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Cientistas sérios

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de junho de 2013

          

Nada que se diga sobre as relações entre política, ciência, moral e religião tem o mínimo indispensável de dignidade intelectual requerido para merecer alguma atenção, se não leva em conta o fato mais visível da História: todas as guerras de religião desde o início dos tempos, somadas, mataram muito menos gente do que as ideologias científicas modernas, socialismo e nazismo, mataram em  poucas décadas.
Aquele que, posando de defensor da espécie humana, toma a palavra em nome da “ciência”, das luzes e da modernidade, já  traz na testa o emblema sinistro da mentira totalitária. E é com perfeita hipocrisia, se não com inépcia autêntica, que semelhante paspalho alega entre seus títulos de legitimidade a diferença entre a “pseudociência” dos outros e a “sua” ciência  genuína e respeitável. Pois essa diferença, desde logo, só existe e só aparece no interior da prática científica mesma: os pseudocientistas só o são, no julgamento alheio, porque antes disso são cientistas de profissão e não outra coisa.
Quem produz pseudociência é a classe científica e ninguém mais, assim como os erros judiciários nascem das cabeças de juízes e as heresias dos cérebros de religiosos, não de ateus ou de indiferentes. A pureza da ciência, como a da justiça e a da religião, é um ideal normativo e não  mérito real inerente a qualquer das três.
O cientista que chama alguém de pseudocientista acusa um colega de profissão, e deve fazê-lo com a humildade de quem confessa os pecados da sua própria classe, não com os ares beatíficos de quem, vindo de fora, fala com a autoridade da completa inocência.
Depois, aquela distinção não é um dado a priori e incontrovertido, não é uma premissa autoprobante, mas o resultado de discussões que podem prosseguir indefinidamente: as teorias racistas do nazismo tiveram defensores entre os mais prestigiosos cientistas da época, e o marxismo ainda os tem às pencas. E ambos esses grupos nunca cessaram de acusar um ao outro de pseudociência.
Digo isso porque a antropóloga Débora Diniz, da UnB, entra no debate sobre o aborto falando em nome dos “cientistas sérios” (sic) e acredita piamente que pertence a essa classe (v. http://www.cebes.org.br/verBlog.asp?idConteudo=4428&idSubCategoria=30).
Da minha parte, não sou cientista, e só sou sério em casos de extrema necessidade, que evito o quanto posso. Mas tenho a certeza de que não é sério, nem científico, alguém se meter a filósofo sem o menor domínio técnico da matéria e dizer uma coisa destas: “Nascituro é um não nascido. A palavra parece ser um nó filosófico — como alguém pode reclamar ser uma negação existencial? Essa é a confusão ética em curso no Congresso Nacional com a proposta do Estatuto do Nascituro.”
Não, dona. O nó filosófico só existe na sua cabeça. Nascituro não é alguém que não nasceu, é alguém que foi gerado e  já está em vias de nascer, o que o diferencia radicalmente de todos os simplesmente não-nascidos. O particípio futuro latino que a palavra traduz não tem nenhuma acepção de “negação existencial”. Exatamente ao contrário: nascitur significa “começar a ser ou a existir”.
Não vou lhe recomendar que tire a dúvida lendo Cícero porque seria uma crueldade. No entanto, se o tivesse lido, a senhora não se submeteria ao vexame de escrever esta lindeza:
“O nascituro é criação religiosa para dar personalidade jurídica às convicções morais de homens que acreditam controlar a reprodução das mulheres pela lei penal.”
Ora, dona, não foi nenhum bispo nem pastor protestante que inventou o particípio futuro no latim. O termo designa um estágio na formação natural do ser humano e não uma noção religiosa qualquer, muito menos um dogma cristão. Mas como esperar algum conhecimento de latim da parte de quem não domina sequer o português?
Não vou contestar a sua sentença, vou reescrevê-la para ver se a senhora aprende alguma coisa: “O nascituro é criação religiosa para dar personalidade jurídica às convicções morais de homens que acreditam poder controlar, pela lei penal, a atividade reprodutiva das mulheres.” Do modo como a senhora escreveu, parece que a lei penal reproduz as mulheres ou que elas se reproduzem a si mesmas. Como a senhora obteve  diploma de ginásio?
Não satisfeita com tão patente fiasco, prossegue a indigitada: “O nascituro é um conjunto de células com potencialidade de desenvolver um ser humano, se houver o nascimento com vida.”
Entenderam? Se o bebê nasce vivo,  só então começará o processo que fará dele um ser humano. A condição humana não é um dom natural, é uma criação cultural. O sujeito em gestação é um aglomerado de células, quando nasce ainda é apenas isso, e só depois, pela educação recebida, se torna um ser humano. Que o registro civil o inscreva logo de cara entre os seres humanos é,  no mínimo,  antecipação imprudente.
Mutatis mutandis, um leão recém-nascido, deixado a si mesmo e desprovido do treinamento em atividades leoninas que ele receberá da sua mamãe, não é um leão de maneira alguma, não é nem mesmo um leãozinho, é apenas um conjunto de células que, beneficiado pelo Estatuto do Nascituro, não foi abortado em tempo.
Mas que outro raciocínio melhor poderia vir de alguém que chama de “potencialidade” aquilo que acaba de rotular como “negação existencial”, confundindo potência com privação de existência, e ainda tem a presunção de desfazer “confusões éticas” no cérebro alheio?

