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500 anos em cinco notas

Olavo de Carvalho

Bravo!, abril de 2000

Em primeiro lugar, os quinhentos anos de Brasil não são de Brasil: são de um império português de ultramar que se desmembrou sob os golpes da diplomacia inglesa, prestimosamente auxiliada por intelectuais nativos que achavam estar fazendo um grande benefício para as gerações vindouras. O que representaria no mundo de hoje um bloco político-econômico Portugal-Brasil-África era coisa que não podiam imaginar, mas que os ingleses imaginavam perfeitamente bem e por isto mesmo temiam como à peste. O espectro do império mulato emergente assombrava as noites britânicas como a profecia de uma nova expansão moura. Vocês viram o filme Queimada, de Gillo Pontecorvo? É a história do Brasil.

A independência brasileira sacrificou no altar dos interesses momentâneos de senhores de terras um projeto de envergadura mundial, colocando-nos imediatamente sob o jugo de bancos ingleses que, mais tarde, nos atirariam à aventura genocida da guerra do Paraguai.

Nada mais ilustrativo do que a vida trágica do nosso Patriarca. O Andrada acreditava num projeto-Brasil superior ao do império luso, e por isto mesmo, logo após a Independência, se opôs vigorosamente a fazer empréstimos no Exterior. O impulso profundo que movia as rodas da história não demorou a esmagar as cegas ilusões do pioneiro: o Andrada foi demitido e enviado para o exílio, enquanto a nova classe dirigente iniciava a novela sem fim da dívida externa. A Independência não veio para ampliar o horizonte brasileiro, mas apenas para estreitar o português. Missão cumprida, o chefe do movimento podia ser jogado fora.

A vulgata marxista de hoje nos impinge a lenda de que a Independência e a queda do Império foram etapas de uma revolução destinada a nos coroar de glórias. Mas isso só prova que o “marxismo” é Marx para crianças. Marx em pessoa dizia que as colônias da África e da América Latina que se tornassem independentes cairiam ipso facto fora da História. Caíram.

Pensem nisso, rotuladores de plantão, antes de me nomear apologista do colonialismo luso. Não se trata de defender regimes — coisa de desocupados como vocês –, mas de contar a História.

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Nesses quinhentos anos, o Brasil foi sobretudo uma criação da iniciativa oficial, especialmente militar, passando de atropelo sobre a passividade atônita de uma sociedade civil desconjuntada e inerme. Historiadores esquerdistas repetem que a História no Brasil se faz por cima, sem o povo. Têm razão. Mas daí deduzem que precisamos de uma grande revolução para dar chance ao povo. É o protótipo do non sequitur. Nenhuma revolução jamais integrou povo nenhum na História, pela simples razão de que os regimes revolucionários têm de ser hipercentralizados ou morrer no nascedouro. Cada revolução cria uma nova classe governante infinitamente mais distante do alcance do povão do que os donos do Ancien Régime. Revoluções servem apenas a uma jovem elite voraz, semente da futura Nomenklatura. Para se integrar na História um povo não precisa de revoluções. Precisa de paz e tempo, lei e ordem. E intelectuais honestos, que discutam as coisas com franqueza, sem segundas intenções políticas. É a única esperança.

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O que mais falta no momento é o último item da lista. A geração de intelectuais que atualmente está no comando não tem nenhuma franqueza, suas palavras são um festival de arrière-pensées. Para começo de conversa ela é desonesta ao usar a palavra “poder” como sinônimo de governo. A elite do poder não é o governo: é um vasto sistema de conexões que abrange as instituições de cultura, a mídia, as diretorias de empresas, as igrejas, os partidos, o establishment educacional etc. etc., enfim, a rede inteira hoje dominada por aqueles mesmos que fingem estar de fora e ser heróicos coitadinhos em luta contra os de cima. No Brasil, “poder” tornou-se sinônimo de FHC. Todos os outros dizem ser a massa anônima dos deserdados. Quando um João Moreira Salles financia um traficante em fuga, isto é a prepotência do poder em todo o esplendor da sua feiúra: o poder do dinheiro aliado cinicamente ao poder de matar. Mas ninguém diz isso. Uma escorregadia desconversa geral dá ao conluio do ricaço com o bandidão o ar de uma solidariedade entre excluídos. Isso é fraude, e a elite vive dessa fraude. Por isso mesmo nenhum acadêmico, no Brasil, se aventura a fazer um estudo como o clássico The Power Elite de C. Wright Mills. Ninguém deseja confessar que está entre os que mandam.

