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Ainda os capitalistas

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 22 de janeiro de 2006

Meu artigo “Capitalistas cretinos”, como não poderia deixar de ser, suscitou perplexidade e confusões. A principal delas foram discussões em torno da possível “missão essencial” dos capitalistas, aos quais eu teria atribuído deveres exorbitantes. Exorbitante, no entanto, é alegar uma “missão essencial” para escapar ao dever, necessariamente acidental, de lutar pela própria sobrevivência quando ela está ameaçada. Que professor, vendo sua escola pegar fogo, deixará os alunos queimando dentro do prédio sob a alegação de que tirá-los de lá não faz parte da sua “missão essencial” de ensinar português ou matemática? Missões essenciais são definições de papéis sociais a desempenhar numa situação determinada, estável o bastante para que a definição das obrigações correspondentes seja visível aos olhos de todos. O desabamento da situação instaura o reino do acidental – ele próprio é acidental – e a partir daí o que determina o dever de cada qual já não é o apelo da sua vocação essencial: é a pressão das circunstâncias. Nesse momento, o sacerdote vira guerreiro, o varredor de rua vida enfermeiro, o advogado vira bombeiro. A definição mesma de “crise social” é a impossibilidade de cada um limitar-se ao seus deveres rotineiros: é a eclosão de novos deveres gerados no ventre da emergência. E quem foge a eles é covarde, suicida ou ambas essas coisas.

O pressuposto da “missão essencial” dos capitalistas é a existência estável do regime capitalista. Dentro desse quadro, eles não têm realmente outro dever senão organizar a produção segundo a racionalidade econômica e gerar lucro. Ponto final. Mas, se é o próprio sistema capitalista que está ameaçado, e sobretudo se essa ameaça não de dentro, não vem do próprio mau funcionamento do sistema, mas vem de fora, vem de uma agressão cultural, ideológica e política ao sistema, então o dever do capitalista não é desfrutar do capitalismo, mas lutar para que ele não pereça. E, historicamente, o fato é que em geral os capitalistas fogem a esse dever, deixando-o para os intelectuais, os estudantes, os militares ou quem quer que se apresente.

Alguém alegou, contra os meus argumentos, que a organização do Ocidente contra a ameaça do nazismo veio da classe capitalista. Veio nada. Os primeiros a alertar contra o perigo encontraram uma barreira de indiferença nos investidores interessados em continuar lucrando nos seus bons negócios com a Alemanha. Winston Churchill não era um capitalista, Charles de Gaulle não era um capitalista, Georges Bernanos não era um capitalista, muito menos Hermann Rauschning, militante nazista arrependido que fugiu para a Inglaterra em 1937 para publicar o dramático apelo “The Revolution of Nihilism – Warning to the West”. Os ricos foram os últimos a ouvi-los. Dentro da própria Alemanha, Hitler se propôs “colocar os capitalistas de joelhos” e eles se acomodaram covardemente à situação. Não podiam decidir o que produzir, nem o preço que iam cobrar, nem a quem iam vender, nem os salários que iam pagar. Vinha tudo pronto do governo. A resistência foi mínima. O velho Thyssen fez o máximo que sua covardia permitiu: fugiu para Paris. Hitler mandou seqüestrá-lo e trazê-lo de volta. Até o fim da guerra o potentado consolou-se lambendo suas algemas de ouro.

Outros citam o exemplo de 1964. Aí os capitalistas acabaram se mobilizando, sim, mas só para ajudar, na última hora, a dar o golpe militar que eles poderiam e teriam a obrigação de ter evitado com antecedência por meio de uma ação político-cultural eficaz. E, mesmo na hora do golpe, tudo teria ficado em conversa mole se não fosse a iniciativa imprevista do general Mourão Filho, que encerrou as discussões pondo os tanques na rua.

A maioria do empresariado ficou é cortejando o governo enquanto foi possível, na esperança de que, na corrupção geral, soubrasse para eles alguma verba oficial. Seu modelo e ideal era Tião Maia, o amigo do presidente derrubado, que no dia seguinte ao golpe fugiu do Brasil levando tanto dinheiro que se tornou a quarta maior fortuna da Austrália. Até muito recentemente, quando lhe perguntavam a razão do seu sucesso, ele respondia com a frase que todo capitalista brasileiro sonharia em poder repetir: “O Banco do Brasil foi uma mãe para mim.” Desde então, a maternidade estatal tem apliado incessantemente seus serviços, atendendo a um número cada vez maior de bebês chorôes.

Tudo por um queijo

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 21 de agosto de 2003

A estratégia do movimento comunista mundial é hoje tão complexa, tão sutil, tão abrangente, que suas próprias vítimas potenciais — os capitalistas, incluindo nisto os donos da mídia — se prestam docilmente a colaborar com ela, por total incapacidade de apreender a unidade de propósitos por trás de uma alucinante variedade de táticas.

