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Resumo didático

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 28 de setembro de 2006

Vou repetir, com todo o didatismo e paciência:

1. Lula é o fundador e mentor do Foro de São Paulo, entidade que articula o combate político legal com a prática de crimes — narcotráfico, seqüestros, homicídios, terrorismo –, para que da convergência e suporte mútuo dessas duas linhas de ação resulte a sujeição integral da América Latina ao movimento comunista, aquele mesmo que matou cem milhões de pessoas e impôs o terror e a miséria a continentes inteiros.   

2. Jamais houve nas Américas uma organização criminosa tão gigantesca e temível quanto o Foro, nem delinqüente tão perverso e malicioso quanto o criador e líder máximo dessa geringonça infernal.

3. Durante dezesseis anos, a elite brasileira, que ele professava destruir, tratou de lisonjeá-lo, subsidiá-lo e protegê-lo, encobrindo sua atividade criminosa e condenando ao ostracismo quem ousasse tocar no assunto. Carreiras foram destruídas, sementes de renovação cultural foram arrancadas, idéias promissoras foram abortadas para que o bandido passasse por cidadão honesto, quando não por ungido e santo.

4. Durante a gestão do indivíduo na Presidência, a mesma elite, vendo que ele mentia, subornava e trapaceava com naturalidade demoníaca, protestou contra alguns de seus delitos avulsos, mas ainda ocultando o crime inicial e maior, o crime-raiz, de modo que aqueles parecessem o desvio acidental e tardio de uma conduta ética exemplar e não a simples continuação lógica de uma década e meia de delinqüência colossal. Tão resguardado ele se sentia, entre os muros da fortaleza de desconversas, acobertamentos e eufemismos erguida pelos seus próprios críticos e adversários nominais, que até em discurso oficial ele podia gabar-se do embuste supremo, rindo da opinião pública, seguro de que ela continuaria na mais completa ignorância do sentido de suas palavras (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/050926dc.htm).

5. Por fim, cansando-se de ser humilhada pelo seu protegido, a elite decidiu livrar-se dele, mas ainda abstendo-se de revelar a verdadeira identidade do sujeito e só admitindo, para derrotá-lo, o uso de meios eleitorais, reduzindo portanto a diferença entre a lei e o crime a uma mera questão de livre escolha. Nas últimas semanas, vendo que a divulgação de casos escabrosos não diminuía a popularidade do indigitado, ela tratou de elevar um pouco o tom das denúncias, mas teimando em omitir o essencial, consagrando o ludíbrio dos eleitores como um direito adquirido do excelentíssimo e fazendo da eleição de 2006 uma farsa ainda mais grotesca que a de 2002.

Aceitar que o criminoso, em vez de ir para a cadeia, se apresente candidato, já é favorecê-lo acima de toda generosidade cabível. Mas Lula vai para as urnas tão armado de imunidades e privilégios que, mesmo na hipótese improvável da sua derrota, o poder semi-secreto que ele criou continuará pairando acima da leis, do Estado e da moral, tendo nas mãos, como refém inerme, o presidente eleito. Vocês, a elite, fortaleceram esse monstro e lhe concederam o benefício da quase total invisibilidade. Quando ele os devorar, quem chorará por vocês?

A carta dos militares

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de julho de 2006

A carta enviada pelos comandantes das três Forças Armadas aos líderes do Senado, divulgada pelo Alerta Total (http://alertatotal.blogspot.com/2006/06/chefes-militares-mandam-carta.html), é decerto um documento significativo, mas não só pela razão mais imediata apontada pelo editor do site, Jorge Serrão: “Dá a impressão de ter vindo em resposta sincronizada ao polêmico e censurado (pelas tevês) pronunciamento do senador baiano Antônio Carlos Magalhães, no último dia 6 de junho.”

O discurso veio da reação compreensivelmente indignada do senador ante a invasão da Câmara Federal pelos agitadores do MLST. O trecho aludido pelo jornalista é o seguinte: “Eu pergunto: as Forças Armadas do Brasil, onde é que estão agora? Foi uma circular do presidente Castelo Branco, em março de 64, mostrando que o presidente da República não poderia dominar o povo sem respeitar a Constituição, que deu margem ao movimento de 64. As Forças Armadas não podem ficar caladas. Esses comandantes estão aí a obedecer a quem? A um subversivo? Quero dizer, neste instante, aos comandantes militares, não ao ministro da Defesa porque ele não defende coisa nenhuma: reajam, comandantes militares, reajam enquanto é tempo, antes que o País caia na desgraça de uma ditadura sindical presidida pelo homem mais corrupto que já chegou à Presidência da República.”