Essa mentira é básica demais, é central demais para que qualquer setor do nosso debate público escape de ser contaminado por ela. Um povo tem o direito de saber, em primeiro lugar, quem manda nele. Um povo não pode assumir seu destino nas mãos se a elite que hipocritamente o convida a fazê-lo se esconde por trás de bodes expiatórios, eleitos precisamente para isso. Nesse sentido, do Império para cá, o povo foi cada vez mais excluído: no tempo de Pedro II o poder da elite intelectual estava à mostra, seu telhado de vidro rebrilhava ao alcance de todas as pedras como o telhado dos deputados e ministros. Hoje ele se tornou invisível sob os ataques que move aos ocupantes de cargos nominais.

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Bem escondidinha, a elite pode cultivar em segredo os intuitos mais perversos, sempre posando de coorte de anjos.

Assim, por exemplo, uns anos atrás ocorreu-lhe a idéia de que todos os valores positivos ainda dotados de credibilidade numa época de degradação geral podiam ser reciclados para servir ao imediatismo de suas ambições políticas.

O mais notório desses valores foi a “ética”. É natural que um povo que se sente ludibriado sem saber por quem tenha um fundo e dolorido anseio de moralidade. Com um pouco de esperteza, esse anseio pode ser pervertido em desconfiança, a desconfiança em ódio, o ódio em instrumento de destruição sistemática de lideranças indesejáveis.

A existência da vasta máquina de espionagem política que se montou desde então para pôr em movimento a fábrica de denúncias e manter a nação em sobressalto já constitui, por si, a total corrupção do sistema. Quanto mais intensamente essa máquina atua, mais a atmosfera se sobrecarrega de chantagens, deslealdades, mentiras. Mas a máquina permanece invisível, lançando petardos contra a corrupção que ela própria alimenta. Seu primeiro efeito é embotar na mente do público o senso da gravidade relativa dos males. Hoje um funcionário que desvie uma verba, corrompendo uma repartição, já parece mais criminoso do que o espião que grampeia telefones, desvia papéis, usurpa a função policial do Estado e corrompe todo o sistema.

A ética não é uma ciência exata. Seu exercício depende de um esprit de finesse capaz de avaliar quantidades não mensuráveis. Existe em todo ser humano um conhecimento espontâneo dos princípios morais. Os princípios não são regras: são critérios formais que embasam as regras. As regras variam conforme os tempos e lugares, mas subentendendo sempre os mesmos princípios. Qualquer selvagem sabe que aquilo que põe em risco a comunidade inteira é mais grave do que o que dana apenas uma parte dela. Qualquer analfabeto compreende que o que é mais básico e geral deve ser preservado com mais carinho do que aquilo que é periférico e particular.

As virtudes morais de um povo podem ser arranhadas aqui ou ali pelo descumprimento de regras específicas. Mas se a percepção dos princípios gerais é embotada, não é uma ou outra virtude que cai: é a possibilidade mesma de distinguir entre a virtude e o vício. É nesse preciso instante que o discurso de acusação moral se transforma na caça oportunista aos bodes expiatórios. Tão confundido e atordoado pelos moralistas de ocasião tem sido o povo brasileiro, que já começa a aceitar como normais e louváveis a delação de parentes, o grampo generalizado e a nova escala de valores na qual surrupiar um dinheiro do Estado é mais criminoso do que matar, estuprar, vender tóxicos para crianças. Crenças como essas destroem, na base, qualquer ordem possível e alimentam ad infinitum a criminalidade.

Não foi só a “ética”. Iguais reciclagens sofreram as noções de caridade, de paz, de direito, de história. Todas as palavras que expressam as aspirações mais altas foram prostituídas, rebaixadas, moídas na máquina do oportunismo. E a aliança do banqueiro com o assassino brilha no altar da “solidariedade”.

