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Burrice indescritível

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 3 de outubro de 2008

Quando comecei meus estudos, uns quarenta e cinco anos atrás, uma de minhas primeiras preocupações foi rastrear a bibliografia das várias disciplinas que me interessavam – especialmente a crítica literária, a filosofia, a história, a sociologia e a ciência das religiões – de modo a obter uma visão clara do desenvolvimento histórico de cada uma delas e a mapear assim o meu roteiro de leituras pelos dois séculos seguintes, que era o tempo que eu planejava viver.

Só por uma curiosidade, averiguava de tempos em tempos o currículo de várias universidades nesses campos, para comparar o avanço dos meus estudos solitários com aquilo que poderia obter numa dessas venerandas instituições.

Não demorei a perceber que em nenhuma universidade brasileira eu poderia aquela aquela visão global do status quaestionis em cada uma das disciplinas, bem como das suas disputas de território, visão que, constituindo a condição indispensável para o domínio de qualquer uma delas em especial, é, no fundo, o único objetivo dos estudos universitários. Não digo apenas que houvesse lacunas no que se transmitia dessas disciplinas aos estudantes brasileiros. O que havia, no mais das vezes, era a ignorância total dos problemas essenciais e do tratamento que haviam recebido ao longo da história. Mesmo a mera consciência da necessidade de conhecer a evolução temporal das discussões era em geral ausente, tanto nas fábricas de diplomas (autorizadas pelo Ministério da Educação como quem legalizasse o banditismo), quanto nas instituições de maior reputação nacional, como a USP, as PUCs de São Paulo e do Rio e a Unicamp. Isso era visível não só pelos seus programas de ensino, onde o que se entendia por história das disciplinas era apenas uma introdução sinóptica mais adequada a revistas de cultura popular do que ao ensino universitário, mas também e sobretudo pelos trabalhos publicados pelos mais badalados professores, onde a ignorância detalhada dos problemas em discussão constituia a base indispensável para o cultivo de seus mitos ideológicos provincianos mais queridos.

Quando comecei a dar cursos e conferências, tive ao meu alcance um terceiro meio de averiguação do estado de coisas no ambiente universitário: o nível médio de conhecimentos com que chegavam às minhas aulas os diplomados e diplomandos das faculdades de letras, filosofia, etc. Aí aquilo que de início me parecera um estado alarmante de miséria mental tomou as feições de uma catástrofe cultural sem precedentes na história do mundo. Não havia uma única disciplina cuja história eles dominassem, não havia um único problema que soubessem equacionar como estudiosos profissionais dignos do nome, não havia entre eles, em suma, um único universitário no sentido real do termo.

Outros materiais para a avaliação do ensino superior brasileiro vinham-me da imprensa dita cultural, especialmente os suplementos do Globo e do Jornal do Brasil, bem como o caderno Mais! da Folha de São Paulo, que era a vitrine oficial da USP. Parte daquilo que observei nessa documentação está no meu livro O Imbecil Coletivo (1996), cujo título resume as minhas conclusões a respeito. Desde a publicação desta obra, no entanto, as coisas pioraram demais, com a ascensão de uma nova geração de tagarelas ainda mais ignorantes e presunçosos do que seus antecessores, fortalecidos na sua autoconfiança demencial pelo sucesso político dos partidos de esquerda e pela deliciosa sensação de poder daí decorrente, a seus olhos uma prova cabal das suas altíssimas qualificações intelectuais. Hoje em dia a cultura superior está completamente extinta no Brasil, substituída por um falatório subginasiano sufocantemente uniforme, que, sob o pretexto irônico de “pensamento crítico” e “libertação”, se impõe a um amedrontado corpo discente com a autoridade irretorquível do magister dixit.