Que um mesmo movimento explore, numa parte do mundo, os apetites sexuais da classe alta e, noutra, o atavismo reacionário de moralistas islâmicos enragés, eis algo que parece ao observador sonso uma hipótese demasiado rebuscada para não ser pura teoria da conspiração.

No entanto ela é a simples aplicação lógica dos preceitos estabelecidos há mais de quarenta anos por Herbert Marcuse, que para a mídia ocidental foram objeto de curiosidade passageira durante as agitações de 1968, mas que na elite comunista continuaram a ser estudados com muita seriedade.

Os comunistas, tal como fizeram os nazistas, anunciam antecipadamente e com bastante exatidão o que vão fazer, mas a coisa sempre parece demasiado inverossímil para merecer atenção, e a piada invariavelmente se transforma em tragédia quando sai do papel para a realidade. Uma revolução que em vez da unidade de interesses do proletariado se apoiasse numa massa heterogênea de estudantes, milionários gays, esposas mal amadas, mendigos, prostitutas e fanáticos religiosos parecia menos um perigo iminente do que um capítulo de “O Incrível Exército Brancaleone”. No entanto o Exército Brancaleone hoje lança bombas sobre o edifício da ONU em Bagdá, em perfeita sintonia com seus agentes na mídia ocidental, que imediatamente proclamam ser tudo culpa… dos americanos, é claro.

A capacidade dos comunistas para ações contínuas e de longo prazo contrasta da maneira mais acachapante com o imediatismo superficial das análises empreendidas pelos supostos “especialistas” acadêmicos e jornalísticos em que a classe empresarial deposita toda a sua confiança.

Poucos meses antes das eleições de 2002, doze desses experts brasileiros e americanos entrevistados pelo Herald Tribune asseguravam, com certeza científica, que Lula nunca teria mais de trinta por cento dos votos. Na mesma época, escrevendo na imprensa carioca, eu dizia que era absolutamente impossível uma derrota do PT nas eleições. Evidentemente, o louco era eu.

E ninguém desconfia que entre os tais experts podia ser tão grande o número de simples idiotas pomposos quanto de agentes de desinformação capacitados, bem pagos por organizações comunistas para amortecer os temores do adversário. É sempre assim. Quando os comunistas anunciam o que vão fazer, aterrorizando suas vítimas potenciais, tudo o que estas querem é um desmentido que as alivie. Em troca de umas palavras tranqüilizantes, dão tudo. E pouco lhes importa de quem vão comprar o alívio. Como ratos de Pavlov, correm do choque para o queijo e, quando o encontram, ficam até felizes de saber que vem da mesma fonte. Vêem nisso um sinal reconfortante de que o dono do laboratório é seu amigo.

Mas aqueles mesmos que em 2002 induziram o empresariado a um falso sentimento de segurança ante a força eleitoral da esquerda são hoje ouvidos com profundo respeito quando persuadem a classe proprietária a colaborar com um governo que, enquanto isso, discretamente, vai tratando de abolir a propriedade privada por meio de impostos progressivos inspirados numa receita criada por Marx e Engels em 1848. Quando a reforma tributária for um fato consumado, será tarde para chorar. Mas, novamente, o errado sou eu.

Com idêntica circunspecção, o governo vai montando sua parceria com Hugo Chávez, tal como anunciado por loucos em que ninguém acreditou, entre os quais, evidentemente, o autor do presente artigo. E, ao planejar duas novas plataformas para a Petrobrás, no valor de dois bilhões de dólares, faz a licitação por meio de discretas cartas-convite, endereçadas a três empresas de sua predileção, furtando-se à concorrência pública. A única hipótese de que essa denúncia do deputado João Caldas (PL-AL) venha a encontrar repercussão é que algum radical de esquerda, rompendo por ingenuidade patriótica o silêncio da estratégia petista, ponha a boca no mundo. Como a nossa mídia já não admite alternativa ao governo de esquerda senão uma oposição de esquerda, a esperança de que a verdade prevaleça depende de que ela passe, apertada, entre as rachaduras do bloco esquerdista.

Miséria lingüística

Olavo de Carvalho

O Globo, 5 de agosto de 2000

Aquela história do sujeito que tinha apenas três neurônios – o de emissão, o de recepção e o de bloqueio geral – já se tornou demasiado complexa para ser verdade. Três, afinal, já é um silogismo, o começo de uma dialética. O normal, hoje, é ter um neurônio só, que acende ou apaga por reflexo condicionado. Isso, evidentemente, se você é um intelectual, um privilegiado que conseguiu, mediante aprendizado universitário, condicionar o neurônio. Se não, ele acende ou apaga ao acaso.