É bem possível que esse apelo tenha influenciado os comandantes, induzindo-os a mostrar ao presidente da República que as Forças Armadas não estão de todo adormecidas. Mas a melhor maneira de analisar um documento histórico não é conjeturar suas motivações subjetivas. É desencavar do seu texto, por análise lógica, as premissas e conclusões implícitas que necessariamente seus autores deveriam ter em mente para poder escrever o que escreveram.

Nesse sentido, o trecho mais importante da carta é aquele segundo o qual, dos quarenta denunciados por formar a quadrilha do Mensalão, “ 36 já tinham sido autuados por nosso sistema de informações e pelo antigo DOPS, como agitadores e até envolvidos com situações de corrupção e roubos”, durante o regime militar.

É inverossímil que quem afirma isso não esteja consciente da seguinte implicação imediata do que acaba de dizer: Partindo da premissa de que 36 delinqüentes praticaram juntos, durante décadas, crimes intrinsecamente ligados a um projeto de subversão revolucionária continental, qual é a possibilidade de que continuem a praticá-los como equipe por mero desejo de enriquecimento pessoal e fora de toda ambição revolucionária? A pergunta se torna ainda mais incontornável porque: (1) em vez de desaparecer nas brumas do passado, aquele projeto sofreu um upgrade formidável com a fundação do Foro de São Paulo e a rearticulação geral que permitiu a ascensão dos grupos esquerdistas ao comando de várias nações da América Latina; (2) esses grupos são os mesmos de antes, e aqueles delinqüentes continuam ligados a eles como sempre estiveram. Qual a possibilidade, então, de que os crimes agora denunciados sejam “desvios” individuais da linha geral da esquerda, em vez da sua consecução fiel pelos mesmos meios criminosos já usados com sucesso em outras épocas? Logicamente falando, essa possibilidade é quase nula, e menor ainda a probabilidade de que os signatários do documento não percebessem que estavam afirmando implicitamente essa nulidade.

Tal como no passado, corrupção e subversão não são fenômenos separados: são os dois braços da revolução continental. São os mesmos braços que fomentaram a gandaia financeira e a anarquia política no governo João Goulart; os mesmos que, derrubado o esquema janguista, instalaram por toda parte o império dos atentados a bomba, dos assaltos a bancos e dos seqüestros. Os mesmos de sempre, com algumas diferenças:

1. Em comparação com as dimensões majestosas do Foro de São Paulo, a OLAS, Organização Latino-Americana de Solidariedade, que coordenava a subversão continental na década de 70, era um clube de futebol de várzea.

2. Naquele tempo o narcotráfico ainda era incipiente e, na sua maior parte, continuava sob o domínio de quadrilhas autônomas, depois organizadas em cartéis. Agora até mesmo os cartéis desapareceram. Está tudo sob o comando das Farc, o que é o mesmo que dizer: do Foro de São Paulo. Ninguém cheira coca na América Latina sem contribuir para a revolução continental.

3. Fora os recursos locais obtidos de atividades criminosas, as organizações de esquerda recebiam ajuda clandestina dos partidos comunistas da URSS e da China. Com a queda do regime soviético e a abertura comercial da China, essa ajuda não cessou, mas legalizou-se e ampliou-se através de empresas constituídas no Ocidente já no tempo de Gorbachev, cujas ligações com a espionagem russa ou chinesa são conhecidas genericamente, mas dificílimas de rastrear em cada caso concreto. Mais ainda, desde os anos 50 o respaldo financeiro concedido pelas fundações bilionárias à esquerda latino-americana cresceu incalculavelmente.

4. Na década de 60, havia ainda um poderoso e organizado movimento anticomunista internacional e nacional, cuja simpatia fluiu naturalmente para a reação anti-Goulart. Hoje ele não existe mais. No ambiente de hegemonia cultural esquerdista, o anticomunismo desapareceu como atitude social legítima, castrando ideologicamente a “direita” e não lhe deixando espaço senão para um discurso moralizante genérico e apolítico.