Escola de costureiras

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de junho de 2013

          

Glenn Greenwald, o repórter do jornal inglês Guardian que descobriu o grampo geral e endêmico instalado pela administração Obama nos EUA, e no qual ninguém queria acreditar até uns dias atrás, disse que o atual governo deu uma interpretação deformada e monstruosa ao “Patriot Act”, criando uma gigantesca máquina de espionagem ilegal “para eliminar a privacidade e o anonimato não apenas na América como no resto do mundo” (ver aqui).
Espionar não é tudo. Intimidar e manipular é o mais importante. O governo americano não só usou o Imposto de Renda como arma de chantagem para paralisar e destruir toda oposição conservadora e cristã, como, ao mesmo tempo, cobriu de isenções e regalias muitas ONGs notoriamente associadas a movimentos radicais islâmicos, inclusive uma, de propriedade do irmão do presidente, destinada a dar suporte político ao governo genocida do Sudão.
Para completar, o governo Obama mudou os regulamentos militares para ameaçar de corte marcial qualquer soldado que falasse em público da sua fé cristã, ao mesmo tempo que convocava um religioso muçulmano para discursar no enterro de soldados mortos pelo terrorismo islâmico, os quais o distinto teve, na oração fúnebre, a gentileza de rotular como “infiéis a Allah”.
Ecada vez vai-se tornando mais claro que o desastre de Benghazi, seguido de repugnantes esforços de acobertamento, nasceu de um falso sequestro encenado para dar ao governo americano uma desculpa para colocar em liberdade o sheikh cego, Omar Abdurrahman, mentor de organizações terroristas.
Para quem quer que investigasse por conta própria e raspasse um pouco a superfície das coisas, já eram mais que previsíveis em 2008 toda a perversidade, a mendacidade psicopática e o caráter golpista daquilo que viria a ser o governo Obama. Para quem confia na grande mídia, entretanto, eram invisíveis, impossíveis e impensáveis.
A redação dos maiores jornais e canais de TV, neste país até mais claramente do que no restante do universo, compõe-se de dez por cento de trapaceiros e noventa por cento de cretinos que os admiram, que os repetem servilmente e que sonham em ser como eles quando crescerem.  E destes, apenas dez por cento crescem. Sobem aos postos de chefia e ganham espaço personalizado quando transpõem com sucesso o rito de passagem que os habilita a fazer por malícia o que antes faziam por idiotice e espírito de imitação.
Aqueles que não consentem em ser nem trapaceiros nem idiotas acabam por se marginalizar ou ser marginalizados.
O leitor quer ter a gentileza de me apontar, entre os luminares da Folha de S. Paulo, do Estadão e do Globo, um, unzinho só, que lhe advertisse em tempo que Obama era um totalitário quatro cruzes, devoto do comunismo e dos radicais islâmicos, disposto a fazer da América um Estado policial –  e não para perseguir os terroristas,  mas sim aqueles que os combatem?
Não, é claro. De fato, todos eles anunciaram uma era de lindezas incomparáveis, o fim da idade das trevas, a apoteose da liberdade e do progresso. E agora, como não podem mais negar aquilo que o planeta inteiro já ficou sabendo sem a ajuda deles, não lhes resta senão apelar, com a maior cara de pau, à desculpa de que tudo o que o Obama faz é culpa de George W. Bush.
Não dá vontade de bater nesses desgraçados? E pensa que algum deles sente um pingo de vergonha? Que nada! São todos discípulos do Zé Dirceu: pegos com a mão na cumbuca, trocam de nariz e seguem em frente, impávidos colossos, arrotando sapiência.
 Não vou citar nomes porque eles brilham todo dia nas telas e nas páginas, padecendo de um excesso de visibilidade.
O que esses sujeitos e todos os seus similares entendem de política está no nível do que eu entendo de corte e costura. Quando criança, eu ouvia de longe minhas tias conversando a respeito numa linguagem esotérica em que abundavam termos como retrós, sianinha, ponto-cruz, pence, viés, o diabo. Conheço as palavras todas, mas até hoje não faço a menor ideia de quais objetos lhes correspondem no mundo real, se é que aquelas coisas existiam mesmo e as velhinhas não estavam apenas se divertindo às minhas custas.
Se, baseado nos conhecimentos assim adquiridos, eu abrisse uma escola de costureiras, estaria me igualando, em competência e idoneidade, àqueles que recebem altos salários para manter o público leitor e telespectador na mais completa ignorância do que se passa no mundo.

