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Dois códigos morais

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de setembro de 2009

A entrevista do Cabo Anselmo ao programa “Canal Livre” (TV Bandeirantes, 26 de agosto, http://www.averdadesufocada.com/index.php?option=com_content&task=view&id=2267&Itemid=34) é um dos documentos mais importantes sobre a história das últimas décadas e mereceria uma análise detalhada, que não cabe nas dimensões de um artigo de jornal. Limito-me, portanto, a chamar a atenção do leitor para um detalhe: o confronto do entrevistado com os jornalistas foi, por si, um acontecimento revelador, talvez até mais que o depoimento propriamente dito.

Logo de início, o apresentador Boris Casoy perguntou se Anselmo se considerava um traidor. Ele aludia, é claro, ao fato de que o personagem abandonara um grupo terrorista para transformar-se em informante da polícia. Para grande surpresa do jornalista, o entrevistado respondeu que sim, que era um traidor, que traíra seu juramento às Forças Armadas para aderir a uma organização revolucionária. A distância entre duas mentalidades não poderia revelar-se mais clara e mais intransponível. Para a classe jornalística brasileira em peso, o compromisso de um soldado para com as Forças Armadas não significa nada; não há desdouro em rompê-lo. Já uma organização comunista, esta sim é uma autoridade moral que, uma vez aceita, sela um compromisso sagrado. Nenhum jornalista brasileiro chama de traidor o capitão Lamarca, que desertou do Exército levando armas roubadas, para matar seus ex-companheiros de farda. Traidor é Anselmo, que se voltou contra a guerrilha após tê-la servido. Anselmo desmontou num instante a armadilha semântica, mostrando que existe outra escala de valores além daquela que o jornalismo brasileiro, com ares da maior inocência, vende como única, universal e obrigatória.

O contraste mostrou-se ainda mais flagrante quando o jornalista Fernando Mitre, com mal disfarçada indignação, perguntou se Anselmo não poderia simplesmente ter abandonado a esquerda armada e ido para casa, em vez de passar a combatê-la. Em si, a pergunta era supremamente idiota: ninguém – muito menos um jornalista experiente – pode ser ingênuo o bastante para imaginar que uma organização revolucionária clandestina em guerra é um clube de onde se sai quando se quer, sem sofrer represália ou sem entregar-se ao outro lado. Conhecendo perfeitamente a resposta, Mitre só levantou a questão para passar aos telespectadores a mensagem implícita do seu código moral, o mesmo da quase totalidade dos seus colegas: você pode ter as opiniões que quiser, mas não tem o direito de fazer nada contra os comunistas, mesmo quando eles estão armados e dispostos a tudo. Ser anticomunista é um defeito pessoal que pode ser tolerado na vida privada: na vida pública, sobretudo se passa das opiniões aos atos, é um crime. Não que todos os nossos profissionais de imprensa sejam comunistas: mas raramente se encontra um deles que não odeie o anticomunismo como se ele próprio fosse comunista. Essa afinidade negativa faz com que, no jornalismo brasileiro, a única forma de tolerância admitida seja aquela que Herbert Marcuse denominava “tolerância liberdadora”, isto é: toda a tolerância para com a esquerda, nenhuma para com a direita.

Mais adiante, ressurgiu na entrevista o episódio do tribunal revolucionário que condenara Anselmo à morte. Avisado por um policial que se tornara seu amigo, Anselmo fugira em tempo, enquanto os executores da sentença, ao chegar à sua casa para matá-lo, eram surpreendidos pela polícia e mortos em tiroteio. De um lado, os entrevistadores, ao abordar o assunto, tomavam como premissa indiscutível a crença de que Anselmo fora responsável por essas mortes, o que é materialmente absurdo, já que troca o receptor pelo emissor da informação. De outro lado, todos se mostraram indignados – contra Anselmo – de que no confronto com a polícia morresse, entre outros membros do tribunal revolucionário, a namorada do próprio Anselmo. Em contraste, nenhum deu o menor sinal de enxergar algo de mau em que a moça tramasse com seus companheiros a morte do namorado. Entendem como funciona a “tolerância libertadora”?

A quase inocência com que premissas esquerdistas não-declaradas modelam a interpretação dos fatos na nossa mídia mostra que, independentemente das crenças conscientes de cada qual, praticamente todos ali são escravos mentais da auto-idolatria comunista.

Ao longo de toda a conversa, os jornalistas se mantiveram inflexivelmente fiéis à lenda de que os guerrilheiros dos anos 70 eram jovens idealistas em luta contra uma ditadura militar, como se não estivessem entrevistando, precisamente, a testemunha direta de que a guerrilha fôra, na verdade, parte de um gigantesco e bilionário esquema de revolução comunista continental e mundial, orientado e subsidiado pelas ditaduras mais sangrentas e genocidas de todos os tempos. Anselmo colaborou com a polícia sob ameaça de morte, é certo, mas persuadido a isso, também, pela sua própria consciência moral: tendo visto a verdade de perto, perdeu todas as ilusões sobre o idealismo e a bondade das organizações revolucionárias – aquelas mesmas ilusões que seus entrevistadores insistiam em repassar ao público como verdades inquestionáveis – e optou pelo mal menor: quem, em sã consciência, pode negar que a ditadura militar brasileira, com todo o seu cortejo de violências e arbitrariedades, foi infinitamente preferível ao governo de tipo cubano ou soviético que os Lamarcas e Marighelas tentavam implantar no Brasil? Ao longo de seus vinte anos de governo militar, o Brasil teve dois mil prisioneiros políticos, o último deles libertado em 1988, enquanto Cuba, com uma população muito menor, teve cem mil, muitos deles na cadeia até hoje, sem acusação formal nem julgamento. A ditadura brasileira matou trezentos terroristas, a cubana matou dezenas de milhares de civis desarmados. Evitar comparações, isolar a violência militar brasileira do contexto internacional para assim realçar artificialmente a impressão de horror que ela causa e poder apresentar colaboradores do genocídio comunista como inofensivos heróis da democracia, tal é a regra máxima, a cláusula pétrea do jornalismo brasileiro ao falar das décadas de 60-70. Boris Casoy, Fernando Mitre e Antonio Teles seguiram a norma à risca. Desta vez, porém, o artificialismo da operação se desfez em pó ao chocar-se contra a resistência inabalável de uma testemunha sincera.

Conhecendo as muitas complexidades e nuances da sua escolha, Anselmo revelou, no programa, a consciência moral madura de um homem que, escorraçado da sociedade, preferiu dedicar-se à meditação séria do seu passado e da História em vez de comprazer-se na autovitimização teatral, interesseira e calhorda, que hoje rende bilhões aos ex-terroristas enquanto suas vítimas não recebem nem um pedido de desculpas.

Moral e intelectualmente, ele se mostrou muito superior a seus entrevistadores, cuja visão da história das últimas décadas se resume ao conjunto de estereótipos pueris infindavelmente repetidos pela mídia e consumidos por ela própria. O fato de que até Boris Casoy, não sendo de maneira alguma um homem de esquerda, pareça ter-se deixado persuadir por esses estereótipos, ilustra até que ponto a pressão moral do meio tornou impossível a liberdade de pensamento no ambiente jornalístico brasileiro.

Poses e trejeitos

Olavo de Carvalho


Folha de São Paulo, 16 de outubro de 2002

Interrogado pelo jornalista Boris Casoy sobre a denúncia da mídia internacional quanto às relações do seu partido com as Farc, com Hugo Chávez e com Fidel Castro, o sr. Luiz Inácio saiu do aperto alegando que: a denúncia não viera da mídia internacional, mas apenas de “um picareta de Miami”; as tais relações não existiam de maneira nenhuma; e Boris nem deveria falar dessas coisas diante das câmeras.

Com relação à primeira parte, observo que o sr. Inácio tem sido bem pródigo no uso do epíteto “picareta”, chegando a rotular com ele 300 congressistas, no que, aliás, dei-lhe plena razão, na época, com a ressalva de que o número deveria ser aumentado para 301.

No entanto o único cidadão de Miami que andou falando do PT foi o escritor cubano Armando Valladares. Preso político por 22 anos, recordista mundial de permanência entre as grades por delito de opinião, autor de um dos mais fortes e pungentes livros de memórias já engendrados pelo sofrimento injusto, Valladares tem um lugar assegurado na história do século 20 entre os personagens que provaram, por sua coragem e retidão inflexível nas piores circunstâncias, a soberania do espírito livre ante as trevas do diabolismo totalitário.

É alguém da estirpe de um Victor Frankl, de um Soljenítsin, de um Richard Wurmbrand; alguém cuja qualidade moral está acima de todas as controvérsias políticas e do qual ninguém tem o direito de falar senão com o devido respeito. Ao se referir a ele num tom de superioridade afetada, o sr. Inácio provou a vulgar mesquinharia do seu próprio espírito, o espírito de um caipira arrogante e presunçoso, a arrotar superioridade ante uma figura humana que transcende infinitamente o seu horizonte de compreensão.

Também, não se poderia esperar outra conduta do homem que em três décadas de ascensão social ininterrupta se esmerou mais em fazer as unhas e em posar com ternos Armani do que em aprender algum idioma, mesmo que fosse o seu próprio. Que esse indivíduo de envergadura microscópica tenha se tornado o ídolo de todo um povo, só mostra o quanto esse povo perdeu todo o senso de medida das virtudes humanas, já não sendo capaz de apreender sinais de grandeza e mérito, senão na forma dos mais postiços simulacros, midiáticos ou eleitorais.

Quanto à denúncia, muito antes de alguém tocar no assunto em Miami ela já havia saído no “Weekly Standard“, um dos melhores semanários políticos dos EUA, ecoando logo na revista “Newsmax“, no “Washington Times” e no Congresso americano, onde 12 deputados solicitaram ao presidente Bush uma investigação em regra sobre Lula e o PT.

No Brasil, eu mesmo publiquei vários artigos a respeito, e é quase impossível que, na assessoria do candidato, ninguém os tenha lido. Os trejeitos de desprezo fingido com que o sr. Luiz Inácio tentou minimizar a importância jornalística do caso são puro teatro, bem ao estilo do cidadão que triunfa num pleito eleitoral que ele próprio disse considerar “apenas uma farsa”. Pois, por definição, quem é bom em farsas… É farsante.

Com relação ao segundo ponto, é próprio do homem pouco inteligente fazer pouco da inteligência alheia. Ninguém que organize e lidere dez reuniões internacionais, trabalhosas e dispendiosíssimas, professando ali discutir a unificação da estratégia esquerdista continental com dezenas de organizações comunistas -algumas delas terroristas e narcotraficantes-, tem o direito de esperar que acreditemos que não tem nada a ver com isso, que as resoluções que ele próprio assinou ao fim de tantos debates não o obrigam em nada e que, enfim, está livre e desimpedido.

Ninguém, após assinar um documento de solidariedade às Farc, chegando a qualificar de intolerável “terrorismo de Estado” a resistência que lhes opõe o governo colombiano, pode esperar que acreditemos que não tem com elas, no mínimo, uma louca relação de amor.

Ninguém, após defender obstinadamente a guerrilha colombiana de qualquer suspeita de envolvimento com o narcotráfico, apostando sua reputação pessoal contra o peso das provas materiais e documentais apreendidas com o traficante Fernandinho Beira-Mar, pode querer razoavelmente que acreditemos que não está, com isso, cumprindo o voto de solidariedade que assinou.

Síntese de desculpa esfarrapada e história da carochinha, a resposta de Lula a Boris Casoy, neste ponto, não deveria ter o poder de enganar ninguém. No entanto para enganar um povo inteiro não é preciso ter nem a astúcia da mentira verossímil, quando se conta, na mídia, com os bons serviços de tantos burros de presépio, dispostos a aceitar e alardear como verdades sacrossantas as mais tolas desculpas esfarrapadas.

Mais fácil ainda torna-se a consecução desse feito quando o autor da façanha, na disputa eleitoral, tem como concorrentes dois representantes de partidos co-signatários do mesmo compromisso de solidariedade com as Farc, que, se o denunciassem, estariam denunciando a si próprios, e um terceiro que, por razões pessoais insondáveis, antes mesmo de começar o embate já promete não dizer nada, seja de verdadeiro, seja de falso, que possa arranhar a boa imagem do seu adversário maior.

Por fim, o conselho a Boris Casoy. Como não enxergar aí a sombra de uma intimidação velada? Se, enquanto mero candidato, o sr. Luiz Inácio já se arroga o direito de ditar o que seu entrevistador deve ou não deve dizer na TV, a que alturas impensáveis não chegará sua reivindicação de autoridade quando for presidente da República?

Se o governo estadual que o próprio PT aponta como seu modelo de gestão democrática -o do RS- já mostrou não tolerar críticas de espécie nenhuma, mesmo sustentadas em provas e documentos, chegando já a 30 o número de jornalistas que ali respondem a processos e sofrem pressões de toda ordem pelo que escreveram, por que acreditar que esse modelo, ampliado à escala federal, será mais leve e fácil de suportar?


Carta enviada por Olavo de Carvalho à Folha, e publicada no Painel do Leitor do dia 23 de outubro de 2002:

PAINEL DO LEITOR

Roubo ou atentado
“Poucos dias depois de publicado na Folha o meu artigo “Poses
e trejeitos” (“Tendências/Debates”, pág. A3, 16/10), que
suscitou uma onda de furiosos protestos petistas –
desacompanhados, como sempre, de qualquer tentativa de
refutar os fatos ali mencionados-, sucedeu algo de muito
estranho.
O artigo trazia, no rodapé, o nome da empresa que publica os
meus livros e promove os meus cursos em São Paulo, a É
Realizações. Pois bem: na madrugada de 19/10, a sede dessa
firma, na Vila Mariana, em São Paulo, foi invadida e
saqueada. Levaram quatro computadores, equipamentos de
gravação em vídeo e em áudio, documentos e dinheiro.
Simples roubo ou atentado camuflado em roubo? Creio que
jamais iremos saber.”
Olavo de Carvalho (Petrópolis, RJ)

 

Boris Casoy entrevista Olavo de Carvalho

TV Record

20 de setembro de 1998

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