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Loucura visível

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio (editorial), 25 de outubro de 2005

Se há algo que ninguém neste país ignora é que o voto contra o desarmamento não foi só contra o desarmamento: foi contra o governo. Mas também não foi só contra este governo em particular: foi contra toda uma concepção providencialista do Estado, que durante uma certa época chegou a empolgar a imaginação popular mas cuja periculosidade intrínseca terminou por se tornar evidente para todo o eleitorado.

O atrativo dessa concepção residia na promessa de solução de mil e um problemas que, segundo se alegava, transcendiam as forças dispersas da sociedade civil e requeriam a ação centralizada e centralizadora do Estado.

O perigo – já assinadado pelo economista Friedrich von Hayek nos anos 30 do século passado – era que a as soluções prometidas tinham de ser adiadas até que fosse alcançada a quota de centralização necessária para empreendê-las, e portanto o eixo da atenção se desviava dos problemas originários para concentrar-se na luta contra os obstáculos à centralização. A conquista dos meios, sendo problemática em si mesma, protelava indefinidamente a consecução dos fins e se transformava em finalidade suprema ou única da vida política.

O Estado é expressão da sociedade natural. Quando promete fazer o que ela não pode, tende incoercivelmente a elevar-se acima dela para agir sobre ela como um deux ex machina , acreditando-se força autônoma geradora da sua própria causa. O melhor que consegue então é destruir a sociedade, criando e impondo novos laços, novas obrigações, novos compromissos que já não correspondem à inclinação natural dos seres humanos e que na verdade não se destinam senão a alimentar, com o sangue da sociedade esmagada, a engenhoca estatal que a oprime.

Nunca isso se tornou tão evidente como durante a campanha contra o comércio de armas. Ao alegar que necessitava desarmar a sociedade para protegê-la de si mesma, o Estado incapaz de protegê-la de seus inimigos mostrou que sua prioridade máxima não era defender o povo mas sim defender-se do povo. A reivindicação de poder estatal ampliado não emergia de um plano sincero voltado ao controle da violência criminosa, mas do desejo de camuflar a própria impotência estatal de instaurar esse controle. Incapaz de reprimir os delinqüentes, o Estado propunha a repressão das vítimas.

Tanto foi assim que, após ter ludibriado o povo durante anos com a promessa vã de que o desarmamento civil diminuiria a força do banditismo — como se bandidos houvessem algum dia operado com armas legalmente registradas –, os próceres mesmos da campanha tiveram de confessar que o objetivo visado não era esse, que o desarmamento não protegeria os cidadãos dos bandidos, mas apenas de si próprios. Esperar que a sociedade votasse “Sim”, nessas circunstâncias, era o mesmo que pedir-lhe que assinasse um atestado de menoridade, nomeando o Estado seu tutor. A contradição interna do plano não escapou nem mesmo àqueles que não conseguiriam expressá-la verbalmente: de que valeria uma transferência de autoridade assinada por alguém que, nos próprios termos do documento, era declarado juridicamente incapaz?

Na sua ânsia de poder ilimitado, os apologistas do Estado salvador não se vexam de apelar à incongruência e ao absurdo. Mas, desta vez, sua loucura se tornou visível aos olhos de todos.

A hora do lobo

Olavo de Carvalho

Época, 8 de setembro de 2001

No lusco-fusco moral, o país vacila e teme

Poucas imagens me impressionaram tanto, nos últimos tempos, quanto a de Silvio Santos, prisioneiro em sua própria casa, sorrindo diante das câmeras. Todo um condensado de tensões contraditórias transparecia nessa máscara enigmática: o ríctus de pavor do condenado que antevê o próprio cadáver, a ânsia de camuflar o sofrimento sob a figura estereotipada do eterno garoto jovial dos programas de auditório, a revolta impotente de um cidadão e pai que, vítima da desordem e da maldade, tenta dissipar a má impressão deixada por uma filha afetada de síndrome de Estocolmo, que dois dias antes glamourizava seus algozes diante do público estupefato.

Essa imagem resume, para mim, a situação existencial de nossa classe dominante acuada, inerme, desorientada, prendendo entre os dentes uma prótese de sorriso num último e desesperado esforço de persuadir-se de que está tudo sob controle.

O Brasil, na verdade, já não tem classe dominante nenhuma. Está numa transição entre duas classes dominantes. A antiga, de empresários e políticos tradicionais, já não domina nada. A nova, de intelectuais enragés, ainda não se sente segura o bastante para agarrar de vez a máquina cujo domínio ambicionou e cuja posse, longamente negada, agora se lhe oferece diante dos olhos como uma promessa e um risco.

Nesse interregno, o país agita-se num vazio atormentado e sombrio, o lusco-fusco das transições revolucionárias. É a hora do lobo, o momento indeciso entre uma longa noite de espreita e uma aurora sangrenta. A hora em que o predador esfaimado, ansioso para saltar sobre suas vítimas, hesita ainda em sair da toca porque não tem a certeza de que vai caçar ou ser caçado.