Misto de vigarice, ignorância pétrea, fingimento histriônico e delírio psicótico puro e simples, o arremedo de vida intelectual no Brasil de hoje é um fenômeno grotesco do qual não encontro paralelo em nenhuma outra época ou nação. E a maior prova da sua gravidade é o fato de que, mesmo entre aqueles que o enxergam, a tendência geral é minimizá-lo como se fosse apenas a deterioração de um adorno supérfluo, sem maiores conseqüências para a vida real. O homem inteligente é sensível ao menor sinal de decréscimo do seu QI; o imbecil sente-se tanto mais tranqüilo e confiante quanto mais imbecil se torna. Como os intelectuais são os olhos e ouvidos da sociedade, não espanta que esta última, sob a influência das hordas de miúdos vigaristas que hoje exercem essa função, tenha se tornado incapaz não somente de acompanhar razoavelmente o que se passa no mundo (comparar o que observo nos EUA com o que a respeito sai nos jornais brasileiros é ter diariamente a visão de um abismo sem fundo), mas até de compreender, mesmo por alto, aquilo que se passa no território nacional. Políticos, empresários, líderes militares e religiosos tomam suas decisões, dia após dia, com base na ignorância radical dos fatos mais decisivos. O Brasil tornou-se uma procissão de cegos guiados por loucos. É um fenômeno tão estranho e incomparável, que desafia qualquer descrição. A capacidade humana de expressar em palavras a experiência coletiva depende de que esta tenha um mínimo de luminosidade e transparência. A opacidade completa só pode ser descrita pela indiferença e pelo esquecimento. O Brasil tornou-se uma imensa falta de assunto.

O Lula americano

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 24 de julho de 2008

Além de ouvir o hino americano com as mãos sobre a bolsa escrotal e não sobre o coração, Barack Hussein Obama adulterou o emblema das armas nacionais para fazer dele um logotipo de sua propaganda eleitoral, declarou que a bandeira americana “é um símbolo de violência” e, para completar, tirou as cores do país do leme do seu avião de campanha, substituindo-as pelo “O” que representa… ele próprio.

Mais que simples desprezo, essas atitudes denotam um esforço consciente de destruição dos símbolos nacionais. Esse esforço, por sua vez, não precisa de interpretação simbólica: seu sentido é auto-evidente. Ele dá expressão eleitoral à guerra cultural travada contra os EUA, de dentro e de fora do país, desde os anos 60: trata-se de erigir, sobre os escombros do patriotismo e da soberania, um novo sistema de lealdades, baseado na aliança de todos os ódios anti-americanos, anti-ocidentais e anticristãos com os interesses bilionários empenhados na implantação do governo mundial. O sinal mais claro dessa aliança são as fontes de apoio financeiro do candidato: de um lado, grupos radicais e pró-terroristas, de outro as megafortunas globalistas e a grande mídia em peso. Daí o vigor da sua campanha, que tem quatro vezes mais dinheiro que a do oponente e – sem exagero – vinte ou trinta vezes mais cobertura jornalística.

Com esse respaldo, ele se permite desafiar não só todas as conveniências, mas passar por cima das exigências legais mais elementares: depois de sonegar durante meses sua certidão de nascimento, apresentou uma certidão manifestamente falsa (v. http://web.israelinsider.com/Articles/Politics/12993.htm). O documento original, que continua sumido, é necessário para tirar a limpo uma questão essencial: Obama é cidadão americano ou é um estrangeiro, inelegível portanto? A ocultação e a fraude subseqüente falam em favor da última hipótese, mas o entusiasmo inalterado dos obamistas, contrastando com o seu absoluto desinteresse em esclarecer essa questão, mostra que preferem antes demolir de um só golpe o sistema eleitoral americano do que permitir que os republicanos continuem no poder: o novo sistema de lealdades já está em vigor, sobrepondo à integridade nacional as ambições partidárias da esquerda.

Com a mesma insolência autoconfiante, os planos de governo de Obama contrariam flagrantemente a vontade da maioria, sem precisar temer que isso tire um voto sequer do candidato. A nação quer baixar o preço da gasolina; Obama promete aumentá-lo, mantendo o veto à abertura de novos poços de petróleo. A América quer ver os imigrantes ilegais pelas costas; Obama promete não somente anistiá-los, mas dar-lhes assistência médica com o dinheiro dos contribuintes. A nação quer menos impostos; Obama promete criar mais alguns. Se milhões de cidadãos americanos que pensam e querem o contrário de Obama juram votar nele para presidente, não é por causa do que ele promete, mas a despeito de ele lhes prometer até mesmo o inferno. A atração da imagem hipnótica é mais forte do que o cálculo de custo-benefício.

A campanha de Obama é uma obra de engenharia psicológica de precisão, planejada não para conquistar os eleitores pela persuasão racional, mas para debilitá-los, chocá-los e estupidificá-los ao ponto de fazê-los aceitar todo prejuízo, toda humilhação, toda derrota, só para não contrariar a suposta obrigação moral de elegê-lo, pouco importando que ele seja mesmo um inimigo disfarçado. Sacrificar tudo ante um fetiche, e fazê-lo até certo ponto conscientemente, compartilhando portanto as culpas da operação e incapacitando-se previamente para lutar contra ela depois de realizada, eis o que Obama está exigindo – e obtendo – dos eleitores.

