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Rompendo o hábito

Olavo de Carvalho


Época, 11 de agosto de 2001

Pedindo licença ao leitor, respondo ao doutor Lejeune

Não tenho nesta coluna o hábito da tréplica, mas o doutor Lejeune Mato Grosso é irresistível. Raros doutores ilustraram tão literalmente meus argumentos no esforço mesmo de contestá-los.

Em meu artigo “Filósofos a granel” afirmei que os mentores da campanha pela adoção da filosofia e da sociologia no curso médio não estão habilitados a ensinar filosofia nenhuma e sociologia nenhuma, mas apenas a dar esses nomes à mistura de demagogia revolucionária e slogans da moda, que, com dinheiro público, querem incutir em nossas crianças para torná-las uma fácil massa de manobra. Nada disse, portanto, contra aquelas disciplinas em si (e seria o cúmulo que o fizesse, sendo eu mesmo professor de uma delas), mas contra a filosofia e a sociologia dos Lejeunes, que, autorizados a ensinar o que não sabem, ensinarão o que sabem: não filosofia, nem sociologia, mas luta de classes e chavões politicamente corretos. Tanto que os próceres da campanha, num agilíssimo golpe de jiu-jítsu parlamentar, se esquivam a qualquer debate prévio sobre o conteúdo das disciplinas a ser ensinadas: querem primeiro obter o acesso à platéia infantil, rapidamente e sem muita discussão, para poder lhe transmitir o que bem entendam sem dar satisfações à opinião pública.

O doutor Lejeune respondeu com uma apologia da filosofia e da sociologia enquanto tais, abstrata e genericamente, sem nem de longe tocar em meus argumentos contra a sua filosofia e a sua sociologia, as únicas contra as quais eu havia falado. No tratado de Schopenhauer sobre os truques da erística, a falsa dialética dos charlatães e demagogos, que publiquei em edição comentada sob o título Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão (Topbooks, 1997), isso corresponde rigorosamente ao estratagema número 19, fuga do específico para o geral: “Se o adversário solicita alguma objeção contra um ponto concreto da sua tese, mas não encontramos nada apropriado, devemos enfocar o aspecto geral do tema e atacá-lo assim”. O artigo do professor Lejeune ilustra, melhor do que eu poderia fazê-lo, o tipo de formação filosófica que ele e seus correligionários pretendem dar a nossas crianças. Ele diz que é melhor ensinar uma filosofia ruim do que nenhuma. Mas a filosofia não é um tomate, que, estragado, continua tomate. Uma filosofia estragada não é mais filosofia: é o tipo de pensamento falso e oportunista do qual a filosofia, precisamente, veio nos libertar. Ensiná-lo com o nome de filosofia é o mesmo que chamar de medicina a falta de saúde.

Quanto à qualidade da formação que tem em vista, ele a ilustra ainda mais claramente com o exemplo histórico a que recorre para dar a este debate a aparência postiça de um confronto entre progressismo e obscurantismo: “Na Idade Média, o saber só poderia ser apropriado por filhos dos nobres e ainda assim isso ocorria apenas em mosteiros e abadias”. A Idade Média do professor Lejeune é a de quem aprendeu História nos filmes de Conan, o Bárbaro. Nobres e filhos de nobres, nessa época, simplesmente não estudavam. O clero, classe instruída composta de pessoas de todas as origens sociais, tinha um mínimo de aristocratas. E as escolas não ficavam em “mosteiros e abadias” (valha-me Deus! Já pensaram a meninada invadindo esses centros de recolhimento e meditação?), e sim nas catedrais e paróquias. Qualquer história da educação explica isso, mas o homem que quer “fazer uma revolução” na educação nacional não leu nenhuma.

Se o professor Lejeune se limitasse a ser inculto sozinho, seria problema exclusivo dele. Mas a incultura do líder reflete a dos liderados. É um fenômeno social, e dos mais alarmantes. Neste momento há milhares de militantes, tão incultos quanto o professor Lejeune, ansiosos por moldar as mentes infantis à imagem e à semelhança de seus preconceitos ideológicos, que eles tomam por filosofia e sociologia. Pode haver maior risco para o futuro do país que entregar as novas gerações aos cuidados de indivíduos que pretendem educá-las antes de educar-se a si mesmos?

Em busca da justiça

Olavo de Carvalho

O Globo, 11 de agosto de 2001

Malgrado as dificuldades e limitações que terá de enfrentar, o julgamento dos guerrilheiros do Khmer Vermelho, que o governo do Camboja e as Nações Unidas anunciam para este ano, pode ser o primeiro passo para uma tomada universal de consciência de que os colaboradores de regimes comunistas são culpados de crimes contra a humanidade, exatamente no sentido e na medida que o foram os nazistas condenados pelo Tribunal de Nuremberg.

