Pensamento e atualidade de Aristóteles – Aula III (Parte I)

Apostila do Seminário de Filosofia

TERCEIRA AULA

Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 29 de março de 1994.

Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Augusto Madeira
e Kátia Torres Ribeiro

1a parte

O pensamento de Aristóteles surge dentro de certo desenvolvimento em três etapas do que chamamos a Filosofia do Conceito – aquela que busca um objeto estável, algo que possa ser objeto de conhecimento, e o encontra, com Sócrates, no elemento conceptual da realidade. Elemento conceptual é a parte ou aspecto dos entes que, podendo ser resumido, encaixado dentro de uma forma mental fixa, revela o que estes entes são em essência, independentemente das variações ou transformações que possam sofrer no curso de sua existência. Por exemplo, um animal qualquer, leão, cavalo, burro, por um lado tem este aspecto essencial que faz com que possamos designá-lo sempre pelo mesmo nome referindo-nos à mesma espécie; por outro lado, é evidente que não há dois cavalos iguais, dois leões iguais. Também é evidente que o cavalo não permanece o mesmo desde que nasce até que morre. E que todo o processo de geração, existência, corrupção e morte não afeta a essência ou elemento conceptual destes entes. O leão morto não passa a ser outra coisa;é um leão, essencialmente o mesmo, porém privado de existência. Distinguindo entre o que seria o aspecto essencial e o aspecto acidental ou transitório das coisas, o método de Sócrates propunha que a mente humana se preocupasse principalmente do elemento conceptual, sendo que o outro aspecto não seria propriamente matéria de conhecimento, mas apenas de sensação e opinião.

Em seguida, com Platão, vemos que este elemento conceptual, já recortado, separado por Sócrates, adquire uma espécie de autonomia no sentido ontológico. Em Sócrates, a divisão entre o aspecto existencial e o conceptual era apenas técnica; era um artifício através do qual Sócrates tentava apreender um aspecto mais valioso da realidade, digno de ser investigado. Em Platão, esse aspecto separado por Sócrates é enfatizado como sendo ele mesmo a realidade, ao passo que o aspecto existencial, acidental e transitório é visto como uma espécie de tecido de aparências que nos oculta a verdadeira realidade. A passagem de Sócrates para Platão é bastante nítida; é uma diferença quase abissal. Uma coisa é dizer que vale mais a pena olhar a realidade por determinado aspecto por ser ele mais revelador; outra coisa é dizer que este aspecto é que é real e que o outro é, se não totalmente falso, pelo menos parcialmente ilusório. Podemos resumir tudo dizendo que em Sócrates a divisão dos dois mundos ou aspectos tinha um sentido metodológico, ou gnoseológico, e em Platão passa a ter um alcance ontológico. Um preceito metodológico ensina como você deve investigar as coisas; um princípio ontológico estabelece como as coisas realmente são..

Muitas vezes, na história do pensamento e na história das ciências, aconteceu que preceitos metodológicos se transformaram em leis ontológicas. O caso mais recente é o do marxismo. Marx diz que devemos olhar a constituição da sociedade em primeiro lugar por sua infra-estrutura econômica e depois, em função dela, descrever os outros estratos da sociedade – leis, política, costumes, valores, artes etc. Em primeiro lugar, isto é um preceito metodológico e como tal obviamente funciona. Porém, tem isto também um alcance ontológico? Será a sociedade objetivamente constituída assim? Uma base econômica sobre a qual e e função da qual se vão criando outros estratos? Marx não deixa isto muito claro. Ele diz apenas que em última instância o fator econômico é decisivo, dando a entender que outros fatores podem ser decisivos em instâncias não últimas. Como ele não diz em parte alguma o que entende por última instância e onde termina a instância penúltima, o mais prudente é interpretar o seu preceito em sentido apenas metodológico. Porém, a tradição marxista começou a tratar esta hierarquia metodológica como se fosse um preceito ontológico. Como se a sociedade fosse construída realmente de baixo para cima, a partir de um embasamento econômico que determinaria todo o resto. E hoje esta idéia, como preceito ontológico, entrou tão fundo na cabeça das pessoas que praticamente todo mundo pensa assim, mesmo quem não gosta do marxismo… O que seria um mero preceito metodológico ou no máximo uma hipótese ontológica acaba virando uma convicção das massas que acreditam que isto tenha um fundamento científico.

Também na antropologia, a idéia de que o antropólogo, quando examina diferentes culturas, deve evitar fazer uma hierarquia valorativa, como se uma cultura fosse melhor do que a outra, é um preceito metodológico. Depois, quase que implicitamente, tornou-se uma regra ontológica que diz que “não existem diferenças de valor entre as culturas ou os costumes”. Um costume como a antropofagia, por exemplo, deve ser considerado tão bom – ou tão ruim – como o da adoção dos órfãos. Sempre que passamos do preceito metodológico para o ontológico existe no mínimo uma imprudência muito grande.

Na passagem do socratismo para o platonismo parece ter havido isto e não sei nem se o próprio Platão e os que o cercavam se deram conta desta escorregadela, pela qual foram do metodológico ao ontológico.

E preciso cuidado para saber quando alguém está falando sobre a constituição da realidade ou sobre a melhor maneira de examiná-la. Dizer que um método é mais conveniente do que o outro nada pressupõe a respeito da realidade. O fato de que convenha examinar algo por certo lado não quer dizer que este lado seja objetivamente o mais importante.

Distinção entre a ordem do ser e a ordem do conhecer

Aristóteles esclareceu isto perfeitamente com a distinção da ordem do ser e da ordem do conhecer. Quando o arquiteto concebe uma casa, ele concebe o todo, o esquema geral; mas na ora de construir tem de seguir a ordem exatamente inversa, tijolo por tijolo. Quando você vê a casa, novamente o que vê é o todo; mas quando vai percorrê-la tem de ir parte por parte. Há uma série de inversões da hierarquia. Do mesmo modo, o primeiro que conhecemos nos seres é o seu aspecto exterior e manifesto, mas é claro que este aspecto é o último na sequência de constituição desses seres.

Um preceito metodológico refere-se à ordem do conhecer, que nem sempre reflete a hierarquia real do ser. Quando você conhece uma pessoa, a primeira coisa que vê é a aparência física. Mas como esta pode ser reveladora, se ela é própria apenas daquele momento? Você conhece alguém de quarenta anos, está vendo a aparência desta idade, não sabe tudo o que aconteceu antes. A ordem do conhecer nem sempre vem na hierarquia certa do ser.

Um método é apenas um caminho para chegar a alguma coisa. Ora, descrever o caminho pelo qual você chega de São Paulo ao Rio de Janeiro não é falar nada sobre o Rio. A partir de uma descrição da Via Dutra você nada fica sabendo sobre a cidade do Rio.

Evolução da filosofia do conceito: de Sócrates a Platão.

Se procurarmos em tudo aquilo que está documentado como dito por Sócrates – as falas a ele atribuídas – algo de uma ontologia, não o encontramos de maneira nenhuma. Só encontramos preceitos de lógica, de ética e de metodologia. Quando o Sócrates que aparece nos Diálogos de Platão começa a dar a preceitos de Sócrates valor ontológico, aí podemos dizer que quem está falando é Platão. Ele transformou uma sugestão metodológica numa doutrina formal sobre a constituição do real. Em vez de dizer que é mais fácil examinar os seres pelo seu aspeto conceptual ou lógico do que pelo simples aspecto sensível, ele diz que o aspecto conceptual ou lógico é a verdadeira realidade, e que o aspecto sensível, ou existencial, é aparência, é um véu.

Com isto, uma separação meramente mental que nós fazemos – a separação entre o ser e o seu conceito – é hipostasiada, personificada, materializada numa divisão real do mundo em dois estratos. Como se o mundo único da nossa experiência, aquele sobre o qual investigamos, já não fosse bastante complicado, você cria dois mundos.

A doutrina dos dois mundos é quase um tendência natural do espírito humano. Hoje vemos, dois mil e tantos anos depois de Platão, que certo platonismo já aparecia na arte do homem das cavernas. Isto foi destacado por um grande historiador da arte, chamado Wilhelm Worringer. Ele observou que o homem primitivo, longe de ser um cidadão perfeitamente integrado na natureza, sentindo-se perfeitamente bem ali, é, ao contrário, um ente aterrorizado pela natureza imensa que o cerca, cheia de imprevistos e ameaças incompreensíveis. Por isso mesmo, a arte dos povos primitivos, longe de ser uma arte naturalista, uma arte que retrate a natureza com toda a sua variedade de formas e cores e seres, é uma arte simplificadora, uma arte geométrica, que expressa um impulso abstrativo muito intenso. Worringer explica assim este estilo de arte: quando o mundo real nos parece demasiadamente complicado ou ameaçador, tendemos a nos refugiar num domínio intelectual puro, para podermos encontrar dentro dele os princípios de organização simplificadora, com os quais mais tarde voltaremos a tentar nos instalar no mundo externo. Como você não está entendendo o que se passa fora, recua para organizar os próprios pensamentos. Depois de os ter organizado, volta à ação exterior. Ora, uma arte de ornamentação puramente geométrica é o que se observa em praticamente todas as sociedades tribais; e uma arte naturalista, na qual o artista se deleita em copiar as formas da natureza, só aparece nas sociedades organizadas, na polis. O naturalismo, a curtição da natureza, são próprios do homem civilizado, e não do primitivo. Para este a natureza é um caos, porque ele não tem poder sobre ela. A partir da hora em que consegue organizar o pensamento humano, e em consequência, a sociedade, coloca uma hierarquia, coloca todo mundo para trabalhar, monta as cidades, cria sistemas de produção e defesa, e afinal sente-se mais seguro e face desta natureza, então sim os aspectos terrificantes dela são atenuados e começam a aparecer os aspectos estéticos. A beleza da natureza só é visível depois que você está a uma boa distância dela.

Esta arte primitiva tem também um sentido religioso, ritual, de modo que as formas puramente geométricas expressam um realidade que, não sendo visível neste mundo, não estando na natureza, é no entanto superior a ele, e na qual o homem se sente protegido contra o caos exterior. Expressa um mundo de relações puramente espirituais, angélicas. São símbolos, signos mágicos ou religiosos. Podemos ver nestes fenômenos descritos por Worringer uma espécie de platonismo primitivo, e aí entenderíamos o platonismo não apenas a filosofia de um certo cidadão, mas como uma tendência constante do espírito humano, e que reaparece sempre que a situação fica caótica e o homem, não conseguindo entender o que se passa, procura em primeiro lugar reordenar o seu mundo interior. Por isto dizia Alain que Platão é o filósofo bom para os que estão em dificuldades interiores, ao passo que Aristóteles é para os cientistas e pesquisadores do mundo.