Tinha de acontecer

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 6 de junho de 2013

          

A maior, a mais profunda e aparentemente a mais irrevogável consequência da dissolução do Império Soviético foi esta: como agora o comunismo não existe mais, qualquer um está livre para defender as mesmas políticas que os comunistas defendiam, impor os mesmos controles sociais que os comunistas impunham, atacar e denegrir as mesmas pessoas e valores que os comunistas atacavam e denegriam, cultuar e enaltecer os mesmos ídolos que os comunistas cultuavam e enalteciam, tudo isso sem jamais poder ser chamado de comunista.
Os comunistas, é claro, sempre gostaram de camuflar-se, de agir sob mil máscaras irreconhecíveis. Mas agora já não precisam disso: são os seus inimigos que os camuflam, que os escondem, por medo, por terror pânico de parecer saudosistas da Guerra Fria ou “extremistas de direita” (sabendo-se que hoje em dia tudo o que esteja à direita do centro-esquerda é extremismo).
Em vez de um comunismo que não ousa dizer seu nome, temos agora um comunismo do qual os adversários não ousam dizer o nome.
Tão intenso é entre liberais e conservadores o temor de pronunciar a palavra proibida, que qualquer semi-analfabeto de plantão numa cátedra universitária, com um retrato de Che Guevara na camiseta e o livrinho dos pensamentos do presidente Mao no bolso, estourando de orgulho por ter ajudado a matar cem milhões de pessoas, pode se alardear comunista no horário nobre e em cadeia nacional, seguro de que todo mundo verá nisso nada mais que um modo de dizer, uma graciosa hipérbole usada pour épater le bourgeois por um bom menino que, no fundo do seu coraçãozinho, não é comunista de maneira alguma (ver, como exemplo, o site http://www.cdc.ufop.br/).
Foi assim que, sob a proteção de uma densa e bem articulada rede de proibições linguísticas e inibições mentais, o movimento comunista chegou a dominar quase todo o cenário político latino-americano, a controlar todos os países da Europa Ocidental por meio de um grupo de burocratas jamais eleitos, a retomar o poder em várias nações recém egressas do comunismo e até a colocar um dos seus mais devotos servidores na presidência dos EUA – enquanto todos os que viam isso acontecer temiam que, se dissessem que estava acontecendo, soariam tão antiquados quanto um deputado da UDN, tão malvados quanto um torturador fascista ou tão loucos quanto o mais inventivo “teórico da conspiração”.
Como foi possível que transformação tão vasta, tão rápida e – em aparência – tão paradoxal viesse a suceder? Como foi possível que, à queda fragorosa de um regime falido e reconhecidamente criminoso se seguisse, não o debilitamento ou extinção da corrente política que por toda parte o sustentava, mas sim, ao contrário, a sua ascensão espetacular à posição de ideologia mundial dominante e, graças à proibição de nomeá-la, inatacável?