A destruição da lingugem precede o embotamento das consciências. Para elevar a moralidade de um povo é preciso aguçar o seu senso dos valores, não embotá-lo. Quem, a pretexto de punir políticos corruptos, destrói as bases mesmas da moral pública, ou é um idiota irrecuperável ou tem uma agenda secreta. A diferença é que a idiotice sente alguma vergonha de si mesma; a ambição política, não.

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Quando me pergunto como a geração atualmente no poder – a minha geração – pôde se sujar tanto, a pergunta automaticamente se inverte: Como ela poderia permanecer limpa, se entrou no cenário desprovida de qualquer crença positiva, e confiante apenas no maquiavelismo da ação política? Sim, os jovens letrados dos anos 60 não acreditavam em nada, exceto em tomar o poder. Riam de Deus, do bem, da moralidade, prosternavam-se de adoração ante os mais mínimos desejos e caprichos de suas almas egoístas, embelezados por uma moral ad hoc fornecida por charlatães franceses e americanos. Eram cínicos, perversos, aproveitadores ingratos, exploradores de seus pais. Cada um deles, quando dava uma transada ou fumava um baseado, se acreditava merecedor da gratidão da humanidade: estava fazendo a revolução, pombas!

Hoje essa gente tem o poder e refaz o Brasil à sua imagem e semelhança. Por isto, em quinhentos anos de História, nunca estivemos tão baixo.

A História oficial de 1964

Olavo de Carvalho

O Globo, 19 de janeiro de 1999

Se houve na história da América Latina um episódio sui generis, foi a Revolução de Março (ou, se quiserem, o golpe de abril) de 1964. Numa década em que guerrilhas e atentados espoucavam por toda parte, seqüestros e bombas eram parte do cotidiano e a ascensão do comunismo parecia irresistível, o maior esquema revolucionário já montado pela esquerda neste continente foi desmantelado da noite para o dia e sem qualquer derramamento de sangue.

O fato é tanto mais inusitado quando se considera que os comunistas estavam fortemente encravados na administração federal, que o presidente da República apoiava ostensivamente a rebelião esquerdista no Exército e que em janeiro daquele ano Luís Carlos Prestes, após relatar à alta liderança soviética o estado de coisas no Brasil, voltara de Moscou com autorização para desencadear – por fim! – a guerra civil no campo. Mais ainda, a extrema direita civil, chefiada pelos governadores Adhemar de Barros, de São Paulo, e Carlos Lacerda, da Guanabara, tinha montado um imenso esquema paramilitar mais ou menos clandestino, que totalizava não menos de 30 mil homens armados de helicópteros, bazucas e metralhadoras e dispostos a opor à ousadia comunista uma reação violenta. Tudo estava, enfim, preparado para um formidável banho de sangue.

Na noite de 31 de março para 1o. de abril, uma mobilização militar meio improvisada bloqueou as ruas, pôs a liderança esquerdista para correr e instaurou um novo regime num país de dimensões continentais – sem que houvesse, na gigantesca operação, mais que duas vítimas: um estudante baleado na perna acidentalmente por um colega e o líder comunista Gregório Bezerra, severamente maltratado por um grupo de soldados no Recife. As lideranças esquerdistas, que até a véspera se gabavam de seu respaldo militar, fugiram em debandada para dentro das embaixadas, enquanto a extrema-direita civil, que acreditava ter chegado sua vez de mandar no país, foi cuidadosamente imobilizada pelo governo militar e acabou por desaparecer do cenário político.

Qualquer pessoa no pleno uso da razão percebe que houve aí um fenômeno estranhíssimo, que requer investigação. No entanto, a bibliografia sobre o período, sendo de natureza predominantemente revanchista e incriminatória, acaba por dissolver a originalidade do episódio numa sopa reducionista onde tudo se resume aos lugares-comuns da “violência” e da “repressão”, incumbidos de caracterizar magicamente uma etapa da história onde o sangue e a maldade apareceram bem menos do que seria normal esperar naquelas circunstâncias.