Por exemplo, outro dia escrevi que o fascismo foi um dos movimentos revolucionários do começo do século. Um jornalista que me leu, sendo comunista desde o ADN, adorando revoluções e não concebendo que alguém desgostasse delas, entendeu que era um elogio do fascismo. No mesmo artigo, mostrei que o dogma comunista que explica o nazismo como ideologia capitalista era uma piada grotesca, dado que os nazistas identificavam “capitalistas” com “judeus” e odiavam por igual as duas coisas, estando nisto, aliás, perfeitamente concordes com Karl Marx. Sabem o que o sujeito concluiu daí? Que eu estava falando mal dos judeus! É bem possível que essa reação seja autodefesa neurótica de um comunista, ferido no seu ponto fraco de discípulo de um racista professo. Karl Marx, afinal, era o mesmo que se referia aos russos como “lixo étnico”, celebrava como preço do socialismo a destruição de uns quantos “povos inferiores” e, no seu círculo familiar, usava costumeiramente de expressões do tipo “negro pernóstico”. O seguidor devoto de um guru desse naipe tem razões para se sentir de rabo preso e espumar de ódio à simples menção da afinidade de nazismo e comunismo, afinidade que, no regime comunista, o rabino Schneerson e seus discípulos bem experimentaram na carne, e que, é claro, os comunistas fazem tudo para esconder, mesmo à custa de projetar intenções anti-semitas num notório apologista do judaísmo.

Mas, enfim, por malícia e burrice ou por burrice em estado puro, o fato é que, odiando capitalistas e não conseguindo imaginar que alguém julgasse normal e decente a profissão de capitalista, o sujeito achou que falar em capitalistas judeus era falar mal dos judeus.

Isso é o que, no Brasil de hoje, se chama “ler”. Não direi quem é o jornalista, em primeiro lugar, porque, por mais que eu o diga, isto não fará com que ele seja alguém. Segundo, porque não se trata de um caso isolado de burrice individual, e sim de sintoma de burrice ambiental.

Terceiro, porque não acredito poder desinfetar o ambiente jogando naftalinas nas baratas uma por uma. Infelizmente, também não conheço nenhum spray intelectual que, espalhado no ar, faça aumentar a quota de neurônios per capita. Só o que posso é tentar extrair, dos casos singulares, o que têm de genérico que ajude a explicar outros casos.

No exemplo acima, o notável é que o cidadão, vendo em mim um direitista, um inimigo portanto, nem por um instante suspeitou que no vocabulário do inimigo as palavras teriam valores diversos (a rigor, inversos) dos que tinham no seu. Perceber essas diferenças é um instinto semântico, que se aprimora pela leitura. Sua perda ou atrofia assinala o analfabetismo funcional. Observada num profissional das letras, é alarmante. No jornalismo de duas décadas atrás, tão óbvio rombo de compreensão não passaria despercebido ao mais sonolento dos copy-desks. Por favor, não me atribuam intuito polêmico ou de revide. Não se pode armar uma discussão partindo de tão baixo. Este caso, para mim, é apenas uma amostra de laboratório, não mais odiosa, em substância, do que uma lombriga ante o analista clínico. Só que, surpreendidas em estado de proliferação pandêmica, até lombrigas se tornam temíveis. E o fato é que o modus legendi do aludido cidadão está se tornando de uso geral. A língua dos nossos debates públicos está se reduzindo a um instrumento no qual se pode xingar, denunciar, acusar, caluniar – mas não se pode compreender nada. O escritor que, por medo de interpretações maliciosas, se rebaixe a escrever nos cânones dela, logo deixará de ser um escritor para ser um garçom de fast-food mental.

As grandes crises e revoluções fazem-se sempre antecipar, na esfera lingüística, por uma simplificação redutiva que rebaixa a comunicação a uma troca de estimulações padronizadas. Hyppolite Taine descreve, nas “Origines de la France Contemporaine”, a longa degradação que foi tornando a língua francesa do século XVIII um sistema de fórmulas prontas, bom para as generalidades da oratória revolucionária, mas no qual não se podia traduzir Dante nem Shakespeare, criar personagens de carne e osso ou expressar uma única impressão viva. Thomas Mann, Jacob Wassermann e sobretudo Karl Kraus observaram análogo declínio na língua alemã do pré-nazismo. A língua portuguesa do Brasil, nas últimas décadas, começou por perder duas pessoas verbais – fato inédito nos idiomas ocidentais modernos – restringiu drasticamente o vocabulário das classes “cultas”, aboliu a prioridade dos termos próprios e hoje vai perdendo, com o faro das nuances, até mesmo a capacidade de distinguir entre sentido direto e indireto. O que nos falta é um Karl Kraus para documentar essas perdas e revelar como os totalitários de sempre tiram proveito da miséria lingüística que eles mesmos criaram.

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