Num outro contexto completamente diferente, Carl-Gustav Jung, que não levo muito a sério como teórico mas cujas observações clínicas são primorosas, notou que sonhar com objetos geométricos acontece na hora em que a anima está dialogando com o superego ( anima é a parte da psique que congrega desejos, aspirações de felicidade; superego é senso imanente de autoridade, legalidade interna ), no sentido de obter autorização para fazer alguma coisa que ela deseja. Na hora e que se estabelece este diálogo que visa reordenar a relação entre as leis e os desejos, é que o sujeito começa a sonhar com figurar geométricas. O geometrismo expressa um princípio de reorganização da mente. Por um motivo muito simples: o geométrico forma uma espécie de ponte entre o puramente matemático e o sensível. As matemáticas começam a se desenvolver primeiro pela geometria e só depois chegam à aritmética pura. No tempo de Platão, a geometria já estava bastante desenvolvida e a aritmética só começa a caminhar uns quatro séculos depois. É mais fácil raciocinar matematicamente com figuras geométricas do que com números abstratos. O geometrismo aparece como um diálogo, uma intermediação entre a parte sensível e a parte inteligível, ou como diria Jung, entre a anima e o superego.

O geometrismo é um recuo para uma reorganização interior, um rearranjo entre as exigências da alma humana e o senso de ordem, hierarquia lógica, realidade firme, etc. Visto assim, o platonismo não é a filosofia de Platão, mas um tendência que reaparece a todo momento, sempre que o homem sente a necessidade de refluir desde um situação exterior caótica até um princípio espiritual, interno, invisível ou transcendente de organização. E se é assim, sempre que houver uma situação de caos social, intelectual, moral, ressurgirá algum platonismo, ou seja, uma divisão do mundo em dois estratos, dando mais atenção ao estrato superior interno, representado em geral por figuras e relações de tipo geométrico. Veremos isto às portas da Renascença, época de muito caos, de dissolução da unidade da civilização cristã, e onde indivíduos mais sensíveis, como Kepler, sentem a necessidade de restaurar a doutrina platônica sob as formas geométricas do cosmos. Segundo Kepler, haveria entre as distintas esferas planetárias as mesmas relações que existem na sequência dos sólidos geométricos platônicos. O desejo de encontrar na realidade externa um princípio geométrico é um desejo de ordenação. Do mesmo modo, a queda do marxismo após a revelação dos crimes de Stalin por Kruschev precipitou a intelectualidade européia numa crise de consciência para a qual encontrou alívio aderindo ao estruturalismo de Cl. Lévi-Strauss, uma espécie de geometrismo antropológico que, inspirado no rigorismo linguístico de Saussure, reflui do devir histórico para a busca das estruturas permanentes.

Ora, só procuramos ordenar o que está desordenado. Quando você está se sentindo perfeitamente bem na confusão e na variedade do mundo externo, não quer organizá-lo de maneira alguma. A distinção que faz o Worringer entre a arte primitiva ou geometrizante e a arte clássica de tendências mais naturalísticas é a distinção que existe entre o homem que teme o cosmos e o que se sente bem nele. Mas este sente-se bem porque está um pouco fora dele, protegido por uma camada — Lévi-Strauss dizia “almofada” –que é a própria civilização.

A época de Platão era uma época de caos moral muito grande. Platão tinha o impulso de reformar, reordenar o mundo todo; tinha um projeto político para o mundo inteiro, principalmente para Atenas. Na famosa Carta VII ele explica que o grande objetivo de sua vida tinha sido reformar politicamente a Grécia. Platão não era só um filósofo, era um homem público, um homem de ação. Vemos na biografia de Platão que este impulso reformador e reordenador se defronta com uma série impressionante de fracassos, num dos quais ele tenta dar seu apoio a um golpe de Estado que teria sido dado por um discípulo seu numa cidade vizinha; tinha ele a idéia de, a partir desta cidade, reordenar a Grécia, voltando vitorioso para Atenas, como fez depois Mohammed ( Maomé ) – saiu, reformou a cidade vizinha e voltou à sua, para reformá-la nos moldes da primeira. Platão faz uma espécie de Hégira – mas não dá certo. O golpe de Estado é reprimido, Platão é preso e vendido como escravo na feira, sendo recomprado por seus discípulos.

Sócrates não teve nenhum intuito de agir politicamente, a sua é um tipo de filosofia muito mais pura que a de Platão, mistura de filósofo e estadista — reformador, político, moralista, profeta. Saindo desta e de outras experiências do mesmo teor, ele inicia, na maturidade, quando começa a se tornar independente do mundo socrático para criar seu próprio mundo filosófico, uma transição marcada por um abstratismo, uma geometrização e uma absolutização da divisão do mundo em dois estratos. Em parte, essa mudança na orientação da filosofia de Platão acontece por força destas experiências que mostram ao filósofo o caráter rebelde do caos do mundo, que não se curva tão facilmente aos nossos impulsos reformadores. Aí ele sente que antes de reformar o mundo é preciso fazer uma espécie de interiorização, uma reforma do mundo interior, uma reordenação conceptual para mais tarde tentar com base nela reorganizar o mundo. O empreendimento não foi totalmente fracassado porque toda a proposta pedagógica que Platão oferece para a reforma do mundo acaba sendo adotada, letra por letra, pelo clero católico. Se observarem o que é a educação de um padre na igreja e perguntarem de onde a Igreja tirou isto, esta idéia de uma preparação interior até que o sujeito esteja pronto para atuar no mundo, nada encontrarão nos Evangelhos ou no Antigo Testamento. Não há fontes cristãs deste modelo: sua fonte é o velho Platão. Na famosa República Platônica, a chefia é conferida aos filósofos mais profundos; a filosofia deles é uniforme, todos pensam igual, numa espécie de clero filosófico. Esta proposta não foi adotada na política mundial, mas o foi na organização da Igreja. Neste sentido, a proposta platônica perdeu a batalha na Grécia mas venceu em uma outra parte do mundo, justamente a parte que continha em si as mais promissoras sementes de futuro, as sementes da civilização européia que, sem sombra de dúvida, é obra da Igreja.

Organicismo versus geometrismo

Em contraste com isto, vemos que Aristóteles, pertencente a uma família de médicos e tendo, muito provavelmente estudado anatomia desde pequeno, não tendo nenhum talento especial para matemáticas, e ao contrário, manifestando certa birra com elas, e especialmente com o matematismo, se mostra um homem muito mais inclinado a conceber a idéia de formanão segundo um modelo geométrico, mas segundo o modelo do corpo vivente, seja do ser humano ou do animal. Daí parte uma série de tendências características do pensamento aristotélico. Aristóteles é o inventor da biologia e podemos tomar a sua filosofia como protótipo do pensamento biológico – o que toma o ser vivente como modelo do real. Ora, o ser vivente não é encontrado num outro mundo, através de um pensamento conceptual, mas sim neste mesmo e com os dois olhos da cara. É possível vê-lo, tocá-lo, cheirá-lo, examiná-lo, observá-lo no seu surgimento, no deu desenvolvimento, na sua plenitude, declínio e morte.

A primeira coisa que se observa num organismo é a inseparabilidade que existe entre a unidade e a variedade que o compõe. O organismo tem a característica de morrer se for cortado pelo meio. Se perder a unidade, já não existe mais. Por outro lado, é uma unidade composta de uma diversidade, de uma diversificação muito grande de órgãos – por isso mesmo se chama organismo (conjunto harmônico de órgãos que funcionam para um mesmo fim). Se você observar os vários órgãos que compõem qualquer corpo vivente, vai ver que não há nenhuma maneira de explicar a coordenação entre eles, senão em vista dos fins a que este organismo visa. Os vários órgãos são tão diferentes entre si que somente funcionam de maneira coordenada se o organismo todo tender a um determinado fim. Quanto mais dirigido a um fim claro e definido está o organismo, mais harmoniosamente funcionam os seus vários órgãos. Por isto, a ginástica ou qualquer disciplina funcionam, porque acostumam todos os órgãos a agirem de uma maneira sincrônica e harmônica, em vez de se dispersarem. Esta harmonia é a própria integridade do corpo humano. Quando os órgãos se rebelam uns contra os outros é a doença, e em seguida a morte. Quando o organismo morre, ele se decompõe, suas partes mínimas separam-se e adquirem vida autônoma. Perde a coesão, a harmonia, s subordinação e coordenação entre as partes. Tudo isto são observações que devem ter ocorrido a Aristóteles muito precocemente, muito antes de que ele as formulasse filosoficamente.

O corpo humano tem ainda a característica de ser marcadamente hierárquico. No organismo, nem todos os órgãos têm a mesma importância vital. Temos partes do corpo humano que nós mesmos incessantemente cortamos e jogamos fora: cabelos, unhas. Outras que expelimos constantemente. Outras que são substituídas: hoje sabemos que todas as células são trocadas de tempos em tempos. Naquele tempo não se sabia, mas era fácil ter uma certa antevisão disto. Temos órgãos que não podem ser eliminados, pelo menos no todo, sem um grave prejuízo para o corpo. Se nos cortam uma perna, continuamos vivendo, embora de maneira deficiente. E outros que não podem ser cortados, nem mesmo tocados – se você for acertado ali está morto. Sabemos que podemos viver sem uma parte do cérebro, mas não sem cérebro nenhum. Mas não podemos viver sem metade do coração, ou sem ossos. Esta gradação hierárquica de importância vital é outra característica do organismo. Então, temos:

1º) Unidade na variedade.

2º) Identidade entre a coesão e a existência real (a coesão é a própria possibilidade de existência).

3º) Caráter hierárquico.

Unidade diversificada, coordenação e subordinação são as carecterísticas mais evidentes do ser biológico.

Aula III – Parte II

 

Pensamento e atualidade de Aristóteles – Aula II (Parte II)

Apostila do Seminário de Filosofia

SEGUNDA AULA

Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 22 de março de 1994.

Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Carlos Madeira
e Kátia Torres Ribeiro

2a parte

Aristóteles não aconteceu na Grécia

Vamos começar por ver a imagem de Aristóteles no tempo dele mesmo. Quase todo o seu trabalho foi desenvolvido ou na Academia ou na escola que ele fundou num lugar chamado Liceu, nome que depois se torna a designação de escola mesma. Somente uma parte das idéias dele circulou fora da Academia e do Liceu. Na Academia ele dava cursos de retórica e chegou a ser famoso nesse campo durante algum tempo. Mais tarde, funda uma nova escola de retórica, ainda antes de fundar o Liceu. (ver Cronologia, em Documentos Auxiliares I).

Aristóteles permaneceu vinte anos na Academia, dos dezenove aos 38, quando se dirige a este lugar chamado Atarna, governado por um amigo seu chamado Hermias, com cuja sobrinha ou irmã – não se sabe ao certo -, chamada Pítias, virá a se casar.