5. A Igreja Católica, que era a mais forte barreira ao avanço do comunismo, tornou-se instrumento servil da propaganda esquerdista, deixando a população incapaz de resistir ao engodo gramsciano que suga e parasita em prol da política de esquerda o prestígio do cristianismo.

 6. As próprias Forças Armadas, humilhadas e aviltadas, já começam a ver com alívio as ofertas sedutoras do seu agressor que promete verbas e tratamento digno em troca da sua adesão, camuflada ou ostensiva, à “guerra anti-imperialista”.

Da análise do texto, pode-se concluir sem grande margem de erro que seus signatários estavam conscientes da continuidade do processo revolucionário e de sua ligação íntima e essencial com a expansão da criminalidade no país. Quer o confessem ou não, eles sabem que não estão lidando com casos avulsos de corrupção, mas com a destruição sistemática das leis e instituições, condição para que o partido revolucionário se coloque acima do Estado e o absorva. O que permanece em aberto é saber se estão igualmente conscientes das diferenças acima apontadas. Essa questão é vital. No seu discurso, o senador Magalhães equiparou o descalabro da era Lula aos últimos meses do governo Goulart. A evocação é nítida na expressão “república sindicalista”, então correntemente usada pelos adversários para qualificar o governo. Seu uso, agora, denota o intuito de reduzir o atual estado de coisas à semelhança com o seu precedente histórico. Será isso o máximo de periculosidade que os signatários da carta conseguem enxergar na situação presente? O futuro do Brasil depende de que reste algum senso de proporções na mente de seus comandantes militares. Mesmo o estado de alerta tem graus, e um alerta parcial no meio da catástrofe é quase um sono letárgico.

Ainda a luta dos monstros        

Minha posição no debate entre adeptos da evolução e do intelligent design é nítida: não há provas conclusivas em favor de nenhuma dessas teorias, e há objeções razoáveis contra ambas. A única atitude cientificamente defensável é admitir que tudo não passa, por enquanto, de um confronto de hipóteses. Enquanto propostas de investigação, tanto o evolucionismo quanto sua alternativa são disciplinas perfeitamente respeitáveis: é tão lícito e obrigatório investigar traços de continuidade evolutiva na história das espécies animais quanto buscar na estrutura do cosmos os sinais de uma intencionalidade racional. O próprio Darwin, como o declara expressamente nos parágrafos finais de A Origem das Espécies, apostava resolutamente nas duas hipóteses ao mesmo tempo: a evolução, para ele, era a maior prova de um propósito inteligente na origem do cosmos. Ninguém o acusou, por isso, de fazer pregação religiosa em vez de ciência. Também não é demais lembrar que as duas hipóteses são velhíssimas: rudimentos de uma teoria evolutiva encontram-se em Sto. Agostinho e Aristóteles, junto com a afirmação explícita de um design inteligente. Entre as duas áreas de investigação, cada uma tão ampla que até a possibilidade de seu confronto total é bastante problemática, não deveriam ocorrer maiores choques, o que só não acontece por causa das implicações ideológicas que mencionei no artigo anterior.

Na história das idéias, porém, há alguns conjuntos de fatos bem estabelecidos que deveriam induzir o evolucionista a entrar na conversa com um pouco de humildade em vez de fazê-lo com a prepotência fanática de quem não admite discussão:

1. Nenhuma outra teoria deste mundo, com as notórias exceções do marxismo e da psicanálise, teve tantas versões diferentes, contraditórias entre si, criadas num intervalo de pouco mais de um século. Desde o determinismo integral até o império do acaso absoluto e incontrolável, desde o gradualismo das alterações microscópicas acumuladas de geração em geração até as mutações repentinas e catastróficas de espécies inteiras, desde o materialismo intransigente até a especulação teilhardiana do plano divino, o evolucionismo adotou camaleonicamente as formas mais díspares e incompatíveis entre si. Basta esse fato para caracterizá-lo desde logo como uma ideologia e não como uma teoria científica. Cada uma das suas versões isoladas tem, em princípío, o direito de se pretender mais científica que as outras, mas seu conjunto é inconfundivelmente ideológico. E quem quer que fale em nome de uma delas deve primeiro vencer as outras no seu próprio terreno antes de exigir que o público em geral a aceite como única versão autorizada. Não tem sentido alegar a multiplicidade de igrejas como argumento contra a fé religiosa, ao mesmo tempo que se concede o direito de variedade plurissensa a uma teoria que, por suas pretensões científicas, tem a obrigação estrita de ser um discurso unívoco.

