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Fracasso memorável

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 13 de setembro de 2001

A Conferência de Durban foi uma farsa e uma armadilha. Seu fracasso foi a coisa mais lógica, mais justa e mais saudável que aconteceu na política internacional nos últimos anos.

A Conferência jamais teve o propósito honesto de lutar contra o racismo e a discriminação, mas apenas o de enaltecer as comunidades oportunisticamente favorecidas pela esquerda internacional, ao mesmo tempo que se acumpliciava, mediante um silêncio criminoso, a perseguições e violências sofridas por grupos politicamente inconvenientes.

Não falo nem dos religiosos cristãos e budistas pelo contínuo genocídio chinês e vietnamita ao qual a Conferência fez vista grossa. O fato mesmo de se escolher por sede do encontro a África do Sul já foi de um cinismo sem par. Ali o “apartheid” jamais terminou. Só mudou de cor. Os fazendeiros bôers estão sendo liquidados às pencas pelas tropas paramilitares instigadas pelo governo pró-comunista do sr. Mbeki. 1118 já tinham morrido até a semana passada, sem que uma única voz se erguesse no plenário para protestar contra essa “limpeza étnica”.

Quanto aos judeus, são obviamente inocentes da acusação de racismo. Estão pagando apenas pela sua burrice. Quantos intelectuais judeus, durante décadas, desprezando o Ocidente que os amava e acolhia, não preferiam ajudar aqueles que odiavam, em doses iguais, Israel e o Ocidente, Moisés e Cristo? Pois tiveram agora uma amostra da gratidão de seus protegidos.

Mas igualmente loucos são aqueles muçulmanos que, no imediatismo do ódio anti-israelita e anti-americano, se fazem aliados de quem ainda ontem os fuzilava, aos milhares, na Rússia e na China.

Nada no mundo justifica que os filhos de Abraão, para guerrear-se uns aos outros seja lá pelo motivo que for, se aliem aos filhos da mentira. Esse pecado, que já custou caro aos cristãos, começa a custar caro aos judeus. E não sou eu quem diz que amanhã custará caro aos muçulmanos. É a voz do profeta. Maomé disse: “Se vossos antecessores (os judeus e os cristãos) se atirarem num buraco de serpente, ireis logo atrás deles.”

Quem garante a esses muçulmanos de hoje, tão inflamados de retórica anti-israelense, que amanhã uma nova declaração do governo global, sob o pretexto de proteger mulheres ou “gays”, não exporá o Islam ao escárnio do mundo, como hoje faz com Israel sob o pretexto de proteger palestinos?

Todas essas contradições latentes, sufocadas sob o falatório do dia, o fracasso da Conferência de Durban traz repentinamente à luz da consciência.

Mais memorável ainda ele é por iluminar o conflito entre o globalismo e o interesse nacional americano, conflito que a propaganda esquerdista tem escamoteado mediante o artifício de jogar sobre os EUA a culpa de todos os malefícios da Nova Ordem Mundial.Como ressaltou o comentarista Henry Lamb em sua coluna no World Net Daily, “o que a comunidade internacional realmente quer é que os Estados Unidos sejam colocados sob o controle de uma autoridade internacional… Tal será a ‘aldeia global’, com as Nações Unidas servindo de administração da aldeia. Os EUA já cederam à ONU mais soberania do que a Constituição americana permite”.

Que isso alerte, enquanto é tempo, aqueles nacionalistas brasileiros “enragés”, que, pensando atingir a máquina globalista que nos oprime, atiram pedras nos EUA.

PS Este artigo estava pronto quando sucederam os ataques terroristas de terça-feira. Decidi mantê-lo porque ele esclarece algo do quadro geral que preparou a tragédia. O detalhe mais elucidativo a acrescentar é o seguinte: Antes de o último tijolo chegar ao chão, a “intelligentzia” globalista já começava a pressionar os EUA para que não reagissem, para que fossem bonzinhos e aguardassem docilmente a decisão da “comunidade internacional”. Era a guerra psicológica que vinha sublinhar o ataque armado, aproveitando-se da zonzeira momentânea da vítima para induzi-la a desarmar-se mais um pouco.

Voltarei ao assunto.

 

Coelhos fantasmas

Olavo de Carvalho


O Globo, 8 de setembro de 2001

Dezesseis de dezembro de 1933 é uma data memorável para os devotos da epopéia socialista. Nesse dia, o agente búlgaro do Comintern, George Dimitrov, acusado falsamente de incendiar o Parlamento alemão, pronunciou ante o tribunal de Leipzig o célebre discurso que desmascarou o regime nazista como fachada do poder econômico, “a ditadura dos Krupp e dos Thyssen” (grandes grupos industriais alemães).

O episódio e o giro verbal que o condensa fixaram na memória da esquerda mundial a definição marxista do nazismo como regime da “direita”, o recurso totalitário adotado in extremis pela burguesia para sufocar a iminente revolução proletária.

Essa versão, de tão repetida, tornou-se um lugar-comum, um dogma da teologia mística socialista que, ao menos no Brasil, conserva toda a força da sua autoridade. Guardada no fundo do inconsciente, ela volta à tona de tempos em tempos, em livros escolares e artigos de jornal, sempre apresentada como um marco de referência inabalável, tão certo e confiável quanto a regularidade dos movimentos celestes ou o teorema de Pitágoras.

Não obstante, tudo nesse episódio é falso. Tudo. Da narrativa à interpretação, das premissas à conclusão, nada no mito Dimitrov corresponde à realidade, nem mesmo num sentido remoto e aproximativo do termo.

Talvez não haja exemplo mais nítido da compulsão irrefreável de mentir, que caracteriza a religião esquerdista e a mentalidade do seu clero.

Para começar, George Dimitrov não foi herói nenhum. Nem sequer correu perigo. Anunciada sua prisão iminente, ele e seus assessores Popov e Tanev, em vez de se esconder, sentaram-se num restaurante repleto de oficiais nazistas e tranqüilamente aguardaram a chegada da polícia. Eles sabiam, desde o início, que seriam inocentados e devolvidos intactos às autoridades soviéticas, que já tinham combinado tudo com o governo nazista.

A URSS e o III Reich estavam inaugurando então um programa de intensa colaboração subterrânea para a obtenção de dois tipos de vantagens mútuas.

De um lado, a Alemanha fornecia assistência técnica para a modernização do atrasado Exército Vermelho, em troca da permissão para dar aos oficiais alemães, em território soviético, o treinamento militar que o Tratado de Versalhes proibia em solo alemão. De outro lado, as duas ditaduras mais ferozes da Europa ajudavam uma à outra na liquidação de suas respectivas oposições internas, mediante troca de informações entre seus serviços de espionagem, intercâmbio de prisioneiros e, last not least , colaboração fraterna no homicídio de indesejáveis.

Tudo foi concebido por um dos mais próximos colaboradores de Stalin, Karl Radek. Para encobrir a delicada e perigosa manobra, Radek criou uma vasta operação de despistamento: uma campanha de antinazismo verbal, sob a direção do gênio comunista da propaganda, Willi Münzenberg, um artista perto do qual o dr. Goebbels não passava de um amador caipira. Para o espetáculo foram cooptadas dúzias de celebridades do show business e das letras, que, como geralmente acontece com essas criaturas, se deixavam levar pela aparência e não tinham a menor idéia da sórdida artimanha com que colaboravam. O processo farsesco em Leipzig foi um episódio da campanha, que logo formou um comitê pela libertação de Dimitrov, encabeçado com grande alarde por André Gide e André Malraux. A farsa aí chegou ao cúmulo do requinte. Estimulados por insinuações vindas do governo alemão, os dois acadêmicos partiram de trem, entre fanfarras, para uma entrevista com o ministro da Propaganda do Reich. Goebbels nem sequer os recebeu, porque o único propósito de atraí-los à Alemanha era um jogo de cena para agitar o meio parisiense. De fato, nada havia a reivindicar em Berlim, onde a libertação de Dimitrov e seu retorno à URSS já eram favas contadas desde o início, mas Gide e Malraux voltaram a Paris sem se dar conta de que tinham servido de fantoches no teatrinho de Goebbels e Radek.

Dimitrov, aureolado das glórias de sua performance , foi inocentado, retornou à URSS e recebeu uma bela promoção, enquanto Popov e Tanev, os homens que sabiam demais, foram jogados para o fundo do Gulag e desapareceram para sempre…

A definição do nazismo como braço armado dos capitalistas, enunciada pelo ator principal no momento culminante do espetáculo, não foi jamais nem o próprio Dimitrov imaginou que fosse uma tradução da realidade. Mas também não foi apenas uma fala entre outras no script geral da farsa. Foi um momento especial, a pièce de résistance na programação da camuflagem. Não houve talvez, nos anais da oratória forense, declaração mais cínica e mentirosa. Pois Dimitrov sabia perfeitamente que aqueles capitalistas que ele acusava, personificações do complexo industrial-militar alemão, sustentáculos do Partido Nazista, eram os mesmos que, naquele preciso instante, ajudavam a consolidar o Estado soviético mediante a assistência técnica e a exportação de equipamentos indispensáveis ao Exército Vermelho. O rearmamento da URSS e o show de Dimitrov no tribunal tinham o mesmo patrocinador do Partido Nazista: ou seja, a “ditadura dos Krupp e dos Thyssen”.

É verdade que, enquanto isso, comunistas eram espancados e mortos nas ruas pelos militantes nazistas. Mas isso fazia parte do show e parecia a Stalin e Radek um preço módico a pagar em troca da ajuda militar e econômica, das preciosas informações da Gestapo e da liquidação de comunistas dissidentes que se encontrassem ao alcance da polícia alemã. Tanto que, no auge da tagarelice antinazista em Paris, Radek, em carta a um amigo íntimo, confessava: “Só um idiota pode imaginar que vamos romper com os alemães. Ninguém nos daria o que eles nos dão.”