Só faço essa pergunta por caridade para com a burrice alheia, para com a indolência mental e a covardia moral daqueles que hoje, somente hoje, começam a suspeitar de algo que já estava óbvio e patente nos primeiros anos da década de 1990. Óbvio e patente, é claro, para quem observa, estuda, investiga e busca a verdade no meio da confusão; não para aqueles que se sentem tranquilos e seguros de si porque assistiram ao Jornal Nacional ou leram a Folha de S. Paulo.
Hoje, aos 66 anos de idade, faltando apenas dois para completar meio século de jornalismo, estou definitivamente persuadido de que qualquer cidadão que tenha sua principal ou única fonte de informações na mídia popular –  chamada “grande”, talvez, apenas  pela dimensão das suas dívidas ou das suas negociatas com o governo –, é um bocó de mola incurável, um cretino desprezível cuja opinião não vale o bafo que a expele.
Vendo o sucesso mundial do comunismo sem rosto, não cabe perguntar: “Como isso aconteceu?” e sim: “Como poderia não ter acontecido?” Imaginem se, finda a 2ª Guerra, derrubado o governo do Führer, ninguém movesse uma palha para punir os crimes do regime extinto e expor ao mundo o horror da ideologia que os produzira, mas, ao contrário, todo mundo tratasse de silenciar a respeito “para não reabrir velhas feridas” e deixasse os altos funcionários nazistas nos seus lugares, enriquecidos pelo rateio dos bens do Estado e livres para circular pelo mundo como honestos e bem-vindos investidores? Quem não vê que em dez anos o nazismo estaria de volta sob outro nome, talvez   “Poderíamos ter vencido o comunismo em 1991”, disse Vladimir Bukovski, “mas para isso precisaríamos de um novo Tribunal de Nuremberg”.
Não houve tribunal nenhum. Mutatis mutandis, de que serviu abortar em 1964 o golpe comunista que se preparava no Brasil, se em seguida o novo regime, em vez de educar a população contra o comunismo, preferiu se embelezar com as pompas da “neutralidade ideológica” e do “pragmatismo” e só combater os comunistas seletivamente e na sombra, como que envergonhado de antemão pelos crimes que essa escolha imbecil o levaria quase que inevitavelmente a cometer?
Pior ainda, de que adiantou bloquear o avanço dos comunistas se em seu lugar se instalou no governo um autoritarismo tão centralizador quanto o deles, substituindo a elite iluminada vermelha por uma elite iluminada verde-oliva, tão ciumenta das suas prerrogativas ao ponto de excluir da política os líderes conservadores mais populares, preenchendo os seus espaços com os mais medíocres e subservientes, para os quais o posto de meros carimbadores de decretos era até uma honra insigne?
Como seria possível, aqui e no resto do mundo, que o que aconteceu não acontecesse?

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