A Nova Era e a Revolução Cultural: Apêndice II

A Nova Era e a Revolução Cultural

Fritjoj Capra & Antonio Gramsci

3a edição, revista e aumentada.

Apêndice II.

O Brasil do PT

A entrevista do teórico do PT, Marco Aurélio Garcia, no Jornal da Tarde de 12 de janeiro, mostra que, por trás de uma tranquilizante fachada moderninha, esse partido não tem nada a propor senão o bom e velho comunismo.

  1. Segundo o entrevistado, o governo do PT não será socialista. Os ingênuos tomam esta promessa como uma garantia. Mas, prossegue Marco Aurélio, esse governo será uma “democracia popular” e constituirá “um aperfeiçoamento do capitalismo” com vistas a “um horizonte socialista” — um horizonte vago e indistinto o bastante para não alarmar o eleitorado. O que o eleitorado, novo e inculto, ignora por completo é que aperfeiçoar o capitalismo para chegar ao socialismo não é nenhuma proposta nova, mas sim a única estratégia de governo comunista que já existiu e a única que poderia existir, já que, segundo Marx, o socialismo não pode ser implantado antes que o capitalismo desenvolva suas potencialidades até o esgotamento. A função do governo de transição, “democrático-popular”, é acelerar esse esgotamento. Na Rússia, essa fase intermediária chamou-se NEP, Nova Política Econômica, implantada por Lênin logo após a tomada do poder pelos comunistas. Se o próprio Lênin, subindo ao poder no bojo de uma revolução armada, não implantou logo o comunismo, e sim apenas um “capitalismo aperfeiçoado”, por que o PT haveria de fazer mais, levado ao poder pela via gradual e pacífica do gramscismo?
  2. Marco Aurélio Garcia, prosseguindo na linha tranquilizante, assegura que os empresários nada perderão e terão tudo a ganhar no Brasil petista: “Se queremos desenvolver um grande mercado de massas, é claro que grande parte da burguesia vai tirar proveito disso.” Mas é exatamente o que dizia Lênin: não se pode fazer a transição para o socialismo sem que, na passagem, a burguesia ganhe um bocado de dinheiro com o incremento dos negócios. Nisto consistiu precisamente a NEP. Mas não se pense que os comunistas fiquem tristes com a súbita prosperidade dos seus desafetos. Ao contrário: acenando com a promessa de ganhos rápidos, o governo comunista faz trabalhar em favor da revolução a cobiça imediatista dos burgueses, cumprindo a profecia de Lênin: “A burguesia tece a corda com que será enforcada.” O truque é simples: com o progresso rápido do capitalismo, cresce também rapidamente o proletariado, base de apoio do governo comunista. Tão logo esta base esteja firme para sustentar o governo sem a ajuda dos burgueses, o governo puxa o laço. Em seguida os burgueses mortos ou banidos são substituídos em suas funções dirigentes por uma nova classe de burocratas de origem proletária ao menos nominal.
  3. Garcia diz que o PT quer um “Estado forte”, dotado de “mecanismos de controle do Parlamento, da Justiça, do Tribunal de Contas e das estatais”. Mas que diabo é isto senão o totalitarismo mais descarado? Nas democracias, a autonomia dos três poderes tem sido um mecanismo confiável e suficiente para o controle do poder. O que o PT advoga é que dois desses poderes sejam controlados por um terceiro, o Executivo, desde o momento em que este caia nas mãos do sr. Luís Inácio Lula da Silva. Nesta hipótese, dará na mesma que o Executivo policie os outros dois poderes diretamente, numa ditadura ostensiva, ou que o faça por intermédio de organizações autonomeadas representantes da sociedade civil — sindicatos, ONGs, grupos de intelectuais, grêmios estudantis — e controladas, por sua vez, pela facção política dominante, isto é, pelo PT: em ambos os casos, o que teremos será o crescimento hipertrófico do poder e seu absoluto descontrole.
  4. Interrogado sobre o destino que o governo petista dará às Forças Armadas, Garcia responde, com toda a clareza de quem diz exatamente o que pensa: mudar a Constituição, para que as Forças Armadas deixem de ter, entre suas atribuições, a de combater inimigos internos, e passem a se incumbir exclusivamente da defesa das fronteiras nacionais. Ora, mandadas para a fronteira, desligadas do combate a inimigos internos, as Forças Armadas estarão duplamente impedidas — pela obrigação constitucional e pela distância — de mover um só dedo contra o crime organizado, que, sob aplausos de uma certa intelectualidade esquerdista, já domina um Estado da Federação. Se, ampliando o que hoje acontece no Rio, uma aliança entre políticos e delinquentes atear fogo ao país inteiro, as Forças Armadas nada poderão fazer contra isso, porque estarão, fiéis ao dever constitucional, aquarteladas num cafundó amazônico, velando contra a iminente invasão boliviana ou talvez dando nos marinesuma surra de fazer inveja ao vietcongue.

Mas será estranho que um dirigente petista alimente esse projeto insano, quando seu partido também tem, entre seus principais quadros teóricos, um tal sr. César Benjamin, biógrafo-apologista do fundador do Comando Vermelho? Recordemos: escrito com a ajuda deste teórico petista, o livro em que o quadrilheiro William Lima da Silva faz a apologia do crime foi publicado pela Editora Vozes, da esquerda católica, e lançado, com noite de autógrafos e muita badalação, em cerimônia realizada na sede da ABI em 199l. Apesar do que dispõe o Art. 287 do Código Penal, ninguém foi processado. Alguns vêem em fatos como esse perigosos sinais de ligações entre as esquerdas e o crime organizado. Se há ou não aí uma aliança política subterrânea, é algo que só o tempo dirá. Mas que as esquerdas estão ligadas ao Comando Vermelho pelo passado comum e por uma profunda afinidade “espiritual” baseada no culto dos mesmos mitos e dos mesmos rancores, é coisa que está fora de dúvida. E como os senhores do crime não haveriam de sentir essa afinidade como um verdadeiro reconforto, diante da promessa petista de tirar do seu caminho o único obstáculo que ainda pode inibir suas ambições?

A proposta petista de aumentar a dotação orçamentaria das Forças Armadas em troca de retirar delas a responsabilidade pelo combate ao inimigo interno é puro suborno, em que o PT veste implicitamente a carapuça de inimigo interno. Se ainda existe consciência estratégica entre os militares, a proposta indecente será repelida.

  1. Enfim, se Marco Aurélio Garcia procura aplacar o temor ante o espectro comunista dizendo que o regime petista não será socialismo e sim “democracia popular”, também nisto não há novidade alguma: todosos regimes comunistas se intitulavam “democracias populares”.

O PT, seguindo a lição de Hitler, não se dá sequer o trabalho de ocultar o que pretende fazer: anuncia seus planos abertamente, contando com a certeza de que o wishfulthinking popular dará às suas palavras um sentido atenuado e inocente, sem enxergar qualquer periculosidade mesmo nas ameaças mais explícitas. Afinal, quanto mais assoberbado de males se encontra um povo, mais ansioso fica de crer em alguma coisa e menos disposto a encarar com realismo a iminência de males ainda maiores. Nessas horas, a maneira mais segura de ocultar uma intenção maligna é proclamá-la cinicamente, para que, tomada como inverossímil em seu sentido literal, seja interpretada metaforicamente e aceita por todos com aquela benevolência compulsiva que nasce do medo de ter medo. Quando Hitler prometeu dar um fim aos judeus, também foi interpretado em sentido metafórico.

A predisposição da opinião pública para não enxergar o risco evidente nasce, por um lado, da própria hegemonia que as ideologias de esquerda exercem sobre o nosso panorama cultural, impondo viseiras psicológicas mesmo a pessoas que, politicamente, divergem da esquerda. A política é apenas uma superfície da vida social, e de nada adianta divergir na superfície se, no fundo — nas convicções morais, nos sentimentos básicos, nas atitudes vitais elementares — copiamos servilmente o figurino mental do adversário.

Nasce, por outro lado, da ilusão de que o comunismo está morto. É um excesso de ingenuidade — ou, talvez, medo de ter medo — supor que o fracasso do comunismo no Leste europeu liquidou de vez as ambições dos comunistas em toda parte. O ressentimento move montanhas, dizia Nietzsche. Particularmente no Brasil, é muito profunda nas esquerdas a aspiração mítica de alcançar uma vitória local que, pelo seu próprio caráter inesperado e tardio, possa resgatar a honra do movimento comunista humilhado em todo o mundo. Permitir que o PT realize seus planos de “democracia popular”, sob o pretexto de que o comunismo é um cavalo morto, é arriscar-se a um coice que provará a vitalidade do defunto.