2. Nenhuma outra teoria, no esforço de se impor à credulidade da população, produziu tantas provas fraudulentas em tão breve transcurso de tempo. Desde as formas intermediárias forjadas por Haeckel até o vexame do homem de Piltdown, passando pelas falsas medições de cérebros na década de 20 e pelas brutais acusações mútuas de charlatanismo entre Richard Dawkins e Stephen Jay Gould, a história da argumentação evolucionista está tão entremeada à história da vigarice que distinguir claramente uma da outra, caso se possa fazê-lo, ainda é um desafio historiográfico à espera de quem o enfrente.

3. Desde seu surgimento, o evolucionismo já inspirou três ideologias notoriamente genocidas: o evolucionismo social, o comunismo e o nazismo. Em nenhum dos três casos se pode alegar que isso foi mero uso retórico de argumentos extraídos de uma teoria em favor de idéias que lhe eram estranhas. Ao contrário, o evolucionismo está nos fundamentos mesmos de cada uma dessas doutrinas, cuja argumentação evolucionista, para completar, nunca foi obra de amadores intrometidos, mas sempre de cientistas de alto prestígio nos círculos darwinianos e similares. No caso do evolucionismo social, não cabe nem mesmo imaginar que tenha sido subproduto ideológico acidental de uma teoria científica, de vez que, na sua versão spenceriana, ele antecedeu a obra de Darwin e foi uma das fontes diretas da sua inspiração.

4. Antes de resolvidas quaisquer das suas divergências internas e antes de extinta a memória das suas contribuições a ideologias totalitárias, o evolucionismo, ao mesmo tempo que pretende conservar suas imunidades de hipótese biológica estrita, já ampliou suas pretensões ao ponto de se apresentar como explicação da história cultural na sua totalidade e de fazer um esforço organizado para se impor como substitutivo das tradições religiosas na orientação moral, social, jurídica e política da humanidade. E nada disso é empreendido por palpiteiros leigos, mas pelos líderes mesmos das várias e concorrentes escolas evolucionistas. Quem poderia esperar uma prova mais evidente de que se trata de uma ideologia, com ou sem pedaços de ciência dentro dela?

5. Muito antes de se constituir como hipótese biológica, o evolucionismo era defendido como doutrina gnóstica pelo avô de Charles Darwin, Erasmus Darwin, e como tal circulou amplamente em sociedades ocultistas da Escócia e da Inglaterra. É impossível que a influência do avô não ajudasse a inspirar o neto. Em perfeita continuidade, após a publicação de A Origem das Espécies a idéia foi retomada pela doutrina teosófica de Helena P. Blavatski e em seguida pela escola esotérica de Alice Bailey. Foi através desta vertente, representada pelo pedagogo ocultista Robert Müller, que o evolucionismo se incorporou oficialmente aos parâmetros educacionais da ONU, tornando-se mundialmente obrigatório como preparação da juventude para “a civilização do Terceiro Milênio”. O componente gnóstico do evolucionismo transparece também claramente nos escritos de Teilhard de Chardin e, depois de tantos estudos que demonstram a identidade profunda do gnosticismo com os movimentos ideológicos de massa que culminam na utopia do “governo mundial”, é excesso de ingenuidade imaginar que uma idéia que aparece tanto nas origens quanto nos efeitos históricos de um processo cultural e político possa lhe ser totalmente alheia na sua constituição interna.

A ciência natural não é feita por anjos, e a hipótese de que suas bases possam ser totalmente isoladas de motivações culturais pré-científicas é pueril e besta demais para ser discutida. No mínimo, é confundir a ciência historicamente existente com a definição abstrata de um ideal científico jamais atingido e, a rigor, inatingível.