Um quarto de século atrás, poucas semanas antes da queda de Saigon, o grupo liderado por Pol Pot tomava o poder no vizinho Camboja e, em nome da nova cultura socialista, iniciava o massacre dos recalcitrantes e desajustados, chegando em poucos anos à cifra de dois milhões de mortos.

Esses crimes, cometidos por cambojanos contra seus próprios compatriotas desarmados, em tempo de paz, suscitaram imensuravelmente menos revolta e gritaria internacional do que os bombardeios americanos no Vietnã ou do que as mortes de três mil esquerdistas chilenos ocorridas em ambiente de guerra civil.

Um dos obstáculos temíveis que o julgamento do clã Pol Pot encontrará pela frente é, sem dúvida, a má vontade da mídia internacional cúmplice. Desde que, no começo dos anos 90, o dissidente Vladimir Bukovski trouxe dos Arquivos de Moscou as provas de que praticamente toda a imprensa social-democrática européia tinha sido financiada pela KGB na década anterior — suscitando imediatamente a eclosão da Operação Mãos Limpas, com que uma organizada elite de juízes comunistas desviou a atenção do público para casos de corrupção doméstica — ninguém mais tem o direito de imaginar que prestigiosos jornais de centro-esquerda, na Itália, na França ou na Alemanha, são fontes fidedignas de informação. A participação ativa de um deles naquele grotesco ritual de beatificação das Farcs que foi o Fórum Social Mundial de Porto Alegre assinala toda a diferença que existe entre jornalismo e propaganda.

A desproporção monstruosa entre a espetacular campanha mundial anti-Pinochet e o modestíssimo destaque que se vem dando ao julgamento do Khmer Vermelho não é coincidência: é, no mínimo, um esforço consciente para varrer para baixo do tapete as culpas dos colaboradores europeus do genocídio cambojano.

Nada está mais longe da mentalidade atual dos remanescentes esquerdistas no mundo do que a hipótese de assumirem, mesmo em pensamento, a mais mínima parcela de culpa por todo o mal que ajudaram a fazer. Mesmo quando reconhecem o horror da ditadura socialista construída na URSS, na China, em Cuba, não se sentem culpados, mas vítimas. A desilusão que tiveram com seus sonhos de juventude lhes parece um sofrimento incomparavelmente mais digno de piedade do que aquele que, em nome desses sonhos, eles e seus cúmplices impuseram a um quarto da população do globo terrestre. Que são, de fato, cem milhões de mortos e muitas centenas de milhões de pessoas reduzidas ao trabalho escravo, perto da humilhação de alguns grupos de intelectuaizinhos obrigados a reconhecer, se tanto, pequenos erros de estratégia na realização de seus lindos projetos sociais?

Quando digo que há algo de anormal, de doente, de sociopático na mentalidade de comunistas, socialistas e esquerdistas em geral, é a isso que me refiro: é a essa incapacidade radical que cada um deles tem de julgar-se a si próprio pelos mesmos padrões com que julga os outros. É a essa completa e profunda falta do senso de igualdade nos apóstolos da igualdade. É a esse total e soberano desprezo pelo Segundo Mandamento.

Graças à universalidade desse fenômeno, o julgamento do Khmer Vermelho não somente se arrisca a ser bastante amortecido pela mídia mundial, mas ainda a ter de contentar-se com enviar ao banco dos réus apenas uma parte dos líderes conhecidos desse movimento criminoso, pois vários remanescentes dele ocupam posições de destaque na sociedade cambojana atual, e dificilmente as autoridades judiciárias terão a coragem ou os meios de mexer com eles — sobretudo com Ieng Sary, cunhado do falecido Pol Pot e ex-ministro das Relações Exteriores. Para que o tivessem, seria preciso muito mais apoio internacional do que aquele com que poderão contar.

Em todo caso, o julgamento é um começo. Antes punir somente alguns culpados do que premiar a todos. Qualquer passo, mesmo modesto, que se dê no sentido de estabelecer a equiparação legal de todos os crimes de genocídio serve para aproximar a humanidade da cura da esquizofrenia moral que a acometeu desde que, com a aliança entre Roosevelt e Stalin, socialistas e comunistas adquiriram o direito de ser nazistas com boa consciência.

Recentemente, na Romênia, o ex-ministro das Relações Exteriores, o filósofo e meu querido amigo Andrei Pleshu, descobriu um fato que o atirou ao fundo da maior depressão: o mais respeitado líder democrático do país e ex-grão-mestre da Maçonaria, o senador Dan Lazarescu, tinha sido, em segredo, colaborador da polícia secreta comunista; seus relatórios haviam enviado à prisão não somente vários de seus companheiros maçons (a Maçonaria romena era inimiga declarada do regime), mas também diversos membros de outras facções dissidentes.