Por isso, caro leitor, quando você ouvir pela milionésima vez algum doutorzinho brasileiro, num jornal ou numa cátedra, teorizar sobre o nazismo como regime “de direita”, criado pelos capitalistas para liquidar os comunistas, saiba que isso não demonstra senão a incalculável miséria mental da intelectualidade de um país periférico, onde, passados quase setenta anos, uma mentirinha safada, concebida como pura camuflagem para ocultar a aliança macabra de duas tiranias genocidas, ainda é cultuada como teoria cientificamente respeitável, digna de constar de manuais universitários e de ser repassada às novas gerações nas escolas. Chamo a esse fenômeno “servilismo residual”: a obediência continuada e mecânica dos idiotas a uma ordem que já foi cancelada faz décadas. Radek e Münzenberg sempre tiveram o maior desprezo pelos intelectuais que repetiam às tontas qualquer bobagem que o Comintern lhes soprasse nos ouvidos. A propagação de mentiras entre essa gentinha pretensiosa e frívola era tão fácil que Münzenberg a denominava “criação de coelhos”. O que ele jamais pôde imaginar foi que, num remoto país do Terceiro Mundo, os coelhos, depois de mortos, continuariam a reproduzir-se, tão prolificamente, por tanto tempo…

 

A hora do lobo

Olavo de Carvalho

Época, 8 de setembro de 2001

No lusco-fusco moral, o país vacila e teme

Poucas imagens me impressionaram tanto, nos últimos tempos, quanto a de Silvio Santos, prisioneiro em sua própria casa, sorrindo diante das câmeras. Todo um condensado de tensões contraditórias transparecia nessa máscara enigmática: o ríctus de pavor do condenado que antevê o próprio cadáver, a ânsia de camuflar o sofrimento sob a figura estereotipada do eterno garoto jovial dos programas de auditório, a revolta impotente de um cidadão e pai que, vítima da desordem e da maldade, tenta dissipar a má impressão deixada por uma filha afetada de síndrome de Estocolmo, que dois dias antes glamourizava seus algozes diante do público estupefato.

Essa imagem resume, para mim, a situação existencial de nossa classe dominante acuada, inerme, desorientada, prendendo entre os dentes uma prótese de sorriso num último e desesperado esforço de persuadir-se de que está tudo sob controle.

O Brasil, na verdade, já não tem classe dominante nenhuma. Está numa transição entre duas classes dominantes. A antiga, de empresários e políticos tradicionais, já não domina nada. A nova, de intelectuais enragés, ainda não se sente segura o bastante para agarrar de vez a máquina cujo domínio ambicionou e cuja posse, longamente negada, agora se lhe oferece diante dos olhos como uma promessa e um risco.

Nesse interregno, o país agita-se num vazio atormentado e sombrio, o lusco-fusco das transições revolucionárias. É a hora do lobo, o momento indeciso entre uma longa noite de espreita e uma aurora sangrenta. A hora em que o predador esfaimado, ansioso para saltar sobre suas vítimas, hesita ainda em sair da toca porque não tem a certeza de que vai caçar ou ser caçado.

É natural que a essa nebulosa indefinição do poder correspondam, na esfera moral, psicológica e até lingüística, o completo embotamento da sensibilidade, a dissolução de todos os critérios, a abolição do certo e do errado. Também é natural que cada um busque camuflar sua incerteza e perplexidade mediante afetações de indignação moral inflamada, ersatzretórico da lucidez moral. A moral é função da inteligência, da escolha racional. Quando essa capacidade desaparece, a ênfase verbal histriônica do moralismo acusatório é a última tábua de salvação para a alma que naufraga.

O que não é natural de maneira alguma é que os autores e inspiradores da situação, os promotores da mutação revolucionária, nem de longe reconheçam nela o resultado de suas próprias ações, mas se finjam e até se creiam observadores isentos, capazes de enunciar diagnósticos e prescrever remédios.

Chego a duvidar de meus olhos quando vejo um desses apóstolos da liberação da delinqüência, algum velho leitor e discípulo devoto dos teóricos do potencial revolucionário do banditismo, Marcuse e Hobsbawm, aparecer em programas de TV para analisar, com ares professorais de neutralidade científica, os efeitos de sua longa militância em favor da desordem e atribuí-los, com o ar mais inocente do mundo, à maldade do capitalismo. É o lobo convocado a dar seu parecer médico sobre a saúde das ovelhas.

Entre a hipótese do fingimento cínico e a da dupla sinceridade de uma cisão esquizofrênica, fico com ambas. O sujeito começa fingindo, depois ele todo se transmuta em fingimento. “Mentir em prol da verdade”, afinal, é um clássico lema comunista. Não há como praticá-lo sem acabar apagando todas as distinções entre o sincerismo cândido e a farsa maquiavélica. No fim o cidadão se sente tanto mais bondoso e confiável quanto menos sabe discernir o bem do mal.

Mas como impedir que, na nebulização geral dos critérios, o encargo do guiamento moral da nação acabe ficando nas mãos dos homens mais desorientados se justamente eles são os únicos que estão desorientados o bastante para se sentir orientados?

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