É natural que a essa nebulosa indefinição do poder correspondam, na esfera moral, psicológica e até lingüística, o completo embotamento da sensibilidade, a dissolução de todos os critérios, a abolição do certo e do errado. Também é natural que cada um busque camuflar sua incerteza e perplexidade mediante afetações de indignação moral inflamada, ersatzretórico da lucidez moral. A moral é função da inteligência, da escolha racional. Quando essa capacidade desaparece, a ênfase verbal histriônica do moralismo acusatório é a última tábua de salvação para a alma que naufraga.

O que não é natural de maneira alguma é que os autores e inspiradores da situação, os promotores da mutação revolucionária, nem de longe reconheçam nela o resultado de suas próprias ações, mas se finjam e até se creiam observadores isentos, capazes de enunciar diagnósticos e prescrever remédios.

Chego a duvidar de meus olhos quando vejo um desses apóstolos da liberação da delinqüência, algum velho leitor e discípulo devoto dos teóricos do potencial revolucionário do banditismo, Marcuse e Hobsbawm, aparecer em programas de TV para analisar, com ares professorais de neutralidade científica, os efeitos de sua longa militância em favor da desordem e atribuí-los, com o ar mais inocente do mundo, à maldade do capitalismo. É o lobo convocado a dar seu parecer médico sobre a saúde das ovelhas.

Entre a hipótese do fingimento cínico e a da dupla sinceridade de uma cisão esquizofrênica, fico com ambas. O sujeito começa fingindo, depois ele todo se transmuta em fingimento. “Mentir em prol da verdade”, afinal, é um clássico lema comunista. Não há como praticá-lo sem acabar apagando todas as distinções entre o sincerismo cândido e a farsa maquiavélica. No fim o cidadão se sente tanto mais bondoso e confiável quanto menos sabe discernir o bem do mal.

Mas como impedir que, na nebulização geral dos critérios, o encargo do guiamento moral da nação acabe ficando nas mãos dos homens mais desorientados se justamente eles são os únicos que estão desorientados o bastante para se sentir orientados?

A nação contra o crime, ou: primor de inocuidade

Olavo de Carvalho

Época, 24 de junho de 2000

O Plano Nacional de Segurança Pública divide-se em medidas irrelevantes e decisões suicidas

Metade dos itens que o presidente da República destacou ao anunciar seu plano de combate à criminalidade não tem nada a ver com criminalidade.

Ninguém pode ser contra a iluminação de periferias e favelas, mas bilhões de watts ligados não me farão ver que dano ela poderá trazer às gangues que ali exercem seu poder em plena luz do dia.

Centros de esporte e lazer inseridos num plano de combate ao crime subentendem a teoria – do eminente psicólogo doutor Leonel Brizola – de que as pessoas se dedicam a matar seus semelhantes porque não têm onde jogar futebol.

Preenchimento de vagas em repartições ou providências gerais sob o nome de “modernização” e “reaparelhamento” são medidas cíclicas, independentes do aumento ou do decréscimo do número de crimes.

A impressão que me fica é que o governo simplesmente ciscou idéias esparsas que já estavam para ser adotadas em vários campos e, diante da comoção nacional com a pletora de crimes, as reuniu às pressas sob a enfática denominação geral de Plano Nacional de Segurança Pública.

O plano só abandona o campo da perfeita inocuidade para entrar no das decisões temerárias e virtualmente suicidas, das quais duas são atordoantes. Proibir o registro de armas é o mais formidável incentivo já recebido pelo comércio ilegal desses instrumentos. A utilização direta das Forças Armadas no combate ao crime é ela própria um crime, que arrisca desmantelar o que resta dessas instituições.

Devotado a minhas funções de análise e crítica, odeio dar palpites na busca de soluções, mas a confusão na área de segurança já chegou a tal ponto que não resisto ao impulso de sugerir algumas coisas. Por exemplo: em vez de rebaixar as Forças Armadas a elemento auxiliar das polícias, o governo deveria restaurar imediatamente a Inspetoria-Geral das Polícias Militares, que serviu para inibir significativamente a corrupção policial. Em vez de proibir o comércio de armas, seria preciso incentivá-lo, condicionando a concessão do porte ao compromisso do usuário de submeter-se a treinamento especializado para servir, quando convocado, de auxiliar em operações policiais em sua área de residência. Isso disseminaria entre os cidadãos o senso de responsabilidade pessoal pela segurança pública, além de afastar da tentação das armas os ineptos e despreparados.

Acho que essas idéias podem ser úteis. Mas podem estar erradas, e aliás não são o essencial. O essencial e certo depende de nós, jornalistas, escritores, intelectuais, professores, artistas – os gerentes do imaginário coletivo e dos valores que movem a História. Se cada um de nós não fizer um exame de consciência, distinguindo em palavras e ações o que é desejo sincero de combater o banditismo e o que é intuito camuflado de incentivá-lo para em seguida fazer dele um pretexto de crítica pérfida, uma arma para a derrubada das instituições e para a instauração de nossas lindas utopias, nós nos tornaremos, se é que já não somos, uma poderosa causa secreta da ascensão imperial do crime. E nenhum plano policial nos impedirá de, para cada bandido preso, espalhar mais dez ou 20 pelas ruas.

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