Cortando na própria carne — pois Lazarescu era pessoa de sua estima e admiração — Pleshu divulgou a descoberta. Lazarescu foi expulso do Senado e da Maçonaria, aos oitenta e tantos anos. A Romênia estava mortalmente triste mas muito mais saudável. Há muitos outros parceiros do ditador Ceaucescu espalhados na alta sociedade romena. Mas o desmascaramento de um só dentre eles ajuda, pelo menos, a impedir que a força do esquecimento transforme, por decurso de prazo, a injustiça em justiça.

Esconde-esconde

Olavo de Carvalho


Época, 4 de agosto de 2001

No jogo da política nacional, dizer a verdade é proibido

Quando um nacionalista defende seu país contra a Nova Ordem Mundial, ele luta por uma coisa que já existe contra outra que está apenas em via de existir, ou que só existe pela metade. Defende, portanto, como Edmund Burke, o passado certo contra o futuro hipotético. Nada mais lógico do que, nesse empenho, ele apegar-se aos valores e tradições que fundamentam a identidade nacional e buscar demonstrar que, acima e independentemente de toda promessa de um paraíso globalista, eles merecem sobreviver.

É isso o que fazem os adversários americanos da Nova Ordem Mundial. Argumentam que os Estados Unidos são uma república e não um império, que o globalismo coloca o país sob o jugo de umas quantas empresas monopolistas, que a nova civilização que se anuncia em escala planetária é a antítese dos valores judaico-cristãos que formaram a nação americana.

O que os revolta, sobretudo, é a nova educação pública, que, em vez de ensinar literatura, ciência, História e religião como antigamente, só se ocupa de incutir slogans globalistas politicamente corretos na cabeça das crianças: já não é educação, é engenharia comportamental. A maioria desses nacionalistas votou em Bush júnior para não votar em Gore, o mundialismo encarnado, mas não perdoa a Bush pai ter transformado as escolas americanas em fábricas de cidadãozinhos globais. O nacionalismo americano, como a maioria dos nacionalismos, é de direita.

No Brasil, porém, não existindo direita ideológica, só fisiológica, a apologia do globalismo foi incumbida de representar ad hoc o papel de direitismo, enquanto o discurso nacionalista era assumido pela esquerda. O resultado é um imbróglio ideológico sem mais tamanho. Pois a direita, ao mesmo tempo que professa da boca para fora os valores tradicionais e religiosos associados ao passado nacional, aposta numa Nova Ordem Mundial que flagrantemente os destrói. E a esquerda, ao mesmo tempo que combate essa Nova Ordem na esfera econômica, luta para implantar na educação as ideologias globalistas do multiculturalismo, da affirmative action, do feminismo e do movimento gay, diluidoras das tradições nacionais. Não se trata, enfim, de uma luta pró e contra a Nova Ordem Mundial, mas de uma pura disputa de lances no leilão da identidade nacional.

Nessa dupla hipocrisia, a da esquerda é mais inteligente. Pois seu nacionalismo é mesmo de fachada e sua oposição à Nova Ordem Mundial é propositadamente dúbia: combate as empresas globais ao mesmo tempo que luta para dar mais poder aos organismos internacionais e à rede mundial de ONGs, que é a multinacional da comedeira de subsídios estatais.

Os direitistas, por seu lado, aderiram a um globalismo fácil por pura preguiça mental, vendo nele o pretexto de um modernismo cor-de-rosa para apregoar o “fim das ideologias”. Julgavam que, com esse discurso, esvaziariam o ideário da esquerda. Esvaziaram foi o seu próprio, descaracterizando-se ideologicamente e entregando à esquerda, de mão beijada, o monopólio da circulação de opiniões. O duplo engano, portanto, não é simétrico. A direita engana-se a si mesma fazendo de conta que engana o adversário. A esquerda consente em fingir que se engana a si mesma, para mais facilmente enganar o adversário e o público.

A vantagem da esquerda nesse jogo é nítida, mas, qualquer que seja o resultado final, o preço da aposta, de ambos os lados, terá sido o rebaixamento do nível de consciência da população. Pois é um jogo de esconde-esconde, no qual a única coisa que não vale é dizer a verdade.

PS.: No artigo da edição 166, esqueci dois detalhes importantes. Primeiro: o livro em que Mortimer J. Adler expõe as técnicas da educação liberal tem edição brasileira – Como Ler um Livro, da Editora UniverCidade. Segundo: um de nossos maiores educadores, dom Lourenço de Almeida Prado, é adepto e praticante dessas técnicas, tendo-as usado com seus alunos no Colégio de São Bento do Rio de Janeiro, com grande sucesso.

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