Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de abril de 2009

O Sr. Dines não é burro, pessoalmente. Já provou isso em escritos excelentes. Ele encontra-se emburrecido e cego pelo apoio dos seus pares, que, quando o que ele diz coincide com os desejos deles, tratam de aceitá-lo imediatamente, reprimindo em si próprios e nos outros a mais elementar exigência analítica. Confirmado retroativamente pelo apoio deles, o Sr. Dines está autorizado a jamais perceber a enormidade do que disse. Ser “formador de opinião”, no Brasil de hoje, é isso. É expressar amores e repulsas com a irracionalidade de um cão que late, reforçado pelos ecos inumeráveis de uma orquestra canina.

A idéia de que não haja comparação possível entre autoritarismos iguala, na base, os campos para prisioneiros japoneses nos Estados Unidos durante a II Guerra e os campos de concentração nazistas. Iguala as medidas defensivas, tomadas por uma nação em perigo, à construção da máquina totalitária que cresce justamente na medida em que as oposições desaparecem e em que se torna necessário inventar mais e mais oposições imaginárias para justificá-la. O Brasil teve, ao longo de vinte anos, aproximadamente dois mil prisioneiros políticos, nenhum deles totalmente isento de ligações diretas ou indiretas com a guerrilha e com a ditadura cubana. Cuba, com uma população doze vezes menor, chegou a ter cem mil ao mesmo tempo – a quase totalidade sem processo legal, e levada ao cárcere por crimes hediondos como fazer uma piada, recusar-se a usar um crachá patriótico ou, nos casos mais graves, possuir uma casa. Se não há nenhuma diferença entre uma coisa e outra, também não há diferença entre matar seis milhões de judeus e dar um discreto pontapé no traseiro do sr. Alberto Dines, ou entre jogar milhões de padres no Gulag, por serem padres, e, como se fez na Grã-Bretanha durante a II Guerra, prender sem processo uns quantos colaboradores do inimigo. Abolir as diferenças equivale a neutralizar o próprio conceito de democracia, que só é democracia, precisamente por basear-se no senso das proporções, que essa abolição impugna.

A prova de que proibir toda gradação entre autoritarismos é inviável na teoria e na prática nos é dada pelo próprio Sr. Dines quando, ao referir-se a Fulgêncio Batista, o rotula de “tirano” e, no mesmo parágrafo, falando de Cuba, atenua a linguagem dizendo apenas que “está longe de ser uma democracia”, como se Cuba não tivesse feito outra coisa ao longo destes últimos quarenta anos senão esforçar-se para ser uma democracia. Se isso não é uma gradação, eu sou o Alberto Dines em pessoa.

Graduando mais ainda, ele faz questão de frisar que, se Cuba “ainda” (depois de breves quatro décadas) não se transformou em democracia, isso ocorreu ‘a despeito das magníficas intenções dos rebeldes”. Ora, os militares brasileiros, em 1964, derrubaram o governo que acobertava uma guerrilha financiada por Cuba, e prometeram em lugar dele, o quê? Uma democracia, ora bolas! Uma democracia com eleições plenas em seis meses. Não seriam, essas também, “magníficas intenções”, embora falhadas? Falar em “magníficas intenções”, neste caso, não seria ainda mais legítimo do que no tocante aos guerrilheiros cubanos que instantaneamente implantaram um regime de terror da ilha e não cederam um milímetro até hoje, enquanto os nossos militares acabaram se afastando do poder por obediência à pressão popular? Em vão o Sr. Dines afirma que todas as ditaduras são iguais, pouco importando as intenções. O que ele acaba dizendo, no fim das contas, é que todas são iguais, mas algumas são mais iguais que as outras. Ele jura “abominar as gradações”, mas ele próprio gradua, só que em sentido inverso: odeia o mal menor e ama decididamente o pior dos piores.

Na edição subseqüente do seu Observatório, ele mesmo deu a maior prova disso, ao falar da rebelião chefiada em 1936 por Francisco Franco contra a república pró-comunista espanhola. Ele rotula as forças rebeldes como “ditatoriais” e “fascistas” e o outro lado como “forças legalistas”. Tentando camuflar a escolha, ele apela ao seu usual artifício de fingir equanimidade, nivelando “as violências contra sacerdotes e freiras” e “a participação do clero na repressão fascista”, como se fossem ambas episódios da guerra civil, quando de fato as primeiras antecederam a guerra e foram a causa direta da rebelião franquista. Matanças em tempo de guerra podem ser debitadas na conta da violência geral, mas matanças em tempo de paz, promovidas por forças governistas contra a própria população local, caracterizam não somente uma ditadura, mas uma ditadura totalitária e genocida. É absolutamente imoral chamar de “legalista” ou “democrático” um regime que promoveu a matança sistemática de padres e freiras simplesmente por serem padres e freiras e que incendiou centenas de igrejas católicas nos territórios sob o seu domínio, fechando todas as restantes e tornando virtualmente ilegal a religião majoritária do país. A república espanhola foi obviamente uma ditadura, e entre ela e a ditadura franquista que a sucedeu Alberto Dines, desmentindo seu fingido horror a comparações dessa ordem, não hesita em estabelecer uma gradação de preferências, com o agravante de que, nessa gradação, não se limita a cotejar a extensão de dois males, mas eleva um deles ao estatuto de um bem, ao afirmar que os “libertários do mundo inteiro” – assim ele qualifica os membros das Brigadas Internacionais – lutavam pelos “conceitos de República, democracia e solidariedade”. Ora, as Brigadas Internacionais foram à Espanha obedecendo a uma convocação de Stálin, e, se delas participou a inevitável quota de idiotas úteis que não sabiam estar servindo à ditadura soviética – os depoimentos de John dos Passos e de George Orwell a respeito são bastante significativos –, o fato é que as Brigadas foram sempre um instrumento a serviço do comunismo, e não da liberdade. Chamar comunistas de “libertários” é mais do que mera impropriedade vocabular, é trapaça pura e simples, de vez que o segundo termo designa um movimento político existente, notoriamente hostil ao comunismo e atuante na política até hoje, inclusive no Brasil.

Para piorar as coisas, Dines nivela dois fenômenos radicalmente diferentes: a participação soviética ao lado dos republicanos e a ajuda nazifascista às tropas de Franco. É notório que o general rebelde obteve ajuda técnica e militar da Itália e da Alemanha, mas sem nada ceder a esses incômodos fornecedores (os únicos de que dispunha), defendendo a soberania do seu país com obstinada teimosia, timbrando em manter a neutralidade espanhola durante a II Guerra contra todas as pressões de Hitler e Mussolini e ainda concedendo abrigo a judeus foragidos, no mínimo como agradecimento à comunidade judaica de Valencia que ajudara a financiar sua rebelião. Em contrapartida, o governo dito “republicano” colocou-se sob as ordens de Stalin da maneira mais servil, chegando a ser controlado diretamente pelos russos nas etapas finais da guerra e a transferir para Moscou, sob a grotesca desculpa de “segurança”, todas as reservas estatais de ouro espanhol, um óbvio crime de alta traição que os russos festejaram com risos de escárnio, sabendo que os espanhóis jamais veriam aquele tesouro de volta, como de fato não viram.

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