As cinco séries de fatos que apontei estão bem documentadas. Pode-se discutir a sua significação histórica, mas não negar a materialidade dos dados. Se tudo o que eles representam são acidentes marginais que em nada comprometem o núcleo científico puríssimo do evolucionismo, cabe ao evolucionista prová-lo muito bem provado em vez de exigir, pela mera força das proclamações autoritárias, que o interlocutor aceite a priori como ciência incontaminada uma doutrina que historicamente se apresenta tão carregada de comprometimentos e implicações ideológicas. Se, por outro lado, alguém lograsse provar a total ausência de elementos extracientíficos em alguma das versões do evolucionismo, ou mesmo numa parte dela, nesse mesmo momento teria desacreditado como pura excrecências ideológicas todas as conclusões metafísicas, sociológicas, morais, culturais, religiosas e anti-religiosas que os mais célebres porta-vozes da teoria, incluindo Gould e Dawkins, para não falar do próprio Darwin, jamais cessaram de extrair dela. O evolucionismo apareceria então como um imenso discurso ideológico gerado a partir de um pequeno núcleo de ciência genuína, que é aliás precisamente o que suspeito que ele seja. Mas quem pode negar categoricamente que um núcleo semelhante exista no marxismo, na psicanálise, no mecanicismo setecentista, no historicismo ou no próprio “design inteligente”?

Que um modelo explicativo obtenha sucesso em coletar fatos que o comprovem não significa, de maneira alguma, que ele não possa ter defeitos teóricos monstruosos e que os mesmos fatos, amanhã ou depois, não possam ser absorvidos num modelo mais vasto que o supere, o impugne ou o neutralize. Só a livre investigação e discussão pode elucidar isso, num prazo que decerto se contará em séculos. O esforço dos evolucionistas para bloquear as pesquisas no sentido do design inteligente é a exata repetição do decreto dogmático com que Leonhard Euler, em 1748, vetou como anticientíficas as investigações que implicassem a negação, mesmo hipotética, da doutrina newtoniana do “espaço absoluto”, doutrina que desde Einstein ninguém mais ousa defender em voz alta, mas que poderia ter caído muito antes, abrindo caminho para a física relativista em pleno século XVIII, se o partido de Euler, dominante nas academias como é hoje o evolucionismo, não prevalecesse sobre as sábias advertências do pioneiro minoritário G. W. von Leibniz. O design inteligente é uma hipótese científica como outra qualquer, e tentar proibir sua investigação sob o pretexto de que ela é anticientífíca por ter talvez uma remota inspiração religiosa é esquecer que o próprio evolucionismo nasceu de origem similar, com a ressalva de que há uma imensurável diferença de qualidade intelectual entre as doutrinas das grandes tradições monoteístas e o lixo ocultista de Erasmus Darwin.

Que meninos de ginásio posem de campeões do evolucionismo acreditando-se imbuídos da autoridade da pura “ciência” em oposição heróica à fé cega e às crenças ideológicas, é coisa que se entende facilmente pela natural prepotência juvenil e pelo atrativo mágico das eras primitivas (meu próprio quarto de adolescente era repleto de miniaturas de dinossauros e tinha um retrato de Darwin na parede). Mas que cientistas adultos entrem em campo com a mesma arrogância ingênua é fenômeno que só se pode explicar pelo fato de que sua cultura histórica é tão ginasiana quanto a daqueles meninos.

O guru da Nova Ordem Mundial

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 3 de abril de 2006

Alguns leitores estranham que, em plena ascensão do comunismo na América Latina, eu me desvie da atualidade explosiva para me empenhar, aqui e em outras publicações, num combate aparentemente extemporâneo contra Immanuel Kant e o iluminismo (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/060313dc.htm, http://www.olavodecarvalho.org/semana/060323jb.htm e sobretudo http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/opiniao/2006/03/29 /joropi20060329002.html, mais o artigo meu que saiu na Zero Hora de ontem, que no momento em que vocês lêem já deve estar reproduzido no meu website, www.olavodecarvalho.org,  mas cujo endereço completo não sei ainda).

