuelana ensina também que, se não é possível fazer uma revolução gramsciana “desde cima”, artificialmente e sem a lenta preparação do ambiente cultural, também não é possível desfazê-la de repente, seja por meio das armas ou de improvisos eleitorais, sem a prévia e trabalhosa dissolução da atmosfera que a possibilitou. Os vietcongs e os guerrilheiros de Chiapas já haviam demonstrado isso, ganhando em triplo na mídia o que perderam no campo de batalha. Mas até hoje o sentido da expressão “revolução cultural” não parece ter entrado na cabeça dos nossos liberais e conservadores.

***

Maria Rosália Campos consta do Dicionário dos Pintores do Brasil de João Medeiros como artista plástica de importância excepcional. De suas obras, a mais conhecida é o mural da Santa Ceia pintado na Igreja de Nossa Senhora de Fátima. Provavelmente tão versado em matéria de pintura quanto o sr. Saramago em assuntos religiosos, um vigário cretino mandou caiar o mural, assim desaparecido sob uma brancura que ninguém dirá ser a da alma de S. Revma., mas que talvez seja a do seu rol de conhecimentos artísticos. A pintora, que já passou dos oitenta anos, não tem ânimo de protestar, mas a cidade do Rio de Janeiro não pode sofrer calada mais este dano ao seu patrimônio cultural. Peço pois aos leitores que, quando passarem pelo templo lesado, não deixem de dizer poucas e boas ao Saramago de batina.

***

O PFL, que em matéria de convicções se aproxima velozmente do peso atômico zero, atingirá essa meta tão logo celebre algum acordo com a tucanidade, tucanizando-se ele próprio. Daí por diante, seu destino só dependerá do seguinte fator: para votar num partido é preciso respeitá-lo — e ninguém respeita mulher de malandro.

Moral imoral

 Olavo de Carvalho


 Zero Hora (Porto Alegre), 2 dez. 2001

A verdadeira gravidade da situação no Rio Grande não reside na hegemonia de um partido que, no fundo da variedade dos pretextos verbais que apresenta, não sabe fazer outra coisa senão requentar a velha, fracassada e sangrenta experiência socialista de Cuba, da Coréia do Norte, do Vietnã.

Não reside na ousadia crescente de exércitos de militantes que chamam “democracia” à imposição de suas idéias por meio da intimidação e do grito.

Não reside na desmontagem do aparato policial e na conseqüente disseminação do banditismo.

Não reside no estado de censura branca imposto a jornalistas de oposição.

Não reside na eliminação informal do direito de propriedade.

Não reside nem mesmo na legitimação implícita da violência e do crime, consubstanciada na amizade indecorosa entre o “establishment” estadual e os narcotraficantes das FARC.

A verdadeira gravidade na situação do Rio Grande reside na progressiva e dificilmente reversível dissolução da linguagem pública, que, corrompida pelos excessos da retórica de autobeatificação dos sentimentos esquerdistas, vai se tornando cada vez mais impossível de usar como instrumento de distinção lógica e conhecimento da realidade.

Quando jornalistas representativos, antes mesmo de concluídas as investigações de um caso de corrupção, se apressam a participar de uma “manifestação de desagravo” à pessoa do acusado e não são nem mesmo chamados à ordem por uma comissão sindical de ética, o último vestígio de senso da realidade desapareceu do horizonte de consciência de uma classe profissional que, não obstante, continua a se considerar o farol a iluminar os caminhos da nacionalidade.

Que, findas as investigações, inocentado o suspeito, a classe jornalística inteira fosse festejá-lo, isso revelaria facciosismo, mas não falta de consciência.

Desagravo antes, desagravo prévio, desagravo a priori – isto já é uma confissão aberta da firme disposição de fazer prevalecer um preconceito político acima das exigências mais elementares do respeito jornalístico pela realidade.

Atribui-se ao filósofo Georg W. F. Hegel, não sei se falsamente, a sentença: “Se os fatos contradizem a minha teoria, tanto pior para os fatos.” Se non è vero, è ben trovato. Hegel era mesmo um daqueles sistematizadores abstratistas, um daqueles conseqüencialistas alucinados que, partindo de princípios auto-impostos, ia em linha reta como uma bala de fuzil até às últimas deduções sem se importar com as nuances e as variações da realidade empírica. Mas ele, pelo menos, teria dito isso em privado, sem registrá-lo despudoradamente em livro. Já aqueles jornalistas gaúchos fazem alarde público de seu desprezo pelos fatos, confiados no princípio geral de que a realidade, como esposa fiel dos velhos tempos, jamais teria a ousadia de contrariar o PT.

Que tão indecente manifestação de desprezo pela realidade se faça, ademais, com ares de elevado empreendimento moral, aí a inconsciência já deixa de ser uma simples privação intelectual e se torna, positivamente, uma doença do espírito, uma corrupção profunda e irremediável da alma, uma opção satânica pela superioridade intrínseca da mentira.

Lembram, os protagonistas dessa pantomima, aquele assessor técnico cubano que, instruído por Fidel Castro a investigar o destino de umas máquinas caríssimas importadas logo no começo da revolução, tendo-as encontrado paradas e em péssimo estado, foi severamente repreendido pelo chefe por haver registrado em relatório esse fato deplorável, e ainda teve de ouvir esta advertência solene: “Você tem de aprender a optar entre a realidade e a revolução.”

Tal é o estado de deformação a que se expõem, de fato, as almas que se comprometeram com os valores de um movimento que, nas palavras de Karl Radek — o mais próximo assessor de Stálin, morto pelo chefe quando se tornou inconveniente –, exigia de seus militantes a impossível ginástica mental de “mentir em prol da verdade”.