Os trezentos esquerdistas mortos após o endurecimento repressivo com que os militares responderam à reação terrorista da esquerda, em 1968, representam uma taxa de violência bem modesta para um país que ultrapassava a centena de milhões de habitantes, principalmente quando comparada aos 17 mil dissidentes assassinados pelo regime cubano numa população quinze vezes menor. Com mais nitidez ainda, na nossa escala demográfica, os dois mil prisioneiros políticos que chegaram a habitar os nossos cárceres foram rigorosamente um nada, em comparação com os cem mil que abarrotavam as cadeias daquela ilhota do Caribe. E é ridículo supor que, na época, a alternativa ao golpe militar fosse a normalidade democrática. Essa alternativa simplesmente não existia: a revolução destinada a implantar aqui um regime de tipo fidelista com o apoio do governo soviético e da Conferência Tricontinental de Havana já ia bem adiantada. Longe de se caracterizar pela crueldade repressiva, a resposta militar brasileira, seja em comparação com os demais golpes de direita na América Latina seja com a repressão cubana, se destacou pela brandura de sua conduta e por sua habilidade de contornar com o mínimo de violência uma das situações mais explosivas já verificadas na história deste continente.

No entanto, a historiografia oficial – repetida ad nauseampelos livros didáticos, pela TV e pelos jornais – consagrou uma visão invertida e caricatural dos acontecimentos, enfatizando até à demência os feitos singulares de violência e omitindo sistematicamente os números comparativos que mostrariam – sem abrandar, é claro, a sua feiúra moral – a sua perfeita inocuidade histórica.

Por uma coincidência das mais irônicas, foi a própria brandura do governo militar que permitiu a entronização da mentira esquerdista como história oficial. Inutilizada para qualquer ação armada, a esquerda se refugiou nas universidades, nos jornais e no movimento editorial, instalando aí sua principal trincheira. O governo, influenciado pela teoria golberiniana da “panela de pressão”, que afirmava a necessidade de uma válvula de escape para o ressentimento esquerdista, jamais fez o mínimo esforço para desafiar a hegemonia da esquerda nos meios intelectuais, considerados militarmente inofensivos numa época em que o governo ainda não tomara conhecimento da estratégia gramsciana e não imaginava ações esquerdistas senão de natureza inssurrecional, leninista. Deixados à vontade no seu feudo intelectual, os derrotados de 1964 obtiveram assim uma vingança literária, monopolizando a indústria das interpretações do fato consumado. E, quando a ditadura se desfez por mero cansaço, a esquerda, intoxicada de Gramsci, já tinha tomado consciência das vantagens políticas da hegemonia cultural, e apegou-se com redobrada sanha ao seu monopólio do passado histórico. É por isso que a literatura sobre o regime militar, em vez de se tornar mais serena e objetiva com a passagem dos anos, tanto mais assume o tom de polêmica e denúncia quanto mais os fatos se tornam distantes e os personagens desaparecem nas brumas do tempo.

Mais irônico ainda é que o ódio não se atenue nem mesmo hoje em dia, quando a esquerda, levada pelas mudanças do cenário mundial, já vem se transformando rapidamente naquilo mesmo que os militares brasileiros desejavam que ela fosse: uma esquerda socialdemocrática parlamentar, à européia, desprovida de ambições revolucionárias de estilo cubano. O discurso da esquerda atual coincide, em gênero, número e grau, com o tipo de oposição que, na época, era não somente consentido como incentivado pelos militares, que viam na militância socialdemocrática uma alternativa saudável para a violência revolucionária.

Durante toda a história da esquerda mundial, os comunistas votaram a seus concorrentes, os socialdemocratas, um ódio muito mais profundo do que aos liberais e capitalistas. Mas o tempo deu ao “renegado Kautsky” a vitória sobre a truculência leninista. E, se os nossos militares tudo fizeram justamente para apressar essa vitória, por que continuar a considerá-los fantasmas de um passado tenebroso, em vez de reconhecer neles os precursores de um tempo que é melhor para todos, inclusive para as esquerdas?

Para completar, muita gente na própria esquerda já admitiu não apenas o caráter maligno e suicidário da reação guerrilheira, mas a contribuição positiva do regime militar à consolidação de uma economia voltada predominantemente para o mercado interno – uma condição básica da soberania nacional. Tendo em vista o preço modesto que esta nação pagou, em vidas humanas, para a eliminação daquele mal e a conquista deste bem, não estaria na hora de repensar a Revolução de 1964 e remover a pesada crosta de sloganspejorativos que ainda encobre a sua realidade histórica?

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