Há quem chegue a imaginar que criei birra do anãozinho corcunda de Koenisberg por sua semelhança física com o de Turim (Antonio Gramci). Mas nada tenho contra anõezinhos, exceto quando por dentro são monstros enormes. No artigo anterior descrevi brevemente o segundo. Seu antecessor alemão parece bem menos perigoso. Com freqüência, surge na mídia com as feições risonhas de um amante da paz e da liberdade. Ninguém pode negar que isso ele era realmente, mas em filosofia as palavras não valem pelo seu sentido-padrão dicionarizado, e sim pelo conceito específico e plenamente desenvolvido que nomeiam. Quando examinamos o que Kant entendia por paz e liberdade, sabendo que assim as entendem também os atuais candidatos a governantes do mundo, não podemos deixar de perceber que a parecença do filósofo com o fundador do Partido Comunista Italiano não é só anatômica, mas também moral, sobretudo na capacidade que ambos tinham de embelezar com uma linguagem idealística as mais feias realidades históricas que estavam plantando no solo do futuro. 

De modo geral, a influência cada vez maior e mais organizada dos intelectuais nos centros de poder mundial e a adoção generalizada da “guerra cultural” como instrumento primordial de dominação tornam a política incompreensível a quem não consiga acompanhar de perto a marcha das idéias. É uma ilusão mortífera imaginar que ainda existe uma esfera “prática” separada do debate cultural, religioso e filosófico. Os políticos ou líderes empresariais soi-disant “pragmáticos”, que se gabavam de olhar com desprezo as discussões aparentemente bizantinas dos acadêmicos, são hoje uma raça em extinção. Para destrui-los, basta à intelectualidade ativista conceber estratégias que passem longe do horizonte de visão do seu imediatismo praticista. A vitória do gramscismo no Brasil explica-se, em boa parte, pela indolência intelectual dos líderes políticos e empresariais de fora da esquerda. Nos EUA, nada se debate no parlamento, se decide no judiciário ou se empreende no executivo sem ter passado, muito antes, pelo crivo dos think tanks, onde intelectuais de grosso calibre criam as categorias de pensamento que depois orientam toda a discussão subseqüente. Se você tenta acompanhar o desenrolar dos acontecimentos sem conhecer os pressupostos intelectuais mais remotos por trás dos conflitos de poder, acaba não entendendo nada. Um desses pressupostos é a filosofia de Kant. Exposta num estilo abstruso que repele até os estudantes de filosofia, ela é a última coisa pela qual um “homem prático” poderia se interessar. Por isto mesmo, ela vai se tornando realidade bem diante dos narizes deles, sem que tenham a menor idéia de para onde ela ameaça levá-los.

Umas poucas observações bastam para realçar a gravidade do assunto.

Em primeiro lugar, a noção kantiana de “paz eterna”, tão própria a seduzir os sentimentais pela sua vaga ressonância bíblica, não significa outra coisa senão “governo mundial”. Num estudo importantíssimo (La face cachée de l’ONU, Paris, Ed. Sarment Fayard, 2000), o Pe. Michael Schooyans, filósofo belga que já lecionou no Brasil, mostra que as novas legistações uniformizantes que a ONU vem impondo ao mundo, como por exemplo o abortismo obrigatório a que me referi num dos artigos anteriores, são de inspiração diretamente kantiana. O governo global que a ONU está construindo com rapidez desnorteante é a tradução jurídica exata do que Kant entendia como “comunidade humana”. Essa comunidade, segundo o filósofo, emergia espontaneamente do fato de que os homens são todos dotados da mesma faculdade da “razão”. Mas a razão, para Kant, não é a mesma coisa que era para os antigos e medievais. Estes a entendiam como o simples dom da fala e do raciocínio coerente, reflexo longínquo da Razão divina que criou e sustenta o mundo. Graças a esse dom, o ser humano podia apreender algo da ordem divina e cósmica do mundo, ordenando por ela, na medida de suas limitadas capacidades, a vida da sua própria alma. Para Kant, ao contrário, a razão é a autoridade legisladora suprema e insuperável, que não tem satisfações a prestar nem a uma ordem divina pré-existente, nem a quaisquer fatos do mundo real que não se enquadrem na sua auto-regulação soberana. Os estudantes de história da filosofia não ignoram que o iluminismo, de um modo geral, se caracterizara pela apologia da universalidade abstrata, com pleno desprezo da variedade dos fatos singulares. Na Revolução Francesa, milhares de cabeças singulares foram decepadas para enquadrar as restantes na linda universalidade da razão. Kant adorou isso. A rigidez do seu moralismo abstrato não tinha limites. Imaginem agora o que pode resultar da transformação disso em princípio regulador da ordem mundial. Eliminar do mapa as nações que não se enquadrarem na perfeição da nova ordem global será tão fácil quanto guilhotinar dissidentes. Se a cultura colombiana, por exemplo, é refratária ao aborto por querer permanecer fiel às suas origens cristãs, corta-se o crédito internacional da Colômbia como outrora se cortou a cabeça do poeta André Chenier ou do físico Lavoisier. Isso está de fato acontecendo, e é uma solução tanto mais tentadora porque o governo colombiano move uma bem sucedida guerra contra o narcotráfico, que a ordem global em gestação preferiria, ao contrário, liberar como comércio legítimo (uma vasta campanha nesse sentido é subsidiada pelo sr. George Soros, que ao mesmo tempo investe pesadamente na construção da nova ordem e na compra de terras… na Colômbia). Para quem quer enquadrar o planeta num modelo jurídico uniforme, esmagando os adversos e recalcitrantes com a boa consciência de um apóstolo da paz eterna, nada mais inspirador do que os abstratismos de Kant.