Foi “mentindo em prol da verdade” que milhares de intelectuais esquerdistas, com a maior pose de dignidade, esconderam durante décadas a existência dos campos de concentração soviéticos, tornando-se cúmplices morais do assassinato de milhões de inocentes – um genocídio que ultrapassou de longe as dimensões do holocausto nazista.

Que com tanta facilidade as expressões de indignação moralística subam à face de indivíduos tão inclinados ao oportunismo amoral, eis um fenômeno psíquico que também não é difícil de explicar: quanto mais a moral é desmantelada e inutilizada como instrumento de guiamento da própria conduta, tanto mais afiada e mortífera se torna como arma de ataque na luta política.

O verdadeiro senso moral, diante do fato que o escandaliza, não se multiplica em exibicionismos histéricos, não se autoglorifica em poses de santidade afetada: recolhe-se, medita, busca as causas e o fundo psicológico do mal, para tentar remediá-lo. E, antes de exibir o pecador à execração pública, tenta alertá-lo para a gravidade do seu pecado. É com este espírito, pois, que alerto os jornalistas gaúchos de esquerda: ser de esquerda ou de direita é uma simples opção política, sem maior significação moral em si mesma. Se a adesão a um partido político chega tão fundo que se substitui às exigências morais propriamente ditas, sob a desculpa de que o partido encarna e absorve em si toda moralidade, então a famosa “ética na política”, de que vocês tanto se gabam, já não é senão politização da ética, prostituição da consciência moral a serviço de uma ambição de poder.

Auto-explicação

Olavo de Carvalho

Época, 14 de julho de 2001

O articulista faz uma confissão pessoal

Como há um só articulista que escreve habitualmente contra o socialismo na imprensa de circulação nacional, e como o peculiar conceito socialista de democracia exige que não haja nenhum, todos os artifícios – da difamação às ameaças, da chacota à afetação de silêncio superior – já foram tentados para persuadir esse um a mudar de assunto. A última moda é adulá-lo, elogiar-lhe o estilo, lamber-lhe o ego até o total amolecimento de seu juízo crítico e então, quando ele está indefeso e derretido num mar de lisonja, lançar-lhe à queima-roupa a insinuação fatal: “Desista”.

Sugestão análoga às vezes vem de pessoas boas, sem nenhuma intenção perversa. É no olhar e no tom que se discerne, nas outras, o intuito de calar o articulista.

Infelizmente esse articulista sou eu. Digo “infelizmente” porque, com outro, o ardil talvez funcionasse. Já comigo ele não tem a menor chance, sendo eu uma alma impérvia e coriácea, sem outra ambição na vida senão a de fazer exatamente o que tem feito.

Os senhores – falo de meus aduladores interesseiros, e não dos demais leitores, é claro – não têm a menor idéia de como é bom, para um sujeito que ajudou a construir uma mentira na juventude, poder desmontá-la na maturidade, tijolo a tijolo, com a meticulosidade sádica do demolidor que não se contenta em derrubar paredes, mas quer ir até o último fundamento, arrancar a última pedrinha do alicerce e deixar o terreno limpo e nu como antes do início da construção.

Poder fazer isso é uma libertação, um alívio, uma antecipação terrena da paz eterna. Nada do que os senhores possam me oferecer vale isso. Nada. Muito menos a lisonja, que é a mais instável e inflacionada das moedas.

Mas não pensem que, quando falo em libertação, me refiro ao arrependimento, no sentido moral do termo. A libertação de que falo não é só moral, é existencial, é ontológica. É descobrir e provar, diariamente, que a vida humana não tem de ser um teatrinho de papelão, que ela pode ser integralmente real, que um homem pode passar do auto-engano e da farsa interior a uma existência de verdade, como Pinóquio deixou de ser um boneco para se tornar menino de carne e osso.

Nessas circunstâncias – repito Oscar Wilde –, dizer a verdade é mais que um dever: é um prazer. Mais que um prazer, é uma autêntica exaltação da alma, que ao descer da ilusão aos fatos descobre, pela primeira vez, a dimensão da altura e da profundidade, a estatura real do espírito. É uma descida que é ascensão, se me entendem.

Mas não entendem, não. Pessoas como os senhores não concebem o abandono das ilusões senão – mui estereotipicamente – como a troca dos belos ideais de juventude pelo realismo cru e egoísta da maturidade. Não vendo o que nesses ideais há de pura vaidade e soberba, de pura volúpia de poder camuflada em belas palavras, não podem compreender o que há de legítimo idealismo no sacrifício maduro da mentira juvenil. Aqueles que, abandonando o socialismo, caíram na amargura cética ou no oportunismo cínico não o abandonaram verdadeiramente. São seus escravos e hão de sê-lo eternamente. Cultuam-no em imagem invertida: vendo ainda nele o bem e lamentando apenas que seja um bem impossível, aderem à realidade como quem, após longa resistência, cede a uma tentação aviltante. Deixam o socialismo como quem trai um deus sem cessar de amá-lo.

Esses não entenderam nada. O socialismo nunca foi um deus ou um ideal. Foi uma mentira demoníaca e uma exploração da fatuidade das multidões. Abandoná-lo não é perder um ideal: é reconquistar a vida, a alma, o sentido do dever e a dignidade da missão humana.

É para mostrar esse bem aos que ainda o desconhecem que escrevo contra o socialismo. Os senhores, que não sabem nada disso, podem me atribuir projetivamente os motivos mais estapafúrdios: ódio, inveja, ressentimento, fanatismo, o diabo. Pouco me importa. Eu sei o que estou fazendo, e os senhores não sabem o que dizem.

“Como é bom, para quem ajudou a construir uma mentira na juventude, poder desmontá-la na maturidade”

Veja todos os arquivos por ano