Já vimos essa operação ser realizada no Brasil, com base na imagem estereotipada do “presidente operário”, contra cujos crimes e perfídias já ninguém pode levantar uma voz audível, pois, arrastados pela chantagem psicológica, todos se acumpliciaram de algum modo ao ritual de sacrifício ante o altar do ídolo.

Puns filosóficos

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 15 de maio de 2008

Nos vários confrontos polêmicos que tive no Brasil – e, à distância, tenho ainda –, jamais encontrei um único opinador com menos de oitenta anos que tivesse o senso da verdade, mesmo em dose mínima. O que tinham, isto sim, era o apego devoto e crédulo, menos a certas opiniões do que a certas frases, às quais conferiam o título prestigioso de “verdades”, sem jamais ter tido sequer a preocupação de averiguar se o que entendiam por esse termo era algo existente na realidade ou apenas um símbolo da afeição que sentiam por si mesmos e pelo seu grupo de referência.

Sei que pareço exagerar, mas digo apenas o que vi. E, descontado um ou outro octogenário, não vi, mesmo entre os melhores e mais sensatos, de todos os partidos e correntes de opinião, um debatedor sequer que tivesse o sentimento, a vivência, a consciência profunda de que a verdade não é um direito natural, sobretudo não é um direito da juventude barulhenta, mas é uma conquista longa, dolorosa, imperfeita e fácil de perder. O amor à verdade, a busca da verdade, simplesmente não fazem parte da cultura brasileira atual. “Chercher en gémissant” é uma idéia que não ocorre aos nossos compatriotas há pelo menos duas gerações.

Três fatos chamaram a minha atenção para isso.

Primeiro: os sujeitos que menos toleravam objeções eram precisamente aqueles que mais proclamavam a relatividade de tudo e a inexistência de verdades absolutas. O mecanismo mental aí subentendido de maneira quase sempre inconsciente era no entanto simples e claro: livre de quaisquer exigências superiores que pudessem travá-lo, cada um desses fulanos tornava-se ele próprio o único absoluto. Discutir com deuses, os senhores compreendem, é cansativo e inútil.

Segundo: quando reconheciam a existência de “verdades”, apelavam no máximo ao testemunho da “ciência”, com a credulidade de autênticos patetas que ignoravam o caráter altamente problemático de qualquer “verdade científica” e, para dizer o português claro, nem tinham jamais pensado nisso. O símbolo “ciência” havia se tornado, para estas criaturas, um amuleto contra a complexidade do real.

Terceiro: invariavelmente, o fato de que eu houvesse mudado de idéia quanto a um ponto ou outro me era atirado na cara como prova de minha inconsistência e desonestidade, como se persistir no erro comprovado fosse o mais elevado mérito intelectual.

Não existe busca da verdade se primeiro você não fez um esforço sério de compreender o que é a verdade em si mesma, o que é essa qualidade geral misteriosa que, anexada a certas afirmações, tem o dom de as tornar dignas de reverência. Não me refiro a nenhuma especulação lógica sobre o conceito da verdade, especulação que também pode ser conduzida por meios meramente formais e sem nenhum senso da verdade. Refiro-me, isto sim, à investigação anamnética – obrigatória para todos que pretendam opinar em público –, sobre as primeiras experiências que lhes trouxeram o conhecimento direto da distinção entre verdade e mentira, entre verdade e erro. Para quase todo ser humano, essa experiência é a de ocultar uma culpa que ele sabe que tem ou a de ser acusado de uma culpa que ele sabe que não tem. A primeira noção da verdade é a da sinceridade de um indivíduo para consigo mesmo, quando toma consciência de seus próprios atos sem poder apelar ao testemunho de ninguém mais. Todas as especulações filosóficas posteriores sobre a verdade têm de partir daí. Só respeitamos a verdade porque alguma vez a possuímos e tivemos nela nossa única garantia, sem nenhum apoio exterior, e porque daí obtivemos a noção da ordem divina, transcendente a toda autoridade humana. Todo uso da palavra “verdade” que não tenha como referência a memória viva dessa experiência primordial é apenas um flatus vocis, um pum filosófico.

A arte de soltar esses puns é a única coisa que há muito tempo os brasileiros vêm aprendendo nas universidades.

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