O ensino propriamente dito começa aos 49 anos. Isto dá o que pensar. Decorreram trinta anos de estudos e preparações antes de ele fundar sua própria escola. Dentro da Academia, ele se incumbia de algumas matérias, mas menores – retórica e dialética. Depois funda uma escola, mas ainda de retórica, não uma escola filosófica. Portanto, Aristóteles sentiu-se firme para fazer a transmissão sistemática de suas idéias só trinta anos depois de ter começado seu aprendizado filosófico. Esta duração permanecerá como uma instituição até a Renascença. Um professor universitário, na Idade Média começava a ensinar mais ou menos aos 49 ou cinqüenta anos. O período de formação era de trinta anos.

Não só o trabalho filosófico de Aristóteles teve pouca difusão, ao contrário de suas obras literárias ou retóricas, mas também Aristóteles, ao contrário de Platão, teve muito azar com os discípulos. Nunca teve discípulos à sua altura. A Academia platônica continua atuando séculos além da morte do mestre, até depois da era cristã, quando surge o neoplatonismo. O Liceu morre praticamente com Aristóteles. Continua existindo institucionalmente, a escola funciona por mais dez ou quinze gerações de diretores que se chamavam escoliarcas, porém nenhum deles tinha o menor talento para manter o nível de ensino e de pesquisa do mestre. Além do fato de Aristóteles ser estrangeiro, é preciso levar em conta que ele teve algumas atitudes consideradas desagradáveis por seus colegas. Ele é rodeado desde o início por uma hostilidade que se expressa seja através do silêncio, seja através do ataque direto, seja através da calúnia e da intriga. Estas vêm sobretudo com a escola epicúrea. Epicuro era um contemporâneo de Aristóteles e hoje, pela reconstituição dos textos, vemos que da obra aristotélica só conhecia a parte publicada, não filosófica. Todas as opiniões que Epicuro emite sobre Aristóteles não são, pois, sobre o Aristóteles que conhecemos. Vemos Epicuro discutindo certas idéias aristotélicas que nós não conhecemos pelos textos. Que Aristóteles era este que Epicuro discutia? Era o platônico. Os primeiros escritos de Aristóteles, literários, eram pura divulgação da Academia. Neles exortava as pessoas ao estudo da filosofia e louvava a atividade da Academia platônica. Ou seja, o Aristóteles dos contemporâneos era um platônico que, sendo professor de retórica, tendia a assumir na defesa da escola uma atitude polêmica e um pouco incômoda.

O aristotelismo como movimento filosófico é tardio. Começa a se formar timidamente nos séculos III e IV da era cristã, isto é, sete séculos depois da morte de Aristóteles (já tive aliás um arranca-rabo com um cretino da SBPC que afirmava que nesses séculos ninguém tinha lido nada de Aristóteles, quando ele é que não tinha lido nada) . É um fenômmeno mais ou menos como o que ocorreu com Leibniz, filósofo do século XVIII cuja obra só começa a se tornar mesmo conhecida a partir do século XX. Ele também tinha escritos de ordem mais popular e outros mais técnicos. Na sua época foram publicados os primeiros, formou-se uma imagem de um determinado Leibniz, justamente o que é caricaturado por Voltaire no personagem do Dr. Pangloss, em “Candide”. Quando Leibniz já estava mais ou menos esquecido e enterrado sob a figura do Dr. Pangloss, abrem-se as gavetas e começam a surgir manuscritos. Esta descoberta propicia uma série de avanços sobretudo na filosofia da matemática, na metodologia da física etc. Leibniz provoca uma revolução dois séculos depois de falecido.

Com Aristóteles esta revolução póstuma não acontece antes de sete séculos. Aí está a primeira retificação que devemos fazer da sua imagem histórica. Aristóteles não é um fenômeno grego. Na Grécia não aconteceu nenhum Aristóteles. Aconteceu um fato insignificante: havia uma escola de retórica chefiada por um estrangeiro meio incômodo que fazia propaganda do guru dele, Platão, e que acabou indo embora da cidade. Isto é praticamente o que se sabia de Aristóteles na Grécia nos séculos que se seguiram à sua morte. Se compararmos a influência decisiva de Aristóteles na civilização cristã da Idade Média até hoje com aquela que ele exerceu na Grécia, não é errado concluir que, na Grécia, praticamente não existiu nenhum Aristóteles, e um aristotelismo não existiu de maneira alguma.

Se hoje podemos dizer como Émile Boutroux (autor da pequena biografia que anexamos aos textos deste curso) que Aristóteles é a máxima expressão do gênio grego, seremos obrigados a concluir que o gênio grego, desconhecendo Aristóteles, se desconheceu a si mesmo. Aristóteles não é propriamente uma expressão do gênio grego, é uma semente do gênio grego que não frutificou na Grécia. Aristóteles não faz parte da autoconsciência grega. Faz parte do subconsciente grego. Era uma riqueza latente que foi desconhecida na própria Grécia e desenterrada depois, já na Idade Média, primeiro no mundo islâmico, depois na Europa. Este detalhe é de uma importância extraordinária e ninguém leva isso em conta. Todo mundo imagina Platão e Aristóteles como sendo as colunas mestras da civilização grega. Ora, Aristóteles na civilização grega não desempenhou função alguma. Não serviu para nada. Começou a servir muito tempo depois numa outra civilização, ou antes, em duas outras civilizações que ele fecundou com a herança do seu gênio e que aproveitaram essa contribuição cada qual segundo sua inclinação peculiar, gerando dois aristotelismos (e dois anti-aristotelismos) bem diferentes entre si. Se você disser que o platonismo foi um pilar na civilização grega nos seus últimos quatro séculos, isto é verdade. Mas o aristotelismo não. Só funcionou ali como uma pequena extensão da escola platônica, sem projeção própria e quase sem fisionomia própria.

O legado grego de confusões sobre Aristóteles

Isto é origem de muitas confusões. Porque, quando um filósofo é muito lido, muito discutido por pessoas inteligentes e discípulos hábeis, em vida, ele tem ocasião de se explicar muito bem sobre pontos obscuros. Como aconteceu com Platão. Já nas primeiras obras de Aristóteles vemos certas objeções que ele tinha à famosa teoria das idéias de Platão. E no último livro de Platão – o diálogo Das Leis, que não é bem um diálogo mas um tratado – já existe um princípio de reformulação da teoria das idéias, que Platão faz levando em conta as objeções de Aristóteles. Portanto podemos entender que o pensamento platônico, recebido e trabalhado por um discípulo particularmente brilhante, pôde se reformar e ser melhorado em vida do próprio mestre. Isto se deu tardiamente, pois Platão tinha mais de 80 anos quando escreveu as Leis, motivo pelo qual é um livro que já não tem o brilho literário e teatral das primeiras obras, mas é algo seco, árido e muitíssimo profundo. É o livro mais importante de Platão, a meu ver. A República foi escrita quando ele tinha cinqüenta e poucos anos e é uma exposição provisória. É no livro das Leis que vemos a potência do platonismo como filosofia capaz de evoluir e ir-se completando. Ora, esta potência surge justamente porque Platão mais jovem tinha encontrado um discípulo capaz de discutir as idéias e apontar as partes faltantes e eventualmente as contradições, de modo a estimular a continuação da investigação.

Isto nunca aconteceu com Aristóteles. Podemos dizer que suas idéias não foram discutidas, pelo menos com profundidade, nem mesmo dentro do Liceu. Dentre seus discípulos, o mais inteligente e brilhante parecia ser Teofrasto, que escreveu uma exposição da Metafísica de Aristóteles que mostra um suficiente domínio do assunto. Escreveu também um livro que depois ficou clássico, Os Caracteres, série de perfis psicológicos de tipos humanos, que poderia ser considerado parte da retórica, que é uma psicologia da comunicação entre grupos e tipos sociais. Porém quando dizemos que o melhor dos discípulos, o mais inteligente, não fez mais que uma reexposição e não um aprofundamento, temos de entender que entre os discípulos de Aristóteles não havia um pensador mais enérgico, mais criador. Aristóteles não teve esta sorte de encontrar discípulos capazes de ter uma reação criativa ao pensamento dele, pois a recepção passiva é apenas o começo de um aprendizado. Um aprofundamento sugere uma discussão de modo que aquele estilo de pensar permaneça em movimento e possa ser prosseguido dialeticamente, como fez Aristóteles com Platão.

Resultado: morto Aristóteles e morto Teofrasto, o Liceu afunda. Os escritos internos do Liceu que eram os mais interessantes e que são os que hoje conhecemos desaparecem inteiramente de circulação e os escritos populares continuam ainda a ser lidos, mas acabam desaparecendo também.

No século I a.C. ocorre uma reversão. Os escritos populares estavam quase totalmente desaparecidos, e ressurgem as apostilas e escritos internos do Liceu que são então editados por Andrônico de Rodes. Existe toda uma história mirabolante segundo a qual quando houve a perseguição aos aliados macedônicos entre os quais estava Aristóteles (Atenas estava em guerra com a Macedônia), uma coleção completa dos seus escritos teria sido escondida numa caverna onde permaneceu por três séculos, tendo sido depois levada a Roma, onde alguém começou a fazer uma edição. Mas tendo morrido este editor, a edição ficou para depois e no fim é Andrônico de Rodes – que era o décimo diretor do Liceu depois de Aristóteles – quem retoma os escritos e forma uma edição de conjunto. É claro que Aristóteles só poderia exercer uma influência no mundo a partir de uma edição dos textos. Mas isto também demorou algum tempo. Neste período, a escola epicurista, mesmo depois da morte de Epicuro, continuava crescendo e fazendo muitos discípulos. Esta não é bem uma escola filosófica, é um sistema de disciplinas psicológicas baseado nos seguintes princípios: nós vamos mesmo morrer, não existe nada após a morte, nada a esperar, os deuses também são materiais, eles também morrem; então o máximo que podemos fazer é nos fechar na escola filosófica e ficar meditando de modo a apagar os momentos maus e lembrar só os bons, e, se não houver momentos bons, você os inventa. Era uma técnica de evasão, uma espécie de cocaína filosófica. Ademais a escola epicúrea não fazia nenhuma exigência para a admissão dos alunos, aceitava qualquer um. Havia de tudo: ricaços, senhoras da sociedade, prostitutas, qualquer um. A escola prometia um alívio às pessoas. Mas no fundo ela confessa seu caráter mórbido porque o que é chamado de meditação filosófica é exclusivamente a tal história de apagar os momentos maus e se concentrar nos bons. Quando você é obrigado a viver de imaginação é porque está tudo perdido mesmo. Mas o fato é que uma oferta de alívio, falsa ou verdadeira, sempre faz sucesso. Com este sucesso, o velho desentendimento entre a escola epicúrea e a platônica, da qual Aristóteles era um porta-voz, fez com que a difamação contra a sua pessoa – não contra as idéias – prosseguisse até dentro da era cristã.

Uma coisa que nos surpreende até hoje é a capacidade de produção escrita dos autores antigos e medievais, realmente assombrosa. O próprio Aristóteles, se considerarmos que o que temos é aproximadamente um terço do que ele produziu – e a sua não foi uma vida longa -, seu volume de escrita é monstruoso.