Ademais, o movimento das idéias no Brasil não acompanhapari passu a evolução do mundo, mas fica sempre atrás. Em 1930, quando o positivismo de Augusto Comte já era peça de museu no seu país de origem, uma revolução tomou o poder no Brasil inspirada no modelo positivista do Estado. O espiritismo, moda européia que morreu por volta da Primeira Guerra sem nunca mais reencarnar, ainda é no Brasil quase uma religião oficial. Nossos intelectuais ainda estão empenhados no combate ao lusitanismo em literatura, quase um século depois de rompido o intercâmbio literário entre Brasil e Portugal. As velhas religiões africanas, que os negros de todo o mundo vão abandonando para aderir ao islamismo, aqui vão conquistando novas massas de crentes entre os brancos. Enfim, o tempo nesta parte do mundo corre ao contrário. Por que o comunismo, morto ou moribundo em toda parte, não poderá ressurgir neste país, fiel ao atraso crônico do nosso calendário mental? Pelo menos é o que nos promete a entrevista de Marco Aurélio Garcia: se depender dele, não falharemos em nossa missão cósmica de coletores do lixo refugado pela História.

Homens de formação arraigadamente marxista, insensíveis durante toda uma vida a quaisquer outras correntes de idéias, simplesmente não podem, no breve prazo decorrido desde a queda do Muro de Berlim, ter feito uma revisão profunda e séria de suas convicções. Mudanças, se houve, foram epidérmicas, para não dizer simuladas. A força atrativa do messianismo comunista não acabou: refluiu para a obscuridade, de onde, vitalizada pelo apelo nostálgico e pela ânsia de um renouveau transfigurador, está pronta a ressurgir ao menor sinal de uma oportunidade. Declarações improvisadas de arrependimento nada significam, sobretudo em homens que, habituados por uma praxe do cerimonial comunista a utilizar-se de rituais de “autocrítica” como instrumentos de sobrevivência política, acabaram por assimilar profundamente o vício da linguagem dúplice, a ponto de torná-la uma segunda natureza. Um século de história do comunismo prova que nada iguala a capacidade da esquerda de tapar os próprios ouvidos à verdade, senão a sua habilidade de desviar dela os olhos alheios. A pressa mesma com que alguns próceres comunistas compareceram ante as câmeras de TV para declarar a falência do comunismo é suspeita, uma vez que em nenhum deles a desilusão foi profunda a ponto de fazê-lo desejar abandonar a política. Do dia para a noite, desvestiram a camisa soviética, vestiram um modelito novo, e sem mais delonga reapareceram, prontos para outra, com o maior vigor e animação, discursando com aquela certeza, com aquela segurança de quem jamais tivesse sido desmentido pelos fatos. Acredite nessa gente quem quiser.

Da minha parte, não duvido de todos os comunistas. Acredito em Antonio Gramsci, quando diz que o Partido é o novo “Príncipe” de Maquiavel, e acredito em Bertolt Brecht, quando diz que para um comunista a verdade e a mentira são apenas instrumentos, ambos igualmente úteis à prática da única virtude que conta, que é a de lutar pelo comunismo.

 

Nota

Aos que, lido este apêndice, enxergarem no autor um hidrófobo antipetista, advirto que votei em Lula para presidente e o faria de novo, com prazer, se ele tomasse as seguintes providências:

  1. Banir do seu partido o elenco de vedettesintelectuais que, formadas numa atmosfera marxista, e apegadas a ela como um bebê à saia da mãe, insistem em manter aprisionado nela o movimento socialista que anseia por novas idéias. Exorcizar de vez os fantasmas de Marx, Lênin, Débray, Althusser, Gramsci e tutti quanti, e permitir que a idéia socialista cresça livre de gurus e totens. Quando Lula diz que nossas elites viveram “com os olhos voltados para a França e a bunda voltada para o Brasil”, não percebe ele que isso é uma descrição exata da elite intelectual petista, e esquerdista em geral?
  2. Reprimir o uso de táticas de movimento clandestino e revolucionário, que são indecentes num partido que professa conviver democraticamente com outros partidos num Estado de direito. Infiltração, espionagem, delação, boicote moral podem ser necessários e inevitáveis a um movimento de oposição que queira sobreviver numa ditadura. Em regime de liberdade, são práticas intoleráveis, principalmente em políticos que posam de professores de ética. Quando os apóstolos da ética citam como um exemplo para o Brasil o que os americanos fizeram com Nixon após o caso Watergate, esquecem de dizer que Nixon não caiu por causa de um desvio de verbas, mas por causa da prática de espionagem. Se a corrupção é um crime, a espionagem é um ato de guerra, que destrói, pela base, o edifício democrático.

Lula é um homem decente e, como disse Francisco Weffort, é alguém maior do que o seu partido. Se ele se utilizar da tremenda força do seu prestígio para exterminar esses dois vícios, o marxismo e o clandestinismo, o Partido dos Trabalhadores se transformará naquilo que seu nome promete, deixando de ser apenas o partido da nostalgia comunista.

Observações finais

 

A Nova Era e a Revolução Cultural: Apêndice I

A Nova Era e a Revolução Cultural

Fritjoj Capra & Antonio Gramsci

3a edição, revista e aumentada.

Apêndice I.

As esquerdas e o crime organizado

Comando Vermelho. A História Secreta do Crime Organizado, de Carlos Amorim, é um trabalho de valor excepcional, cuja leitura se recomenda a todos os brasileiros que se preocupem com o futuro deste país. Futuro do qual se pode ter um vislumbre pelas palavras de William Lima da Silva, o “Professor”, fundador e guru do Comando Vermelho, citadas à p. 255:

“Conseguimos aquilo que a guerrilha não conseguiu: o apoio da população carente. Vou aos morros e vejo crianças com disposição, fumando e vendendo baseado. Futuramente, elas serão três milhões de adolescentes, que matarão vocês [ a polícia ] nas esquinas. Já pensou o que serão três milhões de adolescentes e dez milhões de desempregados em armas?”

A quem entenda isso como mera expressão de um delírio megalômano, o livro de Carlos Amorim mostra que a sinistra profecia já está em curso de realização: o Comando Vermelho não apenas domina dois quintos do território do Grande Rio, desfrutando aí o monopólio dos sequestros, do comércio de carros roubados, do tráfico de drogas, mas exerce também nessa área funções de governo, por meio do terror alternado com lisonjas paternalistas, e tem ainda a liderança no contrabando de armas pesadas, sendo hoje uma organização mais equipada do que a polícia ou mesmo do que as guarnições locais do Exército. As autoridades reconhecem que o poder da máfia dos morros é absolutamente incontrolável, e ela prossegue, de vitória em vitória, atordoando a polícia, humilhando os governantes, e atribuindo às suas operações criminosas, para cúmulo de descaramento, o sentido épico de uma luta pela libertação dos oprimidos.

Não vou aqui resumir o livro, pois pretendo que o leiam. Nas páginas que se seguem, concentrarei minhas observações antes no que me parece o seu único ponto fraco. Não farei isto para depreciar os méritos da obra, que são elevados, mas justamente para os realçar; pois essa lacuna, que está no diagnóstico das causas e origens profundas do crime organizado, só poderia ser preenchida por uma investigação que iria muito além do seu escopo. O autor, de fato, alude a algumas causas prováveis, mas centraliza sua atenção no fenômeno do Comando Vermelho como tal, sem estender seu exame ao conjunto dos fatores históricos que cercaram, propiciaram e finalmente determinaram o seu surgimento. Não se trata portanto de assinalar aqui algum defeito do livro, mas de sugerir investigações suplementares que dariam matéria para outro livro, ou vários.

Uma certeza o livro de Amorim parece deixar definitivamente assentada: o Comando Vermelho nasceu da convivência entre criminosos comuns e ativistas políticos dentro do presídio da Ilha Grande, entre os anos de 1969 a 1978. Ali os militantes esquerdistas ensinaram aos bandidos as técnicas de guerrilha que eles viriam a usar em suas operações criminosas e os princípios de organização político-militar sobre os quais viria a estruturar-se o Comando Vermelho, bem como a fraseologia revolucionária com que o bando hoje glamuriza suas façanhas.

O que não fica claro de maneira alguma é o grau e a natureza da participação das organizações de esquerda na criação do Comando Vermelho, a sua responsabilidade histórica pela eclosão do fenômeno que hoje aterroriza a população carioca e põe em risco a sobrevivência da jovem e frágil democracia brasileira.

Quanto a esse ponto, o autor se contradiz: sua narrativa dos fatos aponta num sentido, suas opiniões no sentido contrário. Eis uma dessas opiniões:

“Os revolucionários nunca pretenderam ensinar criminosos a fazer guerrilhas. Em mais de uma década de pesquisas, nunca encontrei o menor indício de que houvesse uma intenção — menos ainda uma estratégia — para envolver o crime na luta de classes.”

Logo, na interpretação do autor, os ensinamentos de guerrilha teriam sido passados aos bandidos de uma maneira natural, espontânea, impremeditada, ao sabor de contatos fortuitos entre indivíduos, e sem qualquer responsabilidade das organizações esquerdistas.

Mas os fatos narrados pelo próprio Amorim desmentem frontalmente essa interpretação. Sem chegarem a dar respaldo à tese policial que vê no Comando Vermelho uma extensão ou um recrudescimento da velha guerrilha revolucionária, eles indicam, no entanto, que o que se passou na Ilha Grande foi algo de bem mais comprometedor do que simples conversas casuais. Poderosos interesses vetam, hoje, uma investigação mais profunda desses episódios. Os prisioneiros políticos de então tornaram-se gente importante, deputados, ministros, procuradores, com poderes suficientes para dissuadir qualquer olhar curioso que se lance sobre um passado que eles preferem manter protegido entre névoas. Não duvido que a ambiguidade do próprio Amorim tenha brotado do prudente desejo de evitar um confronto com essa gente, cujos partidários e simpatizantes exercem uma completa hegemonia sobre o seu ambiente de trabalho: as redações de jornais. Da minha parte, porém, nada espero deles. No tempo em que eram perseguidos políticos, ajudei-os o quanto pude, escondendo foragidos e armas, redigindo e distribuindo propaganda contra a ditadura, porque via em seus rostos o emblema da verdade, hostilizada pela mentira oficial. Hoje, que estão a um passo do poder, já enxergo em seu semblante a máscara da hipocrisia, que anuncia para breve, neste país, um novo império da falsidade. Todo sacerdócio converte-se, mais cedo ou mais tarde, num culto de si mesmo: tendo outrora servido à verdade, eles hoje tomam o lugar dela no altar de um culto degenerado

Investigar o sentido dos episódios da Ilha Grande é romper um tabu, é violar o preceito consagrado segundo o qual a maldade, a baixeza, a hipocrisia são monopólio da direita.

A convivência entre presos políticos e bandidos comuns é antiga no Brasil, reconhece Amorim. Vem desde 1917, com as primeiras prisões de agitadores sindicalistas e anarquistas. Intensificou-se durante e após a rebelião comunista de 1935. Desde então foi constante e sistemático o esforço dos comunistas para doutrinar criminosos e enquadrá-los na luta política. Um dos líderes de 35, Gregório Bezerra, conta em suas memórias como “transformou guardas penitenciários e bandidos em militantes comunistas”. Durante os anos do Estado Novo, conta Amorim, “o contato com intelectuais, militares radicais, políticos e sindicalistas fez a cabeça de punguistas e escroques. A partir dessa convivência, muitos homens deixaram para trás as carreiras no crime e optaram pela militância revolucionária”.

Nada disso no entanto provocou a menor alteração de conjunto no mundo do crime: “Nas ruas, o crime continuava o mesmo: avulso, violento, desorganizado. O fenômeno da conscientização e o surgimento do chamado crime organizado só vão aparecer na década de 70.”

Houve portanto aí a introdução de um fator novo, de uma diferença específica no tipo de influência exercido pelos militantes sobre os bandidos. Essa diferença residiu essencialmente no conteúdo das informações transmitidas: em vez de simples doutrinação ideológica, os bandidos receberam ensinamentos práticos, que puderam por em ação tão logo saíram da cadeia. Que ensinamentos foram esses?

Primeiro, princípios de organização, que incluíam desde a estrutura hierárquica e disciplinar do grupo armado até sistemas de comunicação em código.

Em seguida, técnicas de propaganda ou agitprop, que lhes permitiram transformar assaltos e sequestros em espetáculos de protesto — “propaganda armada”, no jargão esquerdista —, que ganham a simpatia ao menos parcial da população e da intelligentzia.

Terceiro, táticas de ação armada. Aqui a lista é grande. Dentre os procedimentos usados pela guerrilha e copiados pelo Comando Vermelho, pode-se destacar os seguintes:

1 – Realização de assaltos simultâneos em vários bancos, para desorientar a polícia.

2 – Com o mesmo objetivo, bombardear os postos policiais com dezenas de alarmes falsos, no dia dos assaltos planejados.

3 – Não sair para uma operação armada sem deixar montado um “posto médico” para atender os feridos ( que antes os bandidos deixavam à sua própria sorte, expondo-se à delação por vingança ).

4 – Em caso de emergência, invadir pequenas clínicas particulares selecionadas de antemão, obrigando os médicos a dar atendimento aos feridos.

5 – Planejamento e organização de sequestros.

6 – Designar para cada operação um “crítico”, que não participa da ação mas apenas observa e assinala os erros para aperfeiçoar a ação seguinte.

7 – Planejar as ações armadas com exatidão, de modo a obter no mínimo de tempo o máximo de rendimento com o mínimo derramamento de sangue. ( Hoje o Comando Vermelho consuma em quatro ou cinco minutos um assalto a banco. )

8 – Técnicas para o bando retirar-se do local da ação em tempo record, aproveitando-se da conformação das ruas, do congestionamento, etc., ou provocando deliberadamente acidentes de trânsito.

9 – Planejamento cuidadoso de todas as ações, segundo o princípio de Carlos Marighela: “Somos fortes onde o inimigo é fraco. Ou seja: onde não somos esperados.”

10 – Informação e contra-informação como base do planejamento.

11 – Sistema de “aparelhos” — casas compradas em pontos estratégicos da cidade, para ocultar fugitivos após as operações, guardar material bélico etc.

O quarto e último grupo de ensinamentos dizia respeito à seleção das melhores armas para cada tipo de operação, e ainda à fabricação de explosivos apropriados para o uso na guerrilha urbana, como coquetéis-molotov com uma fórmula especial preparada por estudantes de Química e “bombas de fragmentação com pregos acondicionados junto à pólvora e enxofre num tubo de PVC ou numa lata do tamanho de uma cerveja”.

O conjunto forma um curso completo de guerrilha urbana, apoiado ainda numa bibliografia especializada, que incluía O Pequeno Manual do Guerrilheiro Urbano, de Carlos Marighela, Guerra de Guerrilhas, de Ché Guevara, e A Revolução na Revolução, de Régis Débray, além de A Guerrilha Vista por Dentro, de Wilfred Burchett. Este último é apenas uma reportagem feita no Vietnã por um correspondente de guerra inglês; mas entre os militantes era tão prezado quanto as obras de guerrilheiros profissionais, e sua circulação chegou a ser proibida no Brasil durante os governos militares, porque “mostra como o vietcongue fabricava munição, inclusive com uma fórmula para se produzir pólvora caseira. Explica também como funcionava o sistema de túneis para a fuga dos comandos guerrilheiros, com iluminação a partir de geradores movidos a roda de bicicleta. O livro fala ainda dos códigos, do correio baseado em bilhetes entregues de mão em mão, de aldeia em aldeia. Um manual de guerra revolucionária que contém longas explanações de tática e estratégia. Enfim, dinamite pura”. Rematavam a bibliografia clássicos da literatura marxista — Marx, Lênin — e obras menores de doutrinação.

Todos esses ensinamentos foram depois levados à prática pelo Comando Vermelho, que demonstrou possuir até mesmo um domínio mais extenso deles do que as próprias organizações guerrilheiras: “O crime organizado foi muito além do que a luta armada tinha conseguido nos anos 70, tanto em matéria de infra-estrutura quanto na disciplina e organização internas”. Como bem resumiu o assaltante de bancos Vadinho ( Oswaldo da Silva Calil ), que viu tudo de perto na Ilha Grande, “os alunos passaram a professores”.

Amorim opina enfaticamente que “não houve intenção” de ensinar guerrilha aos bandidos, que a transmissão desses ensinamentos se deu de maneira “involuntária”, em resultado espontâneo do “convívio eventual nas cadeias”. Diante dos fatos narrados, é difícil acreditar nessa opinião, é difícil mesmo admitir que o próprio Amorim acredite nela. Mais sensato é vê-la como uma concessão verbal: tendo ousado divulgar fatos que são profundamente comprometedores para as esquerdas, Amorim preferiu deixar que a narrativa falasse por si, sem endossar pessoalmente a conclusão que ela impõe. Manha de repórter, que com muita prudência teme mais as línguas de seus colegas de ofício do que as balas do Comando Vermelho.

O que me faz interpretar as coisas desse modo é a desproporção entre a força da narrativa e a timidez dos argumentos em que Amorim sustenta sua opinião. Qualquer principiante do jornalismo sabe que a exposição dos fatos exerce sobre o leitor uma influência mais profunda do que a opinião expressa. A verdadeira intenção de um jornal está na sua maneira de selecionar e ordenar as notícias, e não no que ele afirma nos editoriais. As cabeças dos repórteres funcionam de modo análogo: inteligências antes narrativas do que analíticas, expressam-se mais plenamente contando os fatos do que alinhando argumentos.

O principal argumento que Amorim apresenta em defesa de sua tese é que, ao longo de doze anos, não encontrou indícios ou provas “de uma intenção, menos ainda de uma estratégia” no sentido de os militantes ensinarem guerrilha aos bandidos.

O argumento destrói-se a si mesmo. Em primeiro lugar, não existe prova de intenção, a não ser a lógica mesma do ato, pela qual das consequências podemos remontar às causas. Todo ato humano que não possa ser explicado pela mera acidentalidade pressupõe uma intenção, e todo acidente é, por definição, momentâneo: não existem acidentes continuados; a mera casualidade não se prolonga, inalterada e uniforme, ao longo dos anos, como um par de dados não prossegue dando seis e seis incansavelmente ao longo das rodadas. Qualquer ato reiterado é, por si mesmo, prova da sua intenção. Se um homem fica bêbado uma vez, duas vezes, pode ser sem intenção e por mero efeito acumulado dos tragos mal medidos; mas se quatro ou cinco vezes por semana o encontramos virando novamente o copo até trocar as pernas, será preciso alguma outra “prova” para certificar que ele teve intenção de se embriagar? Ora, a transmissão de ensinamentos de guerrilha prosseguiu, na Ilha Grande, por nada menos que nove anosQue mais será necessário para comprovar uma intenção?

Pode-se ver a coisa por um segundo ângulo. Uma intenção nada mais é do que a previsão de uma consequência, somada ao desejo de provocar essa consequência. Só podemos, portanto, supor ausência de intenção quando um homem não está em condições de prever as consequências de seu ato. Se um marido furioso desfere um tabefe na esposa e a manda para o hospital, podemos admitir que o brutamontes não mediu sua força; mas depois de uma longa série de internações da infeliz, devemos supor que ele ainda não avaliou corretamente a proporção entre o empuxe da porrada e suas consequências hospitalares, ou que ele teve a intenção de desencadear precisamente essas consequências? Quanto aos nossos guerrilheiros, a hipótese da ausência de intenção pressupõe que fossem incapazes de atinar com o uso que os discípulos fariam de seus ensinamentos. Se um deles, uma vez ou outra, desse com a língua nos dentes, poderia ser coincidência. Mas vários deles transmitindo informações seguidamente ao longo dos anos, sem jamais atinar com as consequências do que faziam, é mais do que a credulidade humana pode admitir.

Provas externas só são necessárias quando a lógica dos fatos não fala por si, quando nos fatos há algo de ambíguo que admite interpretações variantes, o que não é o caso. Mas Amorim absolve os guerrilheiros justamente com base na ausência desse tipo de provas. E acontece que mesmo estas não estão realmente ausentes. Querem ver?

Só existem no mundo três tipos de provas: materiais, documentais e testemunhais.

A prova material está lá: a presença dos livros, dos manuais de guerrilha nas mãos dos bandidos é prova de que alguém os entregou a eles. Entregar um livro comprova, manifestamente, o intuito de transmitir informações, e de fazê-lo de maneira mais completa do que se poderia em meras conversas de ocasião.

Os livros citados por Amorim eram obras raras, de tiragem limitada e circulação proibida, que só se encontravam, quando se encontravam, nas mãos de militantes diretamente envolvidos nas organizações da esquerda armada. O de Régis Débray circulou num volume impresso clandestinamente pela ala marighelista do PC, e o de Guevara era uma apostila mimeografada, de pouquíssimos exemplares. Mesmo o de Burchett ( Amorim escreve “Bulcher”, mas a grafia certa é Burchett ), que saiu por uma editora comercial ( Civilização Brasileira ), teve tiragem reduzida e logo foi apreendido, sobrando em circulação uns poucos exemplares que os militantes de esquerda disputavam a tapa. Não eram, enfim, livros de interesse geral, que se dessem a alguém para ler por mero passatempo, mas manuais de ensino técnico, dirigidos a um público especializado. Transmitir esses livros aos bandidosé algo mais do que manifestar uma intenção de ensinar guerrilha: é realizar essa intenção.

Quanto a provas documentais que atestassem uma decisão das organizações de esquerda de promover o ensino de guerrilhas, só poderiam consistir em atas de reuniões dos comitês de presos políticos, que declarassem formalmente essa intenção. Mas os prisioneiros políticos teriam de ser doidos ou suicidas para registrar uma decisão desse teor em atas que certamente iriam parar nas mãos da direção do presídio mais dia menos dia. Aliás eles nunca fizeram ata de decisão nenhuma, pela mesmíssima razão. Se o historiador fosse hoje depender de atas para estudar esse período, não teria sequer uma prova de que os comitês de presos políticos chegaram a existir. Uma prova documental, no caso, não é exigível. Presos políticos não fazem atas, tal como não se fazem atas de uma reunião de meliantes para planejar um assalto a banco. O argumento da falta de provas não vale, portanto, para provas documentais.

Restam, ainda, as provas testemunhais. Estas são ambíguas. Amorim aliás só cita duas. Vadinho afirma que houve ensinamento. O então prisioneiro político e depois ( no governo Brizola ) diretor do mesmo presídio da Ilha Grande, José Carlos Tórtima ( hoje procurador do Estado ), proclama que não:

“— É uma mentira essa história de que os presos comuns aprenderam como se organizar e noções de guerrilha urbana com os presos políticos. O conteúdo ideológico deles é de tal forma individualista que de maneira nenhuma poderiam absorver a proposta de apoio coletivo… Repudio claramente qualquer insinuação de que os presos comuns foram formados pelos políticos. Isso é um mito veiculado pela direita.

O dr. Tórtima é, pelo visto, um desses devotos esquerdistas, para quem a sentença “É de direita!” constitui, em si e por si, uma prova fulminante contra qualquer argumento. Algo assim como o Roma locuta, causa finita, um rótulo fatal que, colado a uma idéia, basta para invalidá-la para todo o sempre.

Se ele não pensasse assim, teria procurado calçar melhor seu testemunho, citando fatos em vez de dispensar-se de fazê-lo, confiado na força exorcizante da frase mágica.

Pois, na verdade, o seu não é um testemunho; é um parecer, uma opinião, que opõe à abominável tese direitista um argumento de probabilidade lógica: individualistas ferrenhos não podem, em princípio, absorver uma proposta de ação coletiva, ou pelo menos é muito pouco provável que o façam.

De um ponto de vista hipotético e abstrato, devemos dar razão ao dr. Tórtima: a lei das probabilidades está com ele. Mas, em primeiro lugar, é estranho que uma testemunha, chamada a mostrar a falsidade de uma alegação, se limite a demonstrar sua improbabilidade. Raciocinamos por probabilidades quando não temos acesso aos fatos, quando, não sabendo o certo, só nos resta conjeturar sensatamente. Testemunhas não conjeturam: testemunhas narram.

Se passamos da conjetura para os fatos, a conversa muda. Hipoteticamente, a absorção da proposta de apoio coletivo pelos individualistas era de fato improvável; mas o próprio livro de Amorim mostra bem claro que o improvável se realizou: que não somente os marginais absorveram a proposta, como também a puseram em prática com mais rigor, eficiência e amplitude do que os próprios militantes políticos; e, organizando-se melhor do que eles, chegaram ainda a coordenar o “apoio coletivo” da população pobre dos morros cariocas, superando tudo o que em matéria de arregimentação popular os guerrilheiros haviam sequer sonhado: “Os alunos tornaram-se professores.”

De que vale o argumento de improbabilidade, diante da prova do fato consumado? Diante desse fato, o que vemos é o argumento do dr. Tórtima voltar-se a favor da tese que ele enfaticamente repudia, contra a que defende. Se era pouco provável que os individualistas anárquicos absorvessem a proposta de apoio coletivo mesmo quando esta lhes fosse transmitida por hábeis e solícitos professores de guerrilha,muito menor, para não dizer nula, seria a probabilidade de que o fizessem tão-somente pelo esforço próprio e sem nenhuma ajuda pedagógica. O esforço necessário para aprender sozinho é significativamente maior do que o requerido para seguir as lições de um bom professor. Se, portanto, os individualistas desorganizados se tornaram eficientes organizadores coletivos, o mérito muito provavelmente não é só deles, nem só deles a culpa pelo tipo de coisa que vieram a organizar.

De passagem, a desastrada argumentação do dr. Tórtima derruba também as opiniões do próprio Amorim em favor do caráter fortuito e impremeditado dos ensinamentos de guerrilha. Se os bandidos comuns eram uns individualistas anárquicos, como poderiam colocar em boa ordem fragmentos de informação colhidos aqui e ali em conversações casuais, a ponto de compor com eles uma técnica racional apta a desenvolver-se em amplas e notáveis aplicações práticas? Seria preciso um QI fora do comum, mas mesmo gênios teriam alguma dificuldade em aprender organização tão desorganizadamente. Com toda a franqueza: pedir que acreditemos que homens primitivos, bárbaros, indisciplinados e volúveis conseguiram apreender os complexos princípios de organização político-militar da guerrilha urbana tão-somente ciscando aqui e ali uns pedaços de conversas e depois transformar essa maçaroca informe numa técnica de grande eficácia, é realmente fazer pouco da nossa inteligência.

Contar com a credulidade alheia é aliás um vício da esquerda brasileira, adquirido nos anos que se seguiram à queda da ditadura. A revelação das torturas, dos cadáveres escondidos, confirmando denúncias que antes a opinião oficial desqualificava como invencionices de agitadores, desmoralizou a direita e elevou às alturas a credibilidade da esquerda. Desde então esta vem abusando do crédito para nos fazer engolir patranhas e calúnias de toda sorte, sem outra garantia senão a de terem sido proferidas por quem nos disse a verdade uma vez. Até quando as atrocidades da direita serão fiadoras das mentiras da esquerda?

O que o dr. Tórtima nos impinge como testemunho não poderia mesmo valer nada, pois a “testemunha” saiu da cadeia em 1971, antes, portanto, da fase decisiva de formação do Comando Vermelho, sobre a qual ele sabe só o que leu nos jornais, se é que os leu. Isto aliás confirma o caráter muito provavelmente calunioso de insinuações que o acusem de envolvimento pessoal no ensino de guerrilha aos bandidos. Mas o fato de ele estar inocente não o qualifica para inocentar outros, dos quais nada sabe. Qual, no entanto, o esquerdista brasileiro que recusará falar em público sobre um assunto do qual ignora tudo, se o convite lhe servir de ocasião para dar umas alfinetadas na “direita”?

Acreditar que o “testemunho” do dr. Tórtima baste para absolver alguém além dele mesmo exigiria que a nossa fé removesse montanhas. Destituídos da fé, façamos algo que, no Brasil de hoje, se tornou sinal de impiedade: raciocinemos.

Raciocínio I – O livro de Carlos Amorim informa que os militantes esquerdistas, uma vez encarcerados, procuraram fortalecer a unidade disciplinar de suas organizações, para poderem resistir ao ambiente hostil. De outro lado, o mesmo livro deseja que acreditemos que homens assim afeitos a uma disciplina espartana deixaram escapar, em amenas conversas informais com os detentos comuns, todos os segredos de técnica militar e de organização política que constituíam o sangue e os nervos da revolução. Quer que acreditemos que esses homens de ferro, capazes de resistir à tortura física e psicológica para não entregar nenhum segredo aos policiais, deram tudo aos bandidos, de mão-beijada, por mera desatenção; que de conversa em conversa foram deixando vazar teoria marxista, princípios de agitprop, técnicas militares, métodos de organização, enfim todo o conhecimento de guerrilha urbana então disponível, sem jamais se dar conta de que estavam ensinando guerrilha nem ter a mais mínima intenção de fazê-lo. Nunca ouvi uma coisa mais doida na minha vida.

Raciocínio II — Se, ao contrário dos presos comuns, individualistas anárquicos, os militantes eram socializados, politizados e disciplinados, então certamente nada faziam de importante sem prévia consulta ao “coletivo”. Logo, das duas uma: ou a transmissão de ensinamentos de guerrilha aos bandidos foi autorizada pelo coletivo, ou foi feita em flagrante desobediência à sua proibição. Nesta última hipótese, devemos entender que, malgrado o alto grau de politização ali reinante, reinava também a mais completa anarquia, de modo que o coletivo não conseguia controlar as veleidades individuais de seus membros e os deixava à solta para que, como verdadeiros individualistas anárquicos, fizesse cada qual o que bem lhe desse na telha. É claro que, neste último caso, os presos políticos não teriam podido resistir às pressões do ambiente nem muito menos fazer, como disse o dr. Tórtima, “que os bandidos se acomodassem às nossas regras”. Então não há dúvida: transmitir aos bandidos ensinamentos de guerrilha não pode ter sido uma decisão deixada ao arbítrio individual. Amorim diz muito claro que, pelo menos a partir de 1975, etapa decisiva na formação do Comando Vermelho, as relações entre presos comuns e presos políticos não se davam de indivíduo a indivíduo, mas de comitê a comitê.

Raciocínio III — Se os livros, os manuais de guerrilha, estavam proibidos de circular em todo o território nacional, muito mais o estavam entre os muros da prisão. Introduzi-los ali e fazê-los circular, mesmo exclusivamente entre militantes, era grande temeridade. Transferi-los a bandidos comuns, gente isenta de qualquer compromisso ideológico e de toda confiabilidade moral, era certamente expor-se a risco de delação, a não ser que houvesse um acordo prévio entre o comitê dos políticos e o dos presos comuns, com previsão de graves sanções contra os faltosos. Hipóteses contrárias, só há duas: ou os presos políticos entregavam aos bandidos obras de Ché Guevara e Carlos Marighela por mero descuido, folgadamente como quem distribui a crianças exemplares de Luluzinha e Tio Patinhas; ou então os presos comuns é que tinham um organizadíssimo serviço de espionagem capaz de burlar a vigilância dos políticos e surrupiar uns quantos exemplares das obras explosivas ciosamente guardadas. Mas, se era improvável que militantes tão descuidados sobrevivessem na Ilha Grande, muito mais o seria que os “individualistas” anárquicos lograssem montar um serviço de espionagem tão eficiente.

O testemunho de Tórtima e as opiniões de Amorim, portanto, caem por terra. O que fica de pé é a narrativa de Amorim, a sustentar, com eloquência terrível, a conclusão que o autor não quis endossar pessoalmente: ou os militantes de esquerda ensinaram guerrilha aos bandidos com um propósito deliberado, ou então a aquisição desse conhecimento pelos líderes do Comando Vermelho é o mais prodigioso milagre de absorção espontânea já registrado nos anais da pedagogia universal. Deixo esta hipótese para os adeptos da tese segundo a qual Deus é brasileiro. Quanto à outra, resta discutir se o propósito dos esquerdistas foi cooptar os bandidos para a luta armada sob seu comando ou simplesmente o de vingar-se pela derrota da guerrilha deixando para o governo militar a semente do futuro tormento do banditismo organizado. Pode ter sido uma mistura das duas coisas. Alguns policiais apostam na primeira, jurando que o Comando Vermelho é uma extensão e recrudescimento da guerrilha urbana, um novo braço armado das esquerdas. Esta certeza tem o mesmo fundamento daquela do dr. Tórtima: uma opção ideológica prévia que faz ver tudo torto, ou tórtimo. Deixarei esta questão para outra oportunidade, advertindo apenas que ela não pode ser resolvida pelo método das apostas sentimentais. Mas, qualquer que tenha sido o caso, uma coisa é certa: se os militantes da esquerda armada treinaram bandidos-guerrilheiros dentro da prisão, os da esquerda desarmada, fora dela, estão dando seguimento coerente à sua iniciativa, na medida em que ajudam o Comando Vermelho a conquistar uma posição de força como “liderança popular” legitimada artificialmente, e o integram assim na estratégia global da esquerda, já não como força militar, e sim política. Se os jovens guerrilheiros de l968 não tinham uma estratégia definida para aproveitar-se politicamente do banditismo, os velhos políticos esquerdistas de 1994 estão lhes dando uma, retroativamente. Não se trata de uma ponte entre gerações: é que estes velhos, simplesmente, são aqueles jovens, adestrados pelo tempo. Os jovens matavam e roubavam pela revolução; os velhos tiram dividendos políticos de assaltos e homicídios praticados por outros. Servem-se do banditismo duplamente: ao protegê-lo e ao denunciá-lo. No primeiro caso, ganham — ou pelo menos tencionam ganhar — os votos da população pobre, que supõem obediente ao Comando Vermelho; no segundo, servem-se dele como pretexto para denunciar a corrupção da sociedade capitalista. Alimentam o mal para poder acusá-lo, o que é, sem exagero, o tipo da malícia propriamente diabólica, imitando o tinhoso no seu duplo e inseparável papel de tentador e acusador. Se a idéia de cooptar os bandidos para a luta armada era uma fantasia insensata, se o desejo de vingar-se da ditadura era uma pirraça juvenil, uma esquerda mais madura e experiente está sabendo reaproveitar e tirar vantagem política daquilo que, entre névoas, foi gerado na Ilha Grande. A quem poderia ser doce esse fruto senão a quem, de olho no futuro, plantou a sua semente?

Apêndice II

 

A Nova Era e a Revolução Cultural: Prefácio à segunda edição

PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO

DECORRIDOS alguns meses da primeira edição, rapidamente esgotada, os acontecimentos não fizeram senão confirmar com igual rapidez os diagnósticos que apresentei neste livro.

O Brasil vive, de um lado, uma crise profunda da inteligência, de que é reflexo o deslumbramento apalermado com que recebemos e enaltecemos, como altas produções do espírito, as idéias mais sonsas e descabidas que nos chegam do estrangeiro. O sr. Capra não foi o último da série. Depois dele recebemos a visita e as luzes do sr. Richard Rorty, cuja proposta, filosoficamente indecorosa e moralmente repugnante, os pensadores locais não ousaram criticar senão com precauções e desculpas que raiavam o servilismo1.

Esse fenômeno é, em parte, efeito passivo da crise da inteligência norte-americana, como explico num outro livro que deverá sair logo após esta segunda edição2.

Mas, de outro lado, ele é também o resultado de uma política deliberadamente conduzida pelos movimentos de esquerda, interessados em reduzir toda a vida intelectual brasileira a um coro unanimista de reclamações. O rebaixamento das artes, da filosofia e até de algumas ciências à condição de megafones da propaganda revolucionária, que os melhores pensadores marxistas sempre rejeitaram como uma tentação aviltante, tornou-se a praxe estabe lecida, que ninguém ousa contestar, menos pelo temor de um revide explícito do que pela certeza absoluta de que seus ouvintes já não poderão compreendê-lo, tão longe estão de imaginar que a cultura possa ter outros e mais elevados fins. Pois o dogma da cultura militante não se adotou como opção consciente, vencedora no confronto com outras concepções possíveis, mas se infiltrou sorrateiramente, como um pressuposto implícito, aproveitando-se da ignorância das novas gerações, que ao despertarem para o mundo da “cultura” já a encontram identificada à propaganda ideológica como se este fosse o seu estado natural e seu destino eterno. O pior é que essa propaganda já não transmite sequer idéias ou símbolos de uma doutrina revolucionária, mas limita-se a repetir, de maneira rasa, literal e direta, as reivindicações do dia: fora Collor, morte aos corruptos, viva o Betinho, queremos sexo. Todos os anões do Congresso, reunidos e somados, não fizeram tanto mal a este país quanto essa prostituição completa da inteligência às ambições políticas imediatas e às paixões mais corriqueiras. O dinheiro perdido pode-se ganhar novamente; o espírito, quando se vai, não volta mais. Os templos abandonados — é a experiência universal — tornam-se para sempre covis de feiticeiros e bandidos.

Pelo efeito conjugado da decadência norte-americana e da ação local tendente a amassar e fundir todos os cérebros deste país na fôrma sem rosto do “intelectual coletivo” gramsciano, o fato é que a inteligência nacional está indo ladeira abaixo, ao mesmo tempo que sobe, das ruas e dos campos, o rumor sombrio de uma revolução em marcha.

Sim, o Brasil está inequivocamente entrando numa atmosfera de revolução comunista. A imbecilização não é senão um sintoma: o temporário obscurecimento da luz, mencionado pelo I Ching, no qual se geram, entre as dobras da noite, os monstros que irão povoar as visões de um despertar temível.

Esses monstros já não são tão pequenos para que um olhar atento não consiga enxergá-los e espantar-se com a velocidade com que vão crescendo no ventre da inconsciência nacional.

O próprio unanimismo da intelectualidade é um dos sinais. Mas outro, aparentemente contraditório, é a proliferação das reivindicações gremiais, do espírito de divisão, na hora em que o país mais necessita do sacrifício das partes pelo bem do todo. Em cada classe, em cada região, em cada sindicato, em cada empresa, em cada família, em cada alma, o que se nota é um sentimento agudo e exasperado dos próprios direitos e o completo amortecimento do senso do dever. É o predomínio desastroso do reivindicar e protestar sobre o criar e oferecer. Quanto menos cumpre sua obrigação, mais cada um se crê no direito de acusar o próximo. O governo reprime os aumentos abusivos de preços enquanto protege as elevadas taxas de juros e alimenta a gigantesca tênia petrolífera que pela majoração periódica dos combustíveis vai marcando o compasso para a subida generalizada do custo de vida. O pai de família vocifera contra a corrupção dos políticos enquanto solicita a um contador que “dê uns retoques” na sua declaração de rendimentos para tornar mais verossímil a mentira que o isentará do imposto. As empresas censuram o governo no instante mesmo em que elevam os preços de seus produtos e serviços acima de tudo quanto permite a lei e recomenda a decência. A esquerda clama contra as oligarquias enquanto promove greves de funcionários públicos voltadas diretamente contra os direitos da população. Os intelectuais e artistas clamam contra as injustiças enquanto levam vida de príncipes às expensas do erário público. A imprensa acusa, delata, aponta homens e instituições ao opróbrio, enquanto discretamente, em congressos de profissionais longe dos olhos da multidão, confessa sua própria falta de decoro, ética e dignidade. Os sem-terra exibem diante das câmeras sua pobreza comovente enquanto gastam fortunas em operações paramilitares que o próprio exército não teria verba para sustentar. O discurso do unanimismo , como o coro entusiástico das torcidas durante a Copa, não é senão um Ersatz, a ostentação de uma unidade postiça que encobre a luta covarde e sem regras de todos contra todos. O egoísmo, a inconsciência, a maldade ganham terreno a cada nova investida da “campanha pela Ética”.

Quia bono? A quem aproveita o crime? Quem lucra com a dilaceração da alma nacional num confronto vil de todos os egoismos e de todas as inconsciências? As pesquisas de opinião respondem que, de todos os brasileiros, o único que não tem medo de ser feliz já ganhou quarenta por cento das intenções de voto para a Presidência.

Poderia ser uma coincidência, o efeito acidental de uma conjuntura. Mas, recuando em busca das suas raízes, vemos que esse efeito foi longamente desejado e meticulosamente preparado pela mais hábil e talentosa geração de intelectuais ativistas já nascida neste país. A geração que, derrotada pela ditadura militar, abandonou os sonhos de chegar ao poder pela luta armada e se dedicou, em silêncio, a uma revisão de sua estratégia, à luz dos ensinamentos de Antonio Gramsci. O que Gramsci lhe ensinou foi abdicar do radicalismo ostensivo para ampliar a margem de alianças; foi renunciar à pureza dos esquemas ideológicos aparentes para ganhar eficiência na arte de aliciar e comprometer; foi recuar do combate político direto para a zona mais profunda da sabotagem psicológica. Com Gramsci ela aprendeu que uma revolução da mente deve preceder a revolução política; que é mais importante solapar as bases morais e culturais do adversário do que ganhar votos; que um colaborador inconsciente e sem compromisso, de cujas ações o partido jamais possa ser responsabilizado, vale mais que mil militantes inscritos. Com Gramsci ela aprendeu uma estratégia tão vasta em sua abrangência, tão sutil em seus meios, tão complexa e quase contraditória em sua pluralidade simultânea de canais de ação, que é praticamente impossível o adversário mesmo não acabar colaborando com ela de algum modo, tecendo, como profetizou Lênin, a corda com que será enforcado.

A conversão formal ou informal, consciente ou inconsciente da intelectualidade de esquerda à estratégia de Antonio Gramsci é o fato mais relevante da História nacional dos últimos trinta anos. É nela, bem como em outros fatores concordantes e convergentes, que se deve buscar a origem das mutações psicológicas de alcance incalculável que lançam o Brasil numa situação claramente pré-revolucionária, que até o momento só dois observadores, além do autor deste livro, souberam assinalar, e aliás mui discretamente3.

A expectativa, a esperança, o anseio da revolução são tão velhos, tão arraigados na alma da intelligentzia nacional4 que, mesmo diante do fracasso mundial do socialismo, ela não terá forças para resistir à tentação de fazê-la, agora que a conjuntura local, pela primeira vez na nossa História, lhe oferece os meios de chegar ao poder. O Brasil, de fato, tem um descompasso crônico em relação ao tempo da História universal. O reconhecimento mundial da debacle do comunismo ecoou neste país — paradoxalmente, segundo a lógica humana, mas coerentemente, segundo a linha constante da História nacional — como um toque de esperança: chegou a nossa vez de conquistar aquilo que já ninguém mais quer.

Durante algum tempo, nutri a insensata esperança de que o PT expeliria de si o veneno gramsciano e se transformaria no grande partido socialista, ou trabalhista, de que o Brasil precisa para compensar, na defesa do interesse dos pequenos, o avanço neoliberal aparentemente irreversível no mundo, e propiciar, pelo sadio jogo de forças, o movimento regular e harmônico da rotatividade do poder que é a pulsação normal do organismo democrático. Movido por essa ilusão, votei em Lula para presidente. Hoje não votaria nele nem para vereador em São Bernardo. É que, pela sucessão de acontecimentos desde a campanha do impeachment, o PT mostrou sua vocação, para mim surpreendente, de partido manipulador e golpista, capaz de conduzir o país às vias fraudulentas da “revolução passiva” gramsciana, usando para isso dos meios mais covardes e ilícitos — a espionagem política, a chantagem psicológica, a prostituição da cultura, o boicote a medidas saneadoras, a agitação histérica que apela aos sentimentos mais baixos da população —, e de adornar esse pacote de sujidades com um discurso moralista que recende a sacristia. O partido que, para sabotar um candidato, promove no lançamento da nova moeda algo como uma “greve preventiva” sob a espantosa alegação de uma possibilidade teórica de danos salariais futuros, sabendo que essa greve resultará em aumento do preço dos combustíveis e em retomada do ciclo inflacionário, dando facticiamente confirmação retroativa aos danos anunciados, é que, francamente, decidiu imitar o capeta: produz o mal para no ventre dele gerar o ódio, e no ventre do ódio o discurso de acusação. A greve dos petroleiros não deu certo, mas ela é o mais puro exemplo do que o povo denomina “apelação”: o recurso extremo usado para fins levianos.

Se o PT faz isso, é porque perdeu sua confiança no futuro majestoso a que o destinava a nossa democracia em formação, e, excitado por indícios de um sucesso momentâneo que teme não repetir-se nunca mais, resolveu apostar tudo no jogo voraz e suicida do it’s now or never. Não quer mais apenas eleger o presidente, governar bem, submeter seu desempenho ao julgamento popular daqui a cinco anos, fazer História no ritmo lento e natural dos moinhos dos deuses: quer tomar o poder, fazer a Revolução, desmantelar os adversários, expelir da política para sempre os que poderiam derrotá-lo em eleições futuras. Nos termos da poesia de Murillo Mendes, preferiu, às “lentas sandálias do bem, as velozes hélices do mal”. A mitologia gramsciana, diagnosticando pomposamente a “transição para um novo bloco histórico”, deu uma legitimação verbal a essas pretensões, e eis que o Brasil, mal tendo ingressado no caminho da democracia, já se apressa a abandoná-lo pelo atalho da Revolução. Aonde ele leva, é algo que o mundo sabe, mas que importa o conhecimento do mundo às hordas de menores-de-idade que a lisonja esquerdista consagrada em norma constitucional transformou na parcela decisiva do eleitorado, dando-lhes poder antes de lhes dar educação? O que importa é aproveitar o momento, levar a todo preço o Lulalá, carregado nos ombros de garotos raivosos, insolentes e analfabetos, e, antes que o “consenso passivo” da população tenha tempo de avaliar o que se passa, atrelar irreversivelmente o país ao carro-bomba que se precipita, morro abaixo, no rumo da Revolução.

A geração que atingiu a idade adulta no momento em que a ditadura fechava as portas de acesso à vida política está agora com cinqüenta anos. Ao longo dos últimos trinta ela esperou, sonhou, planejou, desejou, cobiçou entre lágrimas de rancor impotente, e, sobretudo, leu muito Antonio Gramsci. Que a Revolução socialista já tenha mostrado ao mundo sua verdadeira face, que ela já tenha provado cabalmente que não vale a pena, isto pouco interessa. A geração dos guerrilheiros fará o que longamente se preparou para fazer. Pouco importa que, pelo relógio do mundo, tenha passado a hora. O fim da festa é, para o catador de lixo, o sinal de que a sua festa está para começar.

Por essas razões é que este livro, aparentemente constituído de pedaços inconexos, começa a mostrar, pela força dos acontecimentos externos, a unidade que, no plano literário, o autor não teve o tempo ou o engenho de lhe dar. Sob a aparência comprometedora de uma salada histórica que mistura Lênin, o I Ching, Max Weber, Freud e o Comando Vermelho, ele aponta, pela ordem e, segundo creio, com lógica, o sintoma e a causa da doença da intelectualidade brasileira: a origem ao menos parcial da nossa vulnerabilidade à falsa mensagem do sr. Capra está nas idéias de Antonio Gramsci, transformadas em prática pela geração de intelectuais esquerdistas que, na Ilha Grande, fez ofício de parteira do Comando Vermelho, e que agora dá o tom da vida mental neste país. Se, na primeira edição, não consegui dar desse fenômeno uma exposição seguida e coesa, tendo de adotar, em vez disso, um enfoque prismático e desnivelado, antes sugerindo em fragmentos do que declarando por extenso o sentido do conjunto, não foi por nenhuma intenção profunda: foi por autêntica incapacidade de fazer de outro modo. Mas não creio, por isto, merecer censura: afinal, aqui foi dito aos trancos e pedaços o que ninguém mais disse de maneira alguma. Do primeiro a esboçar a unidade de um quadro confuso, não se exige que seja completo; e do primeiro a anunciar um perigo terrível, não se exige que fale claro e ordenado segundo o bom estilo. Esbaforido e gaguejante, semilouco e abstruso, ele afinal presta um serviço de emergência. Como diz um provérbio árabe: “Não repares em quem sou, mas recebe o que te dou.”5

Rio de Janeiro, junho de 1994.

NOTA PRÉVIA [ DA 1A EDIÇÃO ]

A “NOVA ERA” da qual Fritjof Capra se tornou festejado porta-voz e a “Revolução Cultural” de Antonio Gramsci têm algo em comum: ambas pretendem introduzir no espírito humano modificações vastas, profundas e irreversíveis. Ambas convocam à ruptura com o passado, e propõem à humanidade um novo céu e uma nova terra.

A primeira vem alcançando imensa repercussão nos círculos científicos e empresariais brasileiros. A segunda, sem fazer tanto barulho, exerce há três décadas uma influência marcante no curso da vida política e cultural neste país.

Nenhuma das duas foi jamais submetida ao mais breve exame crítico. Aceitas por mera simpatia à primeira vista, penetram, propagam-se, ganham poder sobre as consciências, tornam-se forças decisivas na condução da vida de milhões de pessoas que jamais ouviram falar delas, mas que padecem os efeitos do seu impacto cultural.

Para os adeptos e propagadores conscientes das duas novas propostas, nada mais reconfortante do que a passividade atônita com que o público letrado brasileiro tudo recebe, tudo admite, tudo absorve e copia, com aquele talento para a imitação maquinal que compensa a falta de verdadeira inteligência.

Mas a Revolução Cultural de Gramsci e o movimento da “Nova Era” não são simples modas, que se possam adotar e abandonar à vontade, com a despreocupação de quem troca de cuecas. São propostas de imensa envergadura, que, uma vez aceitas, mesmo implicitamente, mesmo informalmente, mesmo hipoteticamente, levam a conseqüências de alcance incalculável. Essas conseqüências não pouparão, decerto, aqueles que tiverem aderido às suas causas por mero passatempo, sem uma clara consciência das responsabilidades em jogo. Não pouparão ninguém que esteja dentro do seu raio de ação. E todos estamos.

É, portanto, uma leviandade suicida absorver idéias como essas sem um exame crítico preliminar. É este exame que inauguro no presente livreto, ciente de que, ao fazê-lo, me adianto a uma lerda opinião pública que nem de longe levantou ainda as questões aqui discutidas, mas nem por isto o faço com menor atraso em relação às exigências de minha própria consciência, que me cobra este trabalho desde que pela primeira vez falei em público sobre estes assuntos, em l987. Falador prolífico, sou tardo em escrever, motivo pelo qual meu sentimento de urgência se transforma, às vezes, em sentimento de culpa. A urgência, no caso, era a de esclarecer a ligação entre aquelas duas correntes de pensamento; ligação que, uma vez percebida, revela a inconsistência de ambas, e de ambas nos liberta. Por não percebê-la, a mente brasileira gira hoje em falso em torno do eixo balizado por esses dois pólos. Pelo número de adeptos e pelos postos estratégicos que alguns destes ocupam na sociedade, Capra e Gramsci dominam as duas correntes mentais mais atuantes deste país. O fato de que jamais tenham sido confrontados e de que a idéia mesma de confrontá-los soe estranha mostra apenas que o país não tem clara consciência das alternativas em que se debate, e que a vida mental nele tende a cindir-se em devoções estanques a deuses que se desconhecem mutuamente e que mutuamente se hostilizam nas trevas, como espadachins vendados. Trata-se portanto, aqui, de esclarecer um conflito subconsciente, em que o destino de um país se decide entre as sombras de um sonho. Brasil sonâmbulo: para que sustentas com dinheiro e lisonjas os teus intelectuais, se não é para te revelarem a ti mesmo, para te dizerem o que se passa contigo para além da superfície do noticiário?

Os três capítulos que compõem este livro reproduzem, tanto quanto possível, o conteúdo de aulas e conferências que dei sobre os respectivos temas, seja no Seminário Permanente de Filosofia e Humanidades, que dirijo no Instituto de Artes Liberais, seja fora dele. O capítulo sobre Fritjof Capra foi redigido e distribuído aos meus alunos em setembro de l993, quando se anunciava a próxima vinda ao Brasil do guru da Nova Era, promovida pela Universidade Holística de Brasília. Os outros, seus naturais complementos como se verá, foram escritos agora em fevereiro de l994, especialmente para este livro. Os apêndices ilustram detalhes que importam à compreensão do Cap. II.

Reconheço que, ao menos quanto a Gramsci, o exame que apresento é superficial, que haveria ainda milhares de coisas a dizer que aqui não foram ditas.6 Mas alguém tem de começar, e, na falta de melhores cérebros que se dispusessem a digerir o assunto, a coisa sobrou para mim. Quanto a Capra, ele está longe de representar a “Nova Era” na sua totalidade; embora alguns vejam nele uma síntese desse movimento, ele constitui apenas um seu sintoma, ainda que agudo e sonante. Que ninguém me censure, portanto, a incompletude destas análises: minhas amostras levam o rótulo de amostras, com altiva modéstia. Também não tem, este trabalho, a menor pretensão de interferir no curso das coisas. Seu único anseio é fornecer, aos que tenham um sincero desejo de compreender os acontecimentos, alguns meios de fazê-lo. Ora, os que têm esse desejo são sempre poucos, no meio do vozerio, entusiástico ou ameaçador, dos que crêem já saber tudo e que não aguardam senão com impaciência que o mundo se curve às suas propostas. Àqueles poucos e silenciosos, portanto, é dedicado este trabalho. Dentre eles, destaco o romancista Herberto Sales, que leu em versão datilográfica o primeiro capítulo e lhe fez referências generosas, que agradeço comovido. Tanto mais comovido porque, se eu tivesse de escolher um guru estilístico, ele não seria outro, na presente fase da nossa literatura, senão Herberto Sales. Destaco ainda o valente grupo de alunos e ouvintes que há anos acompanha meu trabalho com um interesse que me reconforta.

Rio, fevereiro de 1994

Olavo de Carvalho

 

NOTAS

  1. José Arthur Gianotti, “Conversa com Richard Rorty”, Jornal do Brasil, 26 de maio de 1994. É no mínimo estranho que um homem como Gianotti, tão valente ao expor idéias políticas mesmo quando lhe atraiam a ira dos sumos-sacerdotes da esquerda nacional, se cubra de cautelas ao criticar um pensamento tão vulnerável como o de Rorty. Explica-se, talvez, pela crônica timidez uspiana, inibição intelectual que se tornou, em versão fetichizada, a caricatura tupiniquim do “rigor” ensinado pelos primeiros mestres — franceses — fundadores da USP. O “rigor” uspiano é na verdade moleza, tremor da geléia terceiromundana ante a autoridade dos ídolos da moda — compensação junguiana pela petulância ante o legado espiritual do passado. Mesmo em sua versão original européia, herdeira de nobres tradições filosóficas, um rigorismo acadêmico inibitório torna-se muitas vezes o refúgio comunitário onde o intelecto mal dotado vai abrigar-se contra os perigos da investigação solitária — vale dizer, contra o exercício mesmo da filosofia. O verdadeiro rigor filosófico, ao contrário, é pura coragem interior, não se curva senão ante a evidência e não tem nada de temor reverencial adolescente ( ou colonial ) ante os prestígios acadêmicos do dia. Com a ascensão da intelectualidade paulista ao primeiro plano da vida nacional, a inversão uspiana do rigor, que devota ao prestígio o culto que nega à verdade, ameaça contaminar o pensamento brasileiro como um todo, selando a morte da inteligência nesta parte do mundo. Nada vai aqui contra Gianotti, homem capaz e correto, que só peca por admirar quem não merece — ou por fingir admirar, talvez, já que o floreio bajulatório involuntariamente irônico é outra marca registrada do estilo uspiano, onde faz as vezes de polidez acadêmica.
  2. O Imbecil Coletivo. Atualidades Inculturais Brasileiras, Rio, IAL & Stella Caymmi Editora, 1994, que forma, com o presente volume e com O Jardim das Ilusões. Epicuro e a Revolução Gnóstica, que também virá a público em breve, uma trilogia dedicada ao estudo da patologia cultural brasileira na presente fase da nossa História.
  3. Um deles foi Fernando Henrique Cardoso ( Jornal do Brasil, 11 nov. 93 ), um homem que conhece as esquerdas muito bem e que, por isto mesmo, sentiu o dever de se opor a elas no momento em que mais poderia ajudá-las. O outro foi Oliveiros da Silva Ferreira, que vem explorando o assunto em vários artigos publicados em O Estado de S. Paulo.
  4. O mito da Revolução Brasileira é um componente ativo do pathosesquerdista desde a década de 30. “Fadado a um grande destino, o Brasil seria a terceira grande revolução neste século. A primeira, a União Soviética, segunda a República Popular da China, e a terceira, a República Democrática Popular do Brasil” ( Luís Mir, A Revolução Impossível, São Paulo, Best Seller, 1994, p. 10 ).
  5. Nada retirei nem alterei do original nesta Segunda Edição, apenas corrigi erros de grafia, acrescentei este Prefácio, uns quantos adendos, e adendos de adendos, e muitas notas de rodapé. O leitor austero achará que são excrescências complicatórias, mas gosto delas justamente por isso, porque eliminam do texto a enganosa linearidade e lhe dão aquele aspecto vivente de rede nervosa, de trama vegetal, que faz com que, precisamente, um texto seja um texto.
  6. Limito-me ao estudo da estratégia e, mais brevemente, de alguns aspectos da gnoseologia, sem tocar por exemplo na sociologia gramsciana, que mereceria — não por seu valor científico, mas pela força persuasiva da sua alucinante falsificação da realidade — um exame mais atento. Prometo fazê-lo no livro O Antropólogo Antropófago. A Miséria das Ciências Sociais, a sair no ano que vem. Também não pude senão mencionar de longe as concepções estéticas e literárias de Gramsci, tão influentes até hoje, mas sobre as quais não pretendo escrever nada nunca, se os deuses me pouparem esse castigo. [ Nota da 2a. ed. ]