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Inteligência uspiana

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 16 de março de 2000

Cinco anos atrás, pus em discussão, para escândalo geral, o tema da cumplicidade dos intelectuais de esquerda com o banditismo.

A classe acusada reagiu como de praxe: primeiro, rosnar e latir para afastar o intruso; falhado esse expediente, fazer-se de morta até que o perigo passe; por fim, apossar-se do tema, reciclá-lo e reapresentá-lo como grande novidade.

Na imprensa dita cultural não falta quem anseie por servir de motoboy para esse gênero de mensagens. Destaca-se nisso o suplemento Mais!, que escolheu por nome um advérbio de quantidade para deixar ao leitor a escolha da qualidade subentendida: “mais irrelevante”, “mais bobo”, etc.

Assim, decorridos cinco anos, esse apêndice de papel deu-nos, em breve entrevista com Sérgio Miceli sobre o caso João Moreira Salles, uma amostra do que a classe pensante, pensando e pensando e pondo nisto uma força danada, pôde fazer nesse ínterim com o supramencionado tema.

Perguntado sobre as razões do fascínio que a intelectualidade sente pelos marginais, o acadêmico respondeu: “Discordo dos termos em que a pergunta está formulada.” Dito isto, imergiu em búdico silêncio, deixando ao público o encargo de adivinhar as profundidades do seu pensamento, e ao repórter a humilhação de não saber jamais onde foi que errou. Ensinar por meio do silêncio é a suprema glória do pedagogo. Com essa resposta o professor Miceli provou que está no lugar certo como titular de Sociologia da USP. Ninguém sabe calar com a elegância, a classe, o aplomb de um sociólogo da USP. Não me venham reduzir mesquinhamente o caso a uma aplicação da regra de Wittgenstein: “Onde não se pode falar, deve-se calar.” Wittgenstein jamais atinou com a arte sutil de transformar o silêncio em pito. Eu diria que é autêntica criação uspiana, se não houvesse o precedente daquele pai de família do conto de Arthur de Azevedo, que, indagado pelo filho sobre o que é “plebiscito”, mete o atrevido de castigo no banheiro enquanto vai consultar discretamente o dicionário.

A pergunta seguinte – se “a solidariedade é uma fantasia ou uma nova ação política” – deve ter parecido ao professor Miceli muito bem formulada, pois aí ele não apenas consentiu em falar como ainda o fez no mais puro estilo embromation: “João Moreira Salles procedeu como papel-carbono escolástico, desejoso de recuperar a experiência pelas lentes simbólicas do vivente e receoso de impor seus esquemas de apreensão.” Traduzido em português, quer dizer que João Moreira Salles preferiu deixar que Marcinho VP falasse por si. Mas, dito assim, não tem graça, além de também não constituir resposta nenhuma.

Por fim, indagado sobre “o que difere o malandro do narcotraficante” – pergunta formulada e respondida na gramática peculiar do Mais!, onde “diferir” vale como “diferenciar” –, o professor Miceli, aí sim, mostrou a que veio. “Narcotraficante – protestou – é uma designação de embocadura policial, enquadrando uma pessoa atuante numa esfera de atividade que está longe de permitir tamanha simplificação.” Nada como o rigor uspiano para impugnar os simplismos da linguagem comum. De fato, pode haver coisa mais simplista, mais boba, mais antiintelectual do que chamar um sujeito de narcotraficante só porque ele vende drogas? Chega a ser insultuoso, não é mesmo? Marcinho VP mereceria um termo à altura do vocabulário micélico, que infelizmente o entrevistado não nos forneceu ainda desta vez, tão fundo é o seu desprezo pelos apedeutas para os quais pau é pau e pedra é pedra. O professor Miceli jamais cairia na vulgaridade de ser explícito: para prová-lo, ele também deixou no ar o enigma de saber como um grande espírito tão cioso da precisão de linguagem pode, à imitação do inculto repórter, usar o verbo “diferir” como transitivo direto.

Já me perguntei mil vezes o que é preciso a gente fazer para ficar assim. Já investiguei de tudo: traumas de infância, privação de leituras, ressentimento edípico, alimentação deficiente, doutrinação marxista, uso errôneo das camisinhas. Tudo em vão. A cabeça uspiana é causa sui e não tem explicação no mundo exterior. Tudo o que nela se passa vem dela e nela termina. A “autonomia universitária” foi ali levada às últimas conseqüências: a USP é independente da realidade. Assim, não é de espantar que o tema das relações entre intelectuais e bandidos tenha ficado tão diferente do que era no original, transformando-se de um assunto explosivo numa desconversa evanescente, pedante e supremamente sonsa. Vargas Llosa dizia que a mídia é uma máquina onde entra um homem e sai um hambúrguer. A diferença da USP é que ali o hambúrguer não sai.

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