Por esta situação toda, vê-se que esta obra está mais sujeita a más interpretações que a uma interpretação correta. Antes de ela ser publicada, já havia equívocos circulando, porque as pessoas já tinham uma imagem de Aristóteles feita a partir dos escritos literários, que mostravam idéias da Academia platônica. Idéias que ele veio depois a retificar ou abandonar. Quando os textos aparecem à luz, já é tarde: a confusão está formada, os equívocos estão consolidados.

A primeira desgraça que acontece com a filosofia de Aristóteles é que um de seus principais continuadores – Estratão de Lampsaco, um escoliarca, e que funciona durante algum tempo como porta-voz do Liceu aristotélico, já apresenta uma filosofia aristotélica alterada tal como ele a compreendia. Segundo ele, era uma filosofia empirista (aquela na qual somente a experiência que entra pelos cinco sentidos é fonte de conhecimento). Estratão, neste sentido, pode ser dito fundador do empirismo, que mais tarde será uma escola, em 1600. A filosofia de Aristóteles, portanto, já apareceu cortada pela metade.

Aristóteles, fundador do holismo.

Uma das características principais de Aristóteles é o desejo de organicidade, de totalidade sistêmica; o demasiado abstrato é para ele meia verdade. A realidade aparece para ele sempre como um todo coeso e organizado e que existe no tempo – exatamente como o corpo humano. Aristóteles não apenas era médico de formação, mas pertencia a uma família de médicos, dez gerações de médicos. Consta que quando pequeno já estudava anatomia, com o pai. A visão constante do corpo humano no aspecto anatômico e fisiológico vai desenvolvendo nele muito profundamente esta distinção entre o vivo e o não vivo. No fundo, o corpo do ser vivente é para Aristóteles o supremo modelo da realidade. Este é um aspecto que parece não ter sido suficientemente ressaltado pelos intérpretes até hoje.

O que hoje chamamos de holismo foi inventado por Aristóteles. É a busca de uma visão da realidade que corresponda às características de um organismo total e vivente. O holismo se opõe ao mecanicismo, que vê a realidade como uma organização do tipo mecânico, ao dualismo, que divide o real em dois setores separados (a divisão, para o organismo, é a morte), ao transcendentalismo, que é um dualismo hierárquico, e a toda forma de redutivismo, que é a explicação da realidade com base no predomínio exclusivo de um só de seus elementos ou fatores. Não espanta que a rejeição da física aristotélica tenha produzido, no Renascimento, o advento do reino do mecanicismo, com Newton e Descartes. A característica da organização mecânica é a completa separação entre as partes, de maneira que, em princípio, qualquer uma delas pode ser trocada por uma outra similar. No organismo isto não é possível. No corpo humano algumas partes podem ser trocadas, mas outras não. Podemos supor um transplante de coração, mas como seria um transplante de cabeça? Resultaria não em curar uma pessoa, mas em transformá-la em outra. Uma vez feito o transplante, o indivíduo poderia com igual razão dizer: “Fiz a cirurgia e estou curado” e “Fiz a cirurgia e estou morto”. O tipo de sistema que chamamos orgânico tem uma espécie de coesão por afinidade ou familiaridade entre as partes.

A teoria das distinções e a da potência e do ato, princípios básicos do método.

O organismo não é totalmente separável em partes, embora suas partes sejam distinguíveis. A teoria das distinções, que é um legado importantíssimo de Aristóteles que será aprofundado pelos escolásticos, é um resultado direto do treinamento médico e da experiência biológica do mestre.

Estudando anatomia, aprende-se a distinguir rigorosamente todos os órgãos e partes do corpo, e a ver que, por um lado, eles são efetivamente distintos, com formas e funções diferentes que não são trocáveis (o cérebro não poderia fazer o trabalho do pulmão, e assim por diante),e, por outro lado, não são separáveis. Esta é a característica fundamental do que denominamos organismo: unidade na distinção.

A constatação deste traço do organismo vivente deixa um profundo impacto na mente de Aristóteles que, em todas as questões que tratar, mesmo fora do âmbito fisiológico ou biológico, procurará sempre este tipo de conexão distintiva entre as partes. Procurará distinguir as partes com a máxima clareza possível e captar o princípio de coesão que dá unidade ao fenômeno e que permite que ele exista. Daí também vai sair o conceito de evolução orgânica, pelo qual a forma de um ser já não é apenas o seu esquema estático, mas é a fórmula das transformações que ele sofrerá no tempo. Quando você nasce, seu corpo não tem só uma forma determinada, com um peso determinado, uma figura determinada, mas tem a fórmula de um crescimento, mediante o qual ele poderá absorver elementos de fora que serão integrados dentro de seu organismo e que, aumentando o seu tamanho, farão com que ele sofra transformações nas quais no entanto ele não perderá sua forma e sua identidade, mas ao contrário, a manifestará. Aristóteles chama isso de passagem da potência (virtualidade, potencialidade) ao ato (efetividade, atualidade, manifestação). Esta é uma das idéias mais profundas de toda a história humana e é de fato, se não a principal idéia do método em Aristóteles, uma das primeiras que lhe ocorrem, creio eu, por causa dos estudos de fisiologia. A evolução orgânica é para Aristóteles um princípio explicativo, mas não apenas uma regra do método. Ela é um fato real da natureza, não um preceito metodológico. Em Aristóteles, como não poderia deixar de ser, há distinção mas não separação entre o método e o conteúdo efetivo do conhecimento: assim, os fatos da biologia são eles mesmos expressões da totalidade, da evolução orgânica ou passagem da potência ao ato, da distinção-união entre matéria e forma, ao mesmo tempo que estes princípios são também regras do método que vai estudar esses mesmos fatos. Assim também as leis da lógica aristotélica não serão puras leis formais do pensamento, mas uma expressão das leis ontológicas que governam a realidade mesma, sem deixarem de ser também leis formais do pensamento.

O essencialismo, forma platônica do redutivismo

Uma das principais intuições de Aristóteles é esta da unidade vivente do real. Vida e unidade são conceitos básicos para a compreensão da filosofia de Aristóteles. Por causa deste traço organicista e sistêmico, que é ao mesmo tempo uma propensão do seu estilo intelectual e um traço da sua personalidade, ele revelará uma extrema ojeriza a tudo o que se chama abstratismo (conceber por pura lógica o conceito de alguma coisa, e em seguida tratar este conceito como se fosse ele mesmo uma coisa real). O abstratismo consiste em tomar meras distinções lógicas como se fossem separações reais. Por exemplo, de tudo aquilo que compõe um ser real, abstraímos, separamos pelo intelecto um determinado traço de fato distinguível. Olhando vocês aqui posso distinguir entre a sua forma e a sua cor – elas não são a mesma coisa. Posso compreender que uma pessoa que está aqui pode ir à praia amanhã e voltar com outra cor sem que isto tenha alterado a sua forma. Ou a pessoa pode emagrecer ou engordar sem perder a cor. Se estes dois aspectos têm histórias distintas, eles são distintos em si mesmos. Porém, posso tomar uma destas características e perguntar qual é mais importante, qual a mais básica entre as duas. Posso chegar à conclusão de que a cor é simplesmente um efeito da forma. Assim, peguei uma das qualidades e a transformei numa qualidade básica da qual a outra é apenas um fenômeno secundário. Aí tomei a forma e a cor como efetivamente separadas. É precisamente esta separação abstrativa que constituía a causa dos exageros da escola platônica. Sócrates já havia distinguido nos entes dois aspectos: seu conceito — ou essência — e a sua existência. Se fazemos um conceito de cachorro, este é aplicável a todos os cachorros da existência, mas o conceito permanece o mesmo, enquanto os cachorros nascem, crescem e morrem. E a escola platônica optou pela hipótese de que o aspecto conceitual das coisas – o aspecto que se referia à semelhança entre o indivíduo e os outros da mesma espécie – era o básico da realidade, e de que a diferença de indivíduo para indivíduo e os vários traços adquiridos no decorrer da existência eram apenas um véu de aparências. Resultado: o mundo da experiência, tal como aparece para nós, seria apenas uma tela que mostra as aparências de um processo que no fundo somente se refere aos conceitos das espécies. Se você pegar o conceito de cachorro, por exemplo, verá que ele já implica os limites daquilo que pode vir a acontecer a um cachorro. O conceito de cachorro não permite que o cachorro voe – portanto, o cachorro não vai voar. Mas não há nada que contradiga, no conceito de cachorro, que ele seja branco ou marrom. Portanto o conceito aparece como um quadro dentro do qual estão todas as possibilidades que o ser pode manifestar no decurso da existência.

O conceito se refere à essência, àquilo que os entes são, independentemente de existirem ou não. Cachorro é cachorro antes de existir, quando existe e depois que parou de existir. Um cachorro morto não se transforma em outra coisa. É um cachorro. Desta constatação, porém, a escola platônica conclui que o aspecto existencial é secundário e que o principal é o aspecto essencial que se expressa no conceito. Este tipo de separação que hierarquiza a realidade e tampa uma parte dela, sob o pretexto de que é a manifestação de uma outra esfera mais profunda, é o que desagrada a Aristóteles. Porque , como fisiologista, médico de uma família de médicos, está acostumado a observar o corpo dos seres viventes e a idéia de que a realidade possa ser constituída de dois estratos mais ou menos separados não lhe agrada de maneira alguma, porque ele nunca viu nada na esfera dos seres vivos que seja composto de dois pedaços. Tudo tem unidade, organicidade.

Uma das primeiras preocupações de Aristóteles é ver se consegue restaurar o sentido da ligação entre estas duas faixas da realidade que o platonismo havia separado. Ele percebe, e admite com os platônicos, que existem o aspecto existencial e o conceptual. Mas qual o nexo entre um e outro? Por exemplo, se sabemos qual é a essência da espécie “cachorro”, isto não nos explica porque existem cachorros. Compreendemos que se não existisse absolutamente nada no mundo, as essências continuariam as mesmas, porque seriam, como mais tarde diria Leibniz, esquemas de possibilidades, e estes esquemas permaneceriam logicamente distintos. Se não existissem cachorros nem camelos, ainda assim cada uma destas espécies corresponderia a um determinado esquema de possibilidades que lhe é próprio e não se confunde com outros de maneira alguma. Podemos aqui e agora inventar os conceitos de espécies que não existem mas que sejam logicamente distintas. Aristóteles percebe que a grande operação da escola platônica, que é a de subir da existência dos seres múltiplos até o conceito das suas espécies tinha resolvido o problema pela metade. Quando, porém, partindo da multiplicidade dos seres, eu apreendo por abstração a comunidade de traços que perfila estes seres em várias espécies distintas, só fiz um saber do tipo classificatório. Ora, saber classificar os entes é uma coisa, saber explica-los é outra muito diferente.