Mas, muito antes de insuflar essas idéias malígnas nas cabeças dos burocratas de Genebra, Kant já havia feito um mal irreparável à inteligência humana. Ao consagrar o império da “razão” uniforme sobre a multiplicidade dos fatos, ele criou o dogmatismo cientificista que permite abolir continentes inteiros da realidade, sob o pretexto de que são refratários ao estudo científico, dando em seguida, a essa mesma ciência que admite sua incapacidade de estudá-los, a autoridade de declarar que não existem. Essa idolatria do método produziu resultados tragicômicos. A epidemia de charlatanismo antropológico no século XX esteve entre eles. Baseando-se na premissa kantiana de que de um juízo de fato não se pode deduzir um juízo de valor, nem do valor um fato, cientistas sociais bisonhos professaram abster-se asceticamente de proferir julgamentos de valor sobre as realidades culturais que estudavam e acabaram tirando desse voto de castidade a conclusão de que, nesse campo, as diferenças de valor não existiam mesmo. A igualdade das culturas perante a suprema Razão kantiana é hoje um dogma imposto a todas as nações pelos pedagogos politicamente corretos da ONU. É imensurável a bibliografia destinada a persuadir o mundo de que, por exemplo, os rituais astecas de sacrifícios humanos eram um costume tão decente quanto a caridade franciscana.

Quando o Prof. Peter Singer afirma resolutamente os direitos humanos das galinhas, estendendo às diferenças entre espécies animais o mesmo preceito que obteve tanto sucesso no que diz respeito às diferenças entre culturas, ele está sendo rigorosamente kantiano.

Da mesma inspiração vem aquela regra sublime de que, como a ciência genética não consegue perceber nenhuma diferença entre um ser humano e um chipanzé aos três meses de gestação, os seres humanos não são realmente diferentes dos chipanzés. Fortalecida pela autoridade de Kant, cada ciência se crê autorizada a proclamar que tudo aquilo que está fora do alcance dos seus métodos é perfeitamente inexistente. Qualquer faxineiro sabe que um embrião humano, uma vez crescido, pode se tornar Platão ou Michelangelo, e que nenhum embrião de chipanzé pode esperar um futuro igualmente promissor. Mas, como a embriologia não estuda nada do que sucede aos embriões depois que eles deixam de ser embriões, essa diferença é kantianamente abolida em prol da soberania do método. E há muito tempo a supressão dessa diferença deixou de ser uma pura especulação acadêmica; ela já virou lei, e as cabeças que sua aplicação vai arrancando pelo caminho não são de chipanzés nem de galinhas.

Outro malefício incalculável que o kantismo trouxe à humanidade é a separação rígida e estereotipada entre “ciência” e “religião”. Segundo Kant, a primeira diz respeito àquilo que podemos “saber”, a segunda áquilo que podemos apenas “esperar”, quer dizer, desejar e imaginar. Em suma, vigora aí a diferença entre “conhecimento” e “crença”. Uma teoria científica você prova ou contesta. Numa doutrina religiosa, você apenas crê ou não crê, sem possibilidade de arbitragem racional. Essa distinção impregnou-se tão profundamente na alma ocidental que acabou por determinar o uso diário das palavras respectivas na mídia, nas escolas, nas discussões públicas e privadas. Esse é talvez o dogma terminológico de maior sucesso em todos os tempos. Até no automatismo do inconsciente a religião tornou-se “fé”, e ponto final. Mas isso é um conceito pueril e insustentável, uma idiotice completa. Nenhuma religião do mundo começa com “crença”. Começa sempre com uma sucessão de fatos que assinalam a súbita e humanamente inexplicável penetração coletiva numa esfera de realidade mais alta, de onde toda a existencia aparece transfigurada por um novo sentido. Digo “fatos” porque é disso que se trata. A travessia do Mar Vermelho pode ter se transformado em objeto de “crença” para as gerações subseqüentes, mas, para aqueles que viveram o acontecimento, não foi nada disso. Jesus Cristo podia dizer ao cego e ao paralítico curados: “Tua fé te salvou.” Mas é pura metonímia: a cura, se fosse pura matéria de fé e não um fato da ordem física, seria fraude e nada mais. Com a passagem do tempo, esfumando-se a memória viva dos testemunhos, o acesso a esses fatos pode requerer alguma “fé”, mas não tem sentido confundir a natureza de um fato com o modo de conhecê-lo séculos depois. Ou esses milagres aconteceram, ou não aconteceram. E deslocar o problema para um passado remoto é só fugir do problema. Setenta e seis por cento dos médicos americanos acreditam hoje em curas miraculosas, porque as vêem acontecer diariamente e sabem que elas são até mais freqüentes do que a cura pelos meios terapeuticos usuais. O próprio Jesus Cristo, quando perguntaram se Ele era mesmo o enviado de Deus ou se seria preciso esperar por algum outro, não respondeu com uma “doutrina” para ser crida ou descrida, mas com fatos para ser confirmados ou impugnados (confira em Mateus, 11:1-6). As religiões só se transformam em matéria de “crença” para um público que está muito afastado, no espaço ou no tempo, das suas fontes originárias. O conhecimento direto e o estudo cientificamente responsável dos acontecimentos miraculosos são as únicas vias de acesso intelectualmente válido à religião. O resto é uma discussão oca entre ignorantes tagarelas sentados na periferia da realidade. Hoje em dia, porém, qualquer fato tido por miraculoso está afastado, automaticamente, da discussão oficial, a não ser quando é uma fraude ou uma ilusão, isto é, quando, precisamente por não ser miraculoso de maneira alguma, pode ser explicado por algum psicologismo ou sociologismo fácil. Expulsos os dados inconvenientes, a “razão” kantiana impera absoluta no seu buraco de toupeira. O kantismo, consagração da covardia intelectual que foge de tudo aquilo que não conhece, bloqueia a possibilidade de vir a conhecê-lo. Nenhum autoritarismo dogmático, ao longo da história, foi tão mesquinho e tão danoso quanto esse. Em artigos subseqüentes darei exemplos de seus efeitos desastrosos na cultura, na história e na vida moral.

Por enquanto, peço apenas que não me venham com aquela conversa mole de que Kant tinha a melhor das intenções, de que foi tudo culpa do zelo exagerado de discípulos incompreensivos. As conseqüências perversas do kantismo, como as do hegelianismo e do marxismo, não vieram séculos ou milênios depois: foram quase imediatamente subseqüentes. Um pensador que se acha capaz de virar do avesso o universo inteiro dos conhecimentos humanos não tem desculpa para ignorar os efeitos mais obviamente previsíveis da difusão de suas idéias. É indecente passar da arrogância intelectual suprema aos gemidos de inocência fingida. Não se pode conceder esse direito a Kant, como não se pode concedê-lo a Hegel, a Karl Marx ou mesmo a Nietzsche, malgrado o atenuante da loucura. Quem quer que anuncie ter compreendido o sentido integral da História humana tem a obrigação estrita de prever com acerto o próximo episódio, ao menos no que diz respeito ao seu próprio campo limitado de atuação pessoal. Se nem isso o cidadão consegue fazer, é porque não alcançou a plenitude da autoconsciência filosófica de um Platão, de um Aristóteles, de um Tomás de Aquino ou de um Leibniz. E, nesse caso, é só por devoção idolátrica que continuamos a considerá-lo um grande filósofo e não apenas um pensador interessante.

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