Aristóteles percebia – não sei se ele fez esta imagem , mas a mim me ocorre – que o platonismo é uma espécie de anatomia do mundo, que separava o mundo nos seus pedaços , mas faltava a fisiologia. O platonismo tinha distinguido os órgãos ou estratos exatamente como numa dissecação você vai separando tecidos. Platão, basicamente , tinha separado o mundo em três grandes estratos – mundo sensível, mundo das idéias e o terceiro estrato supremo dos princípios ou leis. Tudo isto – dizia Aristóteles – existe inegavelmente , mas entre ter classificado a hierarquia e saber como funciona existe a mesma distância que há entre anatomia e fisiologia. A ciência da anatomia desenvolveu-se muitíssimo cedo na história do mundo e a fisiologia muito mais tarde . Uma coisa é dividir algo em pedaços, outra saber como funciona. Quem quer que tenha tentado consertar um carro perceberá que isto é assim mesmo na esfera mecânica. Desmontar o carro e classificá-lo peça por peça é relativamente fácil. Mas remonta-lo e fazê-lo funcionar de novo é outra coisa.

O platonismo era uma anatomia abstrata do mundo. Aristóteles, que tinha uma formação pessoal totalmente diferente da dos outros membros da Academia platônica, os quais eram todos, por suas origens, matemáticos e geômetras, enquanto ele era médico e fisiologista, percebe que o platonismo tinha seguido um modo de pensar típico do geômetra ou do matemático , que é o de formar os conceitos separados e encadeá-los numa ordem lógica. E percebeu claramente que isto não basta, que além de expor a hierarquia lógica do mundo, é preciso explicar como as coisas vêm à existência, como o mundo funciona efetivamente.

Desta visão cosmológica do platonismo decorre uma gnoseologia ou teoria do conhecimento. A gnoseologia platônica , vendo que existem dois estratos separados, um, o da experiência, outro, o estrato essencial ou conceptual, e não conseguindo estabelecer nenhuma passagem entre eles, só podia explicar o conhecimento pelo famoso expediente da recordação ou rememoração (anamnesis). A pergunta é a seguinte: Se estes estratos estão rigidamente separados, como é possível o conhecimento? Se vivemos num mundo de aparências ilusórias, que aparecem e desaparecem no tempo , mas por outro lado a nossa mente é capaz de, partindo das aparências ilusórias, chegar até o conceito, que é a imagem estável e permanente da verdadeira realidade, parece que esta nossa habilidade é contraditória com o próprio conteúdo da teoria. Se estamos vivendo no mundo das aparências, como a partir delas chegamos às essências? A aparência só nos revela a aparência. Se captamos algo por trás dela não pode ser pelos mesmos meios através dos quais nós captamos a aparência. Portanto, o fato mesmo de que nós consigamos fazer conceitos das coisas é um mistério inexplicável desde o ponto de vista platônico. Platão propõe então a teoria da recordação, a anamnese. Diz ele que antes de nascermos, nossas almas já existem no mundo eterno das idéias, onde vemos os conceitos puros ou as essências de todas as coisas. Daí, quando entramos no fio do tempo, passando a existir neste mundo de aparências , esquecemos uma boa parte mas um pouquinho sobra. Então, um acaso feliz ou um interrogatório bem conduzido, como numa espécie de psicanálise, pode nos fazer recordar este conhecimento que jaz no fundo de nós. Ora, se é assim e já está lá desde que nascemos, a experiência real não é muito útil. Só serve para suscitar em nós o desejo de conhecer os conceitos puros. Por isto, Platão é chamado um racionalista (o fundamental do conhecimento sendo obtido pela razão e não pela experiência). Em Platão, a percepção real, que nos entrega somente aparências, só serve para despertar o apetite do conhecimento, mas o fundamental deste é obtido por um modo puramente intelectual ou racional, que é o interrogatório ou a discussão dialética que vai fazendo você recordar as idéias centrais. Platão expõe por um lado esta cosmologia onde o mundo é feito de estratos totalmente separados e por outro, a gnoseologia do tipo racionalista, onde a experiência não desempenha nenhum papel.

Perante a gnoseologia de Platão, Aristóteles fará a mesma objeção que fez à cosmologia. Dirá que não é possível que estas duas formas de conhecimento – a que obtenho pelos sentidos e a que obtenho pela razão – estejam completamente separadas. Porque vejo que o indivíduo que apreende os dados dos sentidos é o mesmo que intelige pela razão os conceitos puros. Vejo claramente que existe uma caminhada, uma ascensão contínua e gradativa, desde a experiência até o conceito, não um salto absoluto como no caso platônico. Tanto que vai ser difícil encontrar (esta é uma observação fundamental de Aristóteles) algum dado dos sentidos que esteja completamente livre de interferências da razão. Sempre existe um princípio de organização racional até na percepção sensível. Por outro lado, vai ser muito difícil achar algum conceito racional totalmente puro, que não deva nada à experiência. Se nunca tivéssemos visto um cavalo, de onde iríamos extrair o conceito de cavalo? Aristóteles vê que entre o conhecimento por experiência e o conhecimento pela razão, entre o conhecimento do mundo das aparências e o do mundo das essências, não existe um salto, nem mesmo um salto retroativo como pretendia o platonismo, mas existe uma ascensão progressiva e muito problemática. Às vezes conseguimos obter os conceitos puros, às vezes não. Se fosse tão natural saltarmos da experiência para os conceitos, seria muitíssimo fácil apreender em quaisquer fenômenos as devidas separações e classificações de gêneros e espécies e freqüentemente isto é muito difícil. Aristóteles sabe disso porque ele tentava classificar os animais, enquanto na escola platônica só se classificavam idéias puras ou idéias geométricas. Aristóteles punha a mão na massa, e via que classificar fenômenos reais (por exemplo, as famílias de espécies animais) não era o mesmo que classificar conceitos puros ou geométricos. Hoje sabemos que os elefantes são parentes dos cavalos, que formam uma mesma família; logicamente pertencem à mesma espécie. Mas como por métodos platônicos ou dialéticos se chegaria a uma coisa dessas? Portanto, as distinções de gêneros, espécies e as classificações dos seres não podem ser feitas exclusivamente por método lógico. Têm de ter base na experiência e na separação e classificação das próprias aparências, antes de partir para a classificação dos conceitos. Tudo isto, que é uma descoberta de Aristóteles, se torna a base do método científico para sempre.

Muitas coisas que foram matéria de discussão filosófica 2400 anos atrás, hoje são matéria de pesquisa experimental. A inseparabilidade do sensível e do racional, afirmada por Aristóteles, foi inteiramente demonstrada por Jean Piaget na esfera experimental. Piaget demonstra por meios experimentais que não existe sensação pura, na qual não entre um elemento organizativo prévio. A sensação totalmente informe não seria notada por nós. A sensação pura não poderia ser distinguida de outra sensação, não poderia ser sentida; se ela é distinguida, é porquê já existe um princípio de classificação e organização imanente. Mas a organização não é sensitiva, é racional. A idéia de sensação pura hoje em dia é considerada uma quimera e a idéia da pura razão igualmente. Podemos conceber estas coisas, mas apenas como possibilidades lógicas, não como coisas reais.

O organismo humano é um organismo, portanto organizado. Já recebe as sensações ordenadas segundo a forma do corpo e isto é um princípio da razão, já que, diz Aristóteles, a alma é a forma do corpo e a alma do homem é intrinsecamente racional. Você tem sensações visuais e auditivas distintas, não vê os sons nem ouve as cores. Este é um princípio de distinção inerente à própria forma do corpo. Toda sensação já é classificatória. Sentir uma coisa já é distingui-la das outras. Portanto, o aspecto sensível e o racional não são separáveis realmente, são apenas distinguíveis.

A chave da teoria do conhecimento aristotélica é a seguinte: distinto é uma coisa e separado é outra. A audição é distinta da visão, mas não posso ouvir às segundas quartas e sábados e ver às terças, quintas e sextas. Elas não são separáveis realmente. Do mesmo modo, o aspecto racional, organizativo, não é separável da experiência sensível que nos dá a matéria do conhecimento. Isto significa que a distinção entre o experimental e o racional é uma distinção mental, apenas uma distinção e não uma separação, — uma crítica fundamental à gnoseologia platônica, que trata como separação o que é apenas distinção. São dois modos de ver. Como nome e sobrenome. Você tanto pode ser encarado como indivíduo, como pode sê-lo como membro da família. Dois aspectos distintos, mas inseparáveis. Ou a distinção entre camelo e fisiologia do camelo. Um não é o outro – mas existe algum camelo sem fisiologia do camelo, ou fisiologia de camelo sem camelo?

A distinção entre o racional e o experimental é uma distinção de nomes — ou de pontos-de-vista — e não de coisas reais. A distinção entre distinção e separação é outra conquista imorredoura de Aristóteles. Muitos debates hoje entre o que é holista ou cientificista seriam resolvidos na hora mediante a simples aplicação desta distinção.

Outra questão: entre conhecimento sensível e conhecimento racional, qual a ordem dos fatores, qual é primeiro e qual é segundo? Aristóteles responderá que vamos dos sentidos para o pensamento. Porém este sentir é puro, sem qualquer contaminação do pensamento? A resposta é não. Para que o sentir fizesse pensar seria necessário que houvesse um elemento de pensamento dentro dele. Senão, teríamos o milagre de uma coisa que não existe mais produzindo outra que não existe ainda. Para que a experiência sensível possa gerar um raciocínio, é preciso que haja dentro dela uma semente de raciocínio. É mais ou menos o que vai dizer 2400 anos depois o Piaget. É claro que o sentir e o pensar representam etapas do conhecimento, e não formas de conhecimento radicalmente distintas. Se você tem de um lado o sentir, do outro o pensar – o que diz Aristóteles? Não é uma distinção de lados, mas de etapas. É como a distinção que existe entre uma criança e um adulto. O adulto que você será, a forma do adulto, já não está na criança? E este adulto que está aí, não é aquela mesma criança? É uma distinção mais nominal entre etapas que uma distinção entre seres separados ou aspectos separados e simultâneos.

É este senso da organicidade que é a coisa central para compreender o pensamento de Aristóteles, e talvez a maior contribuição dele. Isto corresponde, de fato, ao modo de sentir quotidiano, do senso comum. O sujeito são pensa de maneira orgânica. Todo mundo pensa organicamente em todas as questões reais da vida.

Platão foi chamado “o divino Platão”, uma espécie de profeta ou anjo, alguém que tem uma visão do outro mundo. A coisa mais característica de Aristóteles é sua profunda e total humanidade – pensar tudo na escala do ser humano realmente existente. Dessa diferença decorre uma diferença moral profunda. A moral platônica é moral de perfeições celestes. A moral aristotélica é uma tentativa de melhorar o homem aos poucos, partindo de suas limitações e aceitando-as, em vez de condená-las em nome de um padrão moral abstrato. Não há fundamental contradição entre as duas morais, no entanto. Poderíamos comparar as relações entre platonismo e aristotelismo à trindade cristã: existe um Deus Pai incognoscível, inatingível, mas é preciso existir o Deus que desce até você e vem viver o destino humano na sua plenitude. Entre os dois, você tem o Espírito Santo que é a relação de amor. O eterno e o temporal, o divino e o humano estão unidos por uma aliança indissolúvel. Jogar um destes aspectos contra o outro é ir contra o ser humano. Não podemos jogar platonismo contra aristotelismo, que na esfera filosófica correspondem a estes dois aspectos. Ir por um destes caminhos ou pelo outro é quase uma questão de temperamento, mas um deles não nega o outro, na medida em que o prolonga e o realiza.

Todas as críticas de Aristóteles ao platonismo só visam a trazê-lo do céu para a Terra, para realizá-lo. Aristóteles poderia dizer de Platão o mesmo que Cristo disse do Velho Testamento: “Não vim revogá-lo, vim realizá-lo.” A ordem de realização de uma coisa é o inverso da sua ordem de concepção – outra descoberta aristotélica. Para conceber o plano de uma casa, você concebe a casa no todo e depois no detalhe. E para construir? Pedaço por pedaço até chegar ao todo. A ordem do conhecer e a ordem do ser são inversas e complementares. Portanto, a realização do platonismo é a inversão das suas prioridades teóricas.

Aula III – Parte I

 

Pensamento e atualidade de Aristóteles – Aula II (Parte I)

Apostila do Seminário de Filosofia

SEGUNDA AULA

Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 22 de março de 1994.

Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Carlos Madeira
e Kátia Torres Ribeiro

1a parte

NB – As explicações introdutórias sobre o historicismo, um tanto repetitivas, acabaram tomando toda a primeira metade de aula em razão de perguntas dos alunos. Como o intuito destas apostilas é documentar o mais fielmente possível a exposição oral, julguei melhor conservar toda a transcrição dessa parte, que numa versão em livro seria drasticamente abreviada. O leitor que preferir saltá-la poderá ir direto para o parágrafo “Danos que o historicismo trouxe à nossa compreensão de Aristóteles”, sem prejuízo da compreensão do argumento central. – O. C.

A multiplicidade de visões a respeito de Aristóteles é causada pelo fato de que cada estudioso toma como centro da sua reexposição ou reconstrução do pensamento de Aristóteles os pontos que lhe parecem mais importantes, sem perguntar se o próprio Aristóteles concordaria. Às vezes duas interpretações opostas são coincidentes no sentido de que, opondo-se sobre um mesmo tópico, ambas fazem dele o ponto de partida para suas respectivas reconstruções. Para exemplificar isto, podemos partir de dois pólos extremos, das duas interpretações mais antagônicas. Estas são, de um lado, o trabalho de Franz Brentano, da metade do século passado; do outro, o trabalho de Werner Jaeger. Brentano é o protótipo dos que procuram tomar a filosofia aristotélica como um sistema perfeito e acabado, como um todo fechado, quase numa visão estruturalista. Jaeger é um filólogo do século XX, que reconstruiu através dos textos o que teria sido a evolução biográfica do pensamento de Aristóteles. Ora, entre um pensamento que se surge como um sistema perfeito e acabado e um pensamento que evolui no tempo, através da luta do filósofo consigo mesmo, dificilmente podemos ter uma conciliação perfeita. Vai ter de haver uma arbitragem entre as duas visões. A mim me parece que as duas interpretações antagônicas são igualmente possíveis e úteis. Não precisamos optar entre elas e também me parece que é um pouco nonsense este debate que por quase cem anos ocupou os estudos aristotélicos, para saber se a filosofia de Aristóteles é um sistema ou algo que evoluiu no tempo. Certamente ela é as duas coisas. Então usaremos uma dessas interpretações como antídoto da outra, e vice-versa.

Em seguida, esbocei os princípios do método que aqui será usado. O primeiro aspecto deste seria tentar conciliar todas as perspectivas opostas possíveis a respeito de Aristóteles. Pegá-las todas como exemplos de visões possíveis e tentar chegar a uma síntese em que nada de substancial se perca. Em segundo lugar, teríamos de compensar a relativização historicista. O que vem a ser isto? É o seguinte: no momento em que estamos vivendo, as posições que tomamos, as opiniões que temos, nos parecem decisivas para os fins da vida real. Quando passa muito tempo e aquelas questões já não são mais atuais, as tomadas de posição começam a ser relativizadas: eram tomadas em termos absolutos, agora são tomadas em termos relativos à situação de dentro da qual surgiram, e referidas a um momento que já passou. Não somente as opiniões são relativizadas, mas as próprias questões a que elas respondem também. Por exemplo, se você tomar um conflito histórico entre católicos e protestantes tal como aparecia quatro séculos atrás, verá que hoje pode nos parecer que as tomadas de posição que para aquelas pessoas eram fundamentais e absolutas para nós são meramente secundárias e relativas. A questão, para nós, já não é optar entre catolicismo e protestantismo, mas compreender por que aquelas pessoas tinham de fazer essa opção. A questão tornou-se para nós, por assim dizer, metalinguística: questionamos a questão, em vez de tentar resolvê-la. Outro exemplo: durante cem anos assistimos a um conflito entre capitalismo e comunismo, e, na hora em que um deles praticamente se dissolve, parece que a questão também se dissolve, e já nos parece distante e inverossímil que ela tenha parecido tão urgente, tão vital a milhões de pessoas. No confronto com o comunismo, quanta tinta não rolou, quantas palavras não foram proferidas, quantas posições não foram tomadas em milhares de setores derivados, em função deste conflito básico que determinava o enfoque principal? Não só era preciso optar entre capitalismo e comunismo, como esta opção determinava as soluções que dávamos a questões de ordem ética, estética, prática, etc. Num transcurso de dez anos, a questão já não parece essencial. Para que nós entendamos que as pessoas tenham podido discutir, emocionar-se, matar e morrer por essa questão, temos de referi-la à situação da qual nasceu. Com isto, tudo fica relativizado. Relativizado quer dizer referido ou condicionado a uma situação. Estas tomadas de posição que para aqueles indivíduos eram tão importantes, para nós só existem relativamente a uma situação que não existe mais. Ora, se adotamos só e exclusivamente esse enfoque para as questões da filosofia, estas se tornam também meros dilemas vividos por homens do passado, e não são mais questões vivas para nós. É por isto que, ao menos em história da filosofia, o historicismo tem graves inconvenientes. O historicismo é uma filosofia que, pretendendo tudo explicar pela história, torna irrelevantes todas as questões fundamentais. Pois, se todas as questões só têm importância quando referidas a uma determinada situação no tempo, então as atuais também não terão importância daqui a algum tempo. Para o historicismo, todas as questões e todos os conhecimentos são gêneros perecíveis. É verdade que o interesse pelas questões e a forma de concebê-las muda com o tempo, mas não se pode elevar a critério teorético esse simples fato consumado. De um ponto de vista teorético, duas questões, uma colocada por um pensador do séc. V a. C., outra colocada por nós hoje, podem ser rigorosamente a mesma, se as essências designadas por seus conceitos forem as mesmas, pouco importando a passagem do tempo e as diferentes maneiras de “sentir” a questão nas duas épocas: a demonstração do teorema de Pitágoras é a mesma para Pitágoras e para nós. A abolição da esfera teorética e sua absorção na esfera do fato consumado são os erros do historicismo. É em razão destes erros que o historicismo desvia o eixo das questões, dos objetos sobre que elas versam para as motivações psicológicas, ideológicas, etc., que levaram os homens a se interessar por elas, e isto produz às vezes confusões temíveis. Se você pegar duas teorias científicas opostas, por exemplo, no famoso debate em que se envolveu Pasteur a propósito da geração espontânea — como surgiam os microorganismos? — , verá que, segundo uma teoria vigente na época, apareciam sozinhos, brotavam do nada. Pasteur dizia que não, que tinha de haver determinadas condições prévias para que eles pudessem surgir. Esta questão hoje para nós está resolvida. Ora, quando Pasteur e seus adversários tomavam posição, faziam-no em função do problema dos microorganismos, e não em função do problema de como interpretar sua época histórica. Como para nós o problema dos microorganismos está resolvido, e só nos resta compreender a época histórica de Pasteur, de certa forma invertemos a questão e a colocamos de cabeça para baixo. O que era importante para os personagens não é mais importante para nós. As idéias em jogo, para nós, só têm importância como expressões de um determinado momento histórico, e não em si mesmas. Ora, se levarmos esta posição às últimas consequências, todas as doutrinas científicas, inclusive matemáticas, nunca mais dirão respeito à realidade objetiva que elas estão discutindo, e serão apenas expressões das idéias que as pessoas tiveram num certo momento. No entanto, está claro que a demonstração que Pasteur fez da inexistência da geração espontânea continua teoreticamente válida hoje exatamente como no momento em que ele a apresentou pela primeira vez, e sobre a veracidade teorética — ou falsidade teorética — de uma demonstração a passagem do tempo não exerce a mais mínima influência. É esta intemporalidade das verdades teoréticas que o historicismo faz perder de vista, como se uma conta de 2 + 2 = 4 devesse ter diferentes resultados em distintas épocas históricas.

Se você pegar a geometria de Euclides, do ponto de vista historicista não interessa saber se ela está certa ou errada, mas só a correspondência entre aquela geometria e as demais idéias vigentes naquele tempo. O resultado é que o historicismo acaba por abolir todas as ciências, menos a história, ou pelo menos por submeter todos os critérios científicos de veracidade à veracidade histórica. Por exemplo, as doutrinas filosóficas, doutrinas sobre a física, sobre as ciências da natureza, sobre as fórmulas matemáticas – são todas relativizadas, referidas a momentos no tempo.

Mas acontece que doutrinas matemáticas não dizem respeito à história, e sim a entidades matemáticas. Doutrinas físicas também não dizem respeito à história, mas ao mundo físico. Se nós, estudando doutrinas físicas do passado, as encararmos apenas como expressões do momento histórico, nunca podemos esquecer que aqueles que as emitiram não tinham esta perspectiva, não as olharam por aí. Para um físico do século XVI, as idéias dele não são sobre a história do século XVI, são sobre a natureza. O historicismo levado às últimas consequências esvazia as questões de modo que não faça mais sentido discutir se suas respostas estão certas ou erradas.

Se um diz que a Terra é plana e outro que a Terra é esférica, naturalmente os dois pretendem ter razão, e certamente um deles tem, ou ambos têm, ou nenhum tem, objetivamente falando. No entanto, ambas as respostas provêm de um determinado quadro histórico, o que prova que o ponto de vista histórico não pode arbitrar esta questão. Do ponto de vista historicista interessa apenas que numa certa época havia um ambiente propício a que se pensasse que a Terra era plana, e que noutra época as condições inclinaram o homem a pensar outra coisa. Conhecer essas condições em ambos os casos não nos dirá se a Terra é plana ou esférica.

Para você entender isto mais concretamente, examine com os olhos de hoje as questões que foram problema para você dez ou quinze anos atrás, e veja como essas questões se tornaram indiretas e metalinguísticas. Se a moça vai casar com um sujeito, e chega alguém e diz: “Não case com este sujeito, ele é um vigarista, estelionatário, um Anão do Orçamento, etc.”, ela chora, se sente muito mal, e tem de tomar uma posição. Ou aceita a denúncia, ou a rejeita. Naquele momento, tudo que lhe interessa é saber se aquela denúncia é verdadeira ou falsa, objetivamente falando. Mas vamos supor que na semana seguinte ela conhece outro sujeito mais interessante, casa com ele e esquece o primeiro. Aí aquela questão não interessa mais. Quanto mais tempo passe, menos interessará saber se o sujeito era estelionatário ou não, mas a moça pode ainda parar e pensar: “Por que naquela época eu sofri tanto com aquela questão?” Ela vai ter de explicar o interesse que teve por este problema em função do seu estado psicológico na época. Isto é que se chama relativizar historicamente. A questão perde a sua importância objetiva, é esvaziada e absorvida numa outra questão que já não diz respeito ao seu conteúdo objetivo, mas aos motivos subjetivos do seu surgimento. Então, do ponto de vista do historicismo, não interessa saber se a Terra é esférica ou plana, interessa saber por que, numa certa época, as condições culturais, psicológicas etc. levaram as pessoas a pensar que era plana, e em outra época que era esférica.

Isto equivale a uma espécie de negação implícita de todas as formas de conhecimento que não sejam históricas. Uma tribo de índios pensa que fazendo determinada dança vai cair chuva. Numa outra época e noutro lugar, acha-se que a chuva cai por motivos completamente diferentes, de ordem eletromagnética. Historicamente, não interessa saber quem tem razão. Interessa só saber qual o elo de coerência entre estes dois pensamentos e os seus respectivos ambientes culturais. Ora, a dança da chuva tem raízes histórico-culturais tanto quanto as têm a explicação eletromagnética. Se conhecermos extensivamente essas condições para ambos os casos, ainda assim não saberemos por que cai a chuva.

O advento da ciência histórica e o historicismo

O historicismo é uma maneira de ver que foi inoculada na mente ocidental no século passado, desde que se formou a ciência da história. A formação da ciência histórica a partir dos séculos XVIII e XIX, com Giambattista Vico, Edward Gibbon, Ranke, Savigny e outros gênios imensos, é uma das grandes conquistas da humanidade. Mas deixou um efeito colateral: o historicismo. A história como empirismo, como técnica prática, já era conhecida desde a antiguidade. Mas como ciência, tal como a conhecemos hoje, começa a ser formulada nos fins do século XVIIII e começo do XIX. É um progresso imenso do conhecimento humano. A partir daí, você vai adquirindo uma perspectiva temporal mais ou menos correta do que se passou antes. Começa-se a ter preocupação com a exatidão da reconstituição dos fatos, através de uma quantidade de técnicas de pesquisa histórica: crítica dos textos, dos testemunhos, epigrafia, numismática etc. – uma quantidade de técnicas de investigação histórica que se aprimoram muito neste começo do século passado e montam este monumento que é a ciência histórica de hoje – uma ciência de enorme precisão, quase uma ciência exata. Mas junto com a formação dessa ciência vem o efeito colateral. Quando uma ciência faz sucesso, os outros ramos do saber querem imitá-la. Os modos de pensar que são característicos da ciência histórica acabam então contaminando todas as outras ciências e também a filosofia. Como acontecera antes com a física. Na Renascença, o sucesso de Newton, Galileu etc. contaminava todo mundo, todos começaram a pensar em termos físicos, levando os modelos da física para todos os setores do conhecimento. No século XX, todos pensam informaticamente. O sucesso, primeiro, da lógica matemática, e, depois, da informática, que é filhote dela, faz os modelos lógico-matemáticos e informáticos serem adotados para todos os fins e em todas as ciências: há modelos informáticos em biologia, em neurologia, em economia, em antropologia. No momento eles parecem ter uma força explicativa muito grande, parecem nos dar a visão da realidade mesma, mas no futuro eles também serão relativizados. Os modelos sempre ajudam em alguma coisa, mas criam o perigo do que chamo ilusão retroativa. O processo é este: Um indivíduo inventa uma máquina destinada a imitar alguns processos do cérebro humano. Esta máquina chama-se computador, e funciona. Retroativamente, começa-se a explicar o cérebro humano como se ele fosse uma imitação do computador, e não o computador uma imitação de cérebro. Isto aconteceu na Renascença com o aperfeiçoamento da arte da relojoaria. O relógio de bolso foi inventado pelos beneditinos na Idade Média. Na Renascença, começaram a vender relógio de bolso para todo mundo. Logo em seguida, começa-se a explicar o funcionamento do corpo humano como se ele fosse um mecanismo de relógio. O homem inventa um modelo imitado a partir de alguma função dele mesmo, e em seguida ele se explica a si mesmo por esta função, e a função pelo modelo que a imita. Um caso de aprendiz de feiticeiro. Fica fascinado pelo que ele mesmo inventou e acha que aquilo tem um poder explicativo, que o rabo é capaz de abanar o cachorro. Não podemos esquecer que todos os equipamentos e todas as ciências são invenções do homem. E como disse o Cristo: “O homem não foi feito para o sábado, e sim o sábado para o homem”. A ciência também foi feita pelo homem para o homem e ele tem o direito de usar dela como bem entenda, e nunca pode esquecer que uma ciência é um conjunto de procedimentos que ele mesmo inventou para conhecer algo, e que poderão ser substituídos por outros amanhã ou depois se houver uma maneira melhor de conhecer aquilo. Portanto, não existe a ciência que possa ser modelo universalmente válido para as outras, nem modelo que possa explicar a coisa pela qual se modela.

Métodos que foram inventados para estudar História, se aplicados para estudar outro assunto, podem render alguma coisa, mas nunca tão bem como para estudar a própria História. Mas ao longo dos tempos o que vemos é que toda ciência que faz sucesso imprime o seu modelo a todo o universo cultural. O historicismo é um filhote da ciência histórica. Ora, a ciência histórica não estuda a natureza ou os objetos matemáticos. Ela só estuda os atos e pensamentos humanos no decorrer do tempo. Se você tomar por exemplo o teorema de Pitágoras, verá que, por um lado ele expressa um conjunto de relações que se dão dentro de uma determinada figura geométrica – o triângulo retângulo –, mas por outro lado, é um pensamento que um certo sujeito teve num certo momento da história. No historicismo, o primeiro aspecto, que chamamos objetivo, a relação entre os vários aspectos do objeto ao qual ele se refere (a relação entre os catetos e a hipotenusa), é comido pelo aspecto subjetivo ou histórico. Ao historiador pouco lhe interessa saber se a soma dos quadrados dos catetos dá o quadrado da hipotenusa ou o triplo do quadrado da hipotenusa. O que interessa é que num certo ambiente mental surgiu certo pensamento na cabeça de um tal Pitágoras ou de um grupo de pessoas em torno dele.

O historicismo surge primeiro discretamente e depois vai penetrando e solapando todos os setores do conhecimento até chegar a um doidão chamado Antonio Gramsci, teórico do Partido Comunista, que inventou o “historicismo absoluto”. Isto significa que todas as ciências, todos os conhecimentos são apenas expressões de momentos históricos e a única coisa que realmente vale é a história. Ele chega a abolir a noção de verdade objetiva. Não se pode dizer que 2+2=4; e sim que em tal época, em tal sociedade se pensou que era 4 porque isto era bom para a sociedade naquele momento. Gramsci é tido em alta conta por muitos. Mas quando você entra num esquema de pensamento como o de Gramsci, acaba não entendendo mais coisa nenhuma, e quanto menos você entende, mais misterioso e profundo ele parece, e quanto mais burro o discípulo fica, maior lhe parece o guru. É uma espécie de anti-educação.

A educação verdadeira deve impelir os alunos a que eles cheguem a compreender o pensamento do mestre às vezes melhor do que ele mesmo tinha compreendido, para que possa aperfeiçoá-lo, completá-lo de algum modo. Tudo que o homem faz é incompleto. Os homens morrem e por isto em suas obras fica faltando um pedaço, ou há contradições não resolvidas, etc. Então é preciso que a geração seguinte prossiga o trabalho, resolva as contradições, ou mesmo, se for o caso, reforme tudo. Ora, para prosseguir ou reformar o trabalho de alguém, é preciso compreendê-lo a fundo, e compreender para além dele, se possível. Mas hoje em dia há certas doutrinas filosóficas, ou melhor, ideológicas que não se destinam propriamente a ser compreendidas. Destinam-se a obscurecer as inteligências e a substituir a intelecção pessoal e direta por um sentimento de pertinência a um grupo ou partido ou igreja que é, ele sim, o sujeito coletivo encarregado de ter as intelecções. Assim, cada membro se dispensa de buscar a compreensão pessoal e as provas, seguro de que nos escalões superiores há sempre alguém que sabe o que ele não sabe. Antonio Gramsci é um protótipo do sujeito que não escreve para ser compreendido, mas para ser obedecido por quem não compreende. Aliás ele próprio também não se entendia, porque em seu pensamento não há propriamente o que entender, do ponto de vista teorético, mas somente o que obedecer. O historicismo absoluto é a absolutização do tempo. Ora, o tempo é uma relação entre momentos. Então, o historicismo absoluto é a absolutização do relativo, ou a relatividade absoluta, ou a relativa absolutidade. E o que quer dizer isto? É uma proposta que não pode ser compreendida. Se os elementos da relação nada são em si mesmos e considerados fora da relação, então é a relação que os constitui, mas como poderia uma relação entre nada e nada produzir alguma coisa? Gramsci, como muitos outros marxistas, confunde relação e totalidade. Dissolve as substâncias individuais numa rede de relações que é tomada, em si e por si, como a verdadeira realidade, como se uma relação considerada independentemente de seus elementos não fosse apenas uma abstração lógica. A “História” é assim divinizada como única realidade, como se toda história não fosse história de alguém, como se uma história pudesse ser sujeito de si mesma. Mas o gramscismo já é o historicismo febril.

É claro que o historicismo não é todo loucura. É um dos grandes movimentos de idéias do Ocidente moderno, uma coisa digna de todo respeito. Porém tem seus limites. Só serve para você entender história, saber por que os homens pensaram isto ou aquilo em determinado momento, mas não para entender os objetos a respeito de que eles pensaram. Senão, seria admitir que a história comeu todas as demais ciências. Ela passa a ser física, fisiologia, matemática – tudo, enfim: uma única superciência que abole todas as demais. Mas, se a história tem a pretensão de ser a ciência universal e come todas as outras, cada ciência vizinha pode ter a mesma pretensão. Que campos na realidade estão dentro de quais, quais estão contíguos, quais hierarquizados – isto é problema grave, não pode ser resolvido na base de uma ciência comer outras. Se o historiador acha que a ciência dele é suprema, o físico tem o mesmo direito de achar que o fundamento de tudo está na física, e que a história não é senão uma pseudociência. Chega um terceiro e diz: “Não é nada disto, é tudo um problema de linguística. Porque para falar de física e de história vocês usam signos”. Aí pega as leis da gramática e mostra que todas as proposições da física e da história não passam de arranjos gramaticais e semânticos – e é uma verdade, tanto quanto é verdade que as leis da física são acontecimentos históricos e que os acontecimentos históricos se desenrolam num mundo regido pelas leis da física. Estes são os vários imperialismos das várias ciências, cada um querendo comer o outro. Assim como há o historicismo, temos o fisicismo, o linguisticismo, o matematicismo etc etc. Cada uma destas hipóteses faz sucesso porque obtém alguns resultados bons – mas depois começa a ampliar desmesuradamente seu campo de aplicação até virar uma metafísica, ou pseudometafísica. É claro, no entanto, que nenhuma ciência em particular pode, por si, fundamentar uma metafísica.

Imaginem então o que o historicismo não faz com alguém que morreu há mais de dois mil anos. Se ele relativiza até o que está acontecendo hoje, imagine o que se passou tanto tempo atrás. Você pega tudo que o sujeito falou, coloca numa distância formidável, refere tudo ao meio histórico-social, psicológico etc., e reduz todo o pensamento dele a um acontecimento histórico que se deu numa outra cultura, num outro tempo, com outros interesses, e que afinal de contas não é verdadeiro nem falso porque naquele tempo os padrões de veracidade e falsidade eram outros que não os de hoje, isto torna impossível discutir se afinal de contas Aristóteles ou Platão ou outro qualquer tinha razão naquilo que afirmava. Porém um pensamento que já não podemos julgar verdadeiro ou falso não tem mais importância efetiva, é apenas uma curiosidade histórica, uma peça de museu tornada inútil e incompreensível. O historicismo pode, por essa via, chegar a nivelar descobertas valiosas e bobagens puras, achatando a ambas como “fatos históricos”. Aristóteles, por exemplo, foi quem inventou a lógica tal como a concebemos. Ele inventou quase todas as ciências que conhecemos – a história da filosofia, a biologia, a fisiologia, a anatomia; toda a nossa nomenclatura de ciência é uma criação de Aristóteles. Este mesmo sujeito que fez tudo isto, num dado momento declara que a mulher tem mais dentes que o homem. Um sujeito desta envergadura falando uma asneira destas! Pois, do ponto de vista historicista absoluto, vale a mesma coisa a contagem aristotélica dos dentes e o conjunto da ciência aristotélica, já que foi o mesmo Aristóteles que produziu ambas as coisas, no mesmo ambiente histórico e sob a ação das mesmas causas históricas.

É claro que você pode explicar o surgimento da geometria na Grécia em função das condições culturais ambientes. Mas isto explica a origem da geometria, não seu valor cognitivo. Este só pode ser avaliado por meios geométricos, não históricos. Como faço para saber se o teorema de Pitágoras está certo? Estudo a origem histórica do teorema de Pitágoras ou a demonstração geométrica desse teorema? Saber quais as condições em que foi gerada a idéia nada me diz sobre se ela é verdadeira ou falsa. As idéias falsas têm uma origem histórica, tal como a têm as verdadeiras. No dia em que Aristóteles atinou com a estrutura do silogismo – o raciocínio em três etapas, em que dadas duas premissas, tira-se uma conclusão – devia haver alguma condição externa, psicológica que o predispunha a isto. E no dia em que contou errado os dentes da sua mulher, também. Teve causa a primeira como a teve a segunda coisa. Historicamente dá na mesma explicar a asneira ou a grande descoberta. Há um grande repertório destas asneiras. Sto. Anselmo diz que, plantando-se um escorpião, nasce uma vaca. Santo Anselmo é um dos grandes gênios da filosofia, e fala uma coisa destas! Há para isto alguma causa histórica e biográfica, como as há para os sutis argumentos metafísicos que o mesmo Anselmo produziu num momento de mais lucidez. O ponto de vista histórico só diz o que as pessoas fizeram, porque fizeram e com que fins. Não diz se as ações e as idéias são sensatas ou insensatas, se estão certas ou erradas.

Outros preconceitos: sociologismo e antropologismo

Do mesmo modo, mais tarde, quando se desenvolvem as ciências sociais, sociologia e antropologia, também surge um imperialismo destas. Você refere tudo ao quadro social, às famosas classes sociais, proletariado, burguesia etc. Dá para você pegar todo o conjunto do saber de um determinado momento e referi-lo à estrutura de classes, encontrar as analogias entre ele e a ideologia da classe dominante. Assim. tomando meras analogias estruturais como se fossem nexos de causa e efeito, você pode “provar” que existe uma biologia burguesa, uma física burguesa, como existe uma biologia proletária, uma fisiologia proletária e assim por diante.

Desde que usado com modéstia e articulado com outros critérios, o critério das classes sociais pode ser esclarecedor, até certo ponto. Certas maneiras típicas de montar o universo da ciência de fato parecem estar associadas a determinadas classes sociais. Vemos por exemplo que existe uma filosofia medieval, feita praticamente por membros do clero (os universitários faziam parte do clero, a universidade era uma casta letrada separada do restante da sociedade), e isto produz um tipo de ciência. Mais tarde, começa a surgir um outro tipo de intelectual que já não está na universidade, o intelectual palaciano, da aristocracia, não mais do clero. Existe uma diferença de conteúdo entre a ciência de uns e outros, assim como uma diferença de estrutura global e de perspectiva. Portanto a hipótese das classes sociais não é um absurdo. Mas ela está evidentemente limitada por duas coisas:

1. As classes sociais não são o único fator que conta. Há, por exemplo, o fator nacional. Só um cego não percebe que, se há um saber burguês ou proletário ou clerical, há também um saber germânico, ou francês ou anglo-saxônico.

2. Saber se determinada descoberta científica é fruto da ciência clerical, aristocrática, burguesa ou proletária não me diz se essa descoberta é verdadeira ou falsa. Julgar a veracidade dos conhecimentos em função de sua origem social é cúmulo do sociologismo. Este sociologismo chegou a produzir alguns fenômenos grotescos no século XX. Na União Soviética a genética de Mendel até a década de 40 era proibida por ser genética burguesa. Havia um geneticista marxista chamado Lissenko, cujas teorias foram endossadas pelo Estado soviético a título de genética proletária. Lamentavelmente, neste caso, como aliás em tantos outros, a burguesia é que tinha razão. E hoje em dia ninguém mais fala em Lissenko, a não ser como exemplo do mal que o pensamento ideológico pode fazer à ciência.

Tudo isto vem de que novas ciências que surgem e alcançam algum sucesso moldam a cabeça de todo mundo. O historicismo se torna tanto mais poderoso quanto mais distante no tempo está seu objeto. É mais fácil você ver uma idéia emitida 2.400 anos atrás como expressão de uma sociedade longínqua do que você se situar dentro dessa idéia para saber se é verdadeira ou falsa.

Vamos supor que uma tribo pratica a dança da chuva. É mais fácil explicar a dança da chuva em função dos costumes e outras instituições dessa tribo que aprender a fazer a dança da chuva para ver se funciona. Depois que você explicou tudo aquilo antropologicamente, e reduziu tudo a uma projeção das instituições sociais sobre a visão da natureza, que aconteceria se se comprovasse que o raio da dança funciona mesmo? Então você já não precisaria explicar a dança em função do corpo de crenças daquela tribo, porque o que é verdadeiro o é para qualquer um, e evidentemente a eficácia da dança sobre a natureza deveria ser explicada por fatores físicos (ainda que de física mágica) e não por fatores sociológicos.

Quando se estuda a Inquisição, há a história das bruxas que eram queimadas. Os inquisidores mandavam matar as bruxas porque estavam persuadidos de que a bruxaria funcionava, desencadeava efeitos físicos, podia matar pessoas ou destruir colheiras. Quem praticava bruxaria contra alguém era portanto homicida tanto quanto quem lhe desse facadas no estômago. Então chega o sociólogo, o antropólogo ou historiador e explica: são “crenças da época”. Acreditamos portanto que todo o fenômeno da bruxaria e da sua perseguição pode ser compreendido dentro do campo sociológico, ou antropológico, como mero fenômeno humano e subjetivo. Mas depois chega outro sujeito e estuda o problema da bruxaria por um outro ponto de vista, o da fisiologia. W. B. Cannon ganhou o prêmio Nobel de Fisiologia com o estudo Mudanças Corporais no Medo, na Dor e na Raiva. Estudando o fenômeno da bruxaria com base nas descobertas fisiológicas de Cannon, Claude Lévi-Strauss mostrou como é realmente possível matar uma pessoa por meio de bruxaria. Então vemos que a prática da bruxaria não pode ser explicada somente pelas crenças ou ideologias de uma sociedade ou época, pois há nesse fenômeno uma objetividade física que é a mesma para todas as sociedades ou épocas. Aquilo que a história ou a antropologia relativizou, é reabsolutizado, revalidado pela fisiologia.

A vacina contra tudo isto é entender que todas as ciências são legítimas no seu próprio campo e alguma coisa delas se pode aproveitar no campo vizinho, mas nunca tudo. Quanto mais distante no tempo e quanto mais estranha é a cultura de onde vem uma idéia, mais fácil é relativizá-la ou historicizá-a, justamente porque o sentido objetivo dessa idéia nos escapa; e, neste sentido, historicizar ou sociologizar essa idéia é apenas uma forma científica de ignorância.

Danos que o historicismo trouxe à nossa compreensão de Aristóteles

O pobre Aristóteles, colocado 2.400 anos atrás, imaginem a desgraça historicista que fizeram com ele! Tanto que há quase duzentos anos no Ocidente moderno ninguém mais discute se esta ou aquela tese aristotélica é verdadeira ou falsa, sensata ou absurda. Só se discute a “interpretação histórica” de Aristóteles. E particularmente se discute se o sistema aristotélico é um todo fechado ou se, ao conrário, o pensamento de Aristóteles evoluiu no tempo. Enquanto isto, não se discute se o próprio conteúdo do pensamento de Aristóteles é verdadeiro ou falso. Estão trocando o estudo da filosofia de Aristóteles pelo da história da filosofia de Aristóteles.

Todo estudo de filosofia do século XVIII para trás, em qualquer faculdade de filosofia deste país, é feito quase que exclusivamente pelo lado historicista. Todos os pensamentos perderam a atualidade e você só os estuda como expressões da sua época. Mas vale a pena você estudar os pensamentos que outros tiveram durante séculos para depois não saber se tais pensamentos são verdadeiros ou falsos? É claro que o estudo histórico tem sentido mas não tem sentido abolir todas as outras perspectivas em nome da perspectiva histórica, porque isto é afinal absolutizar o historicismo e esquecer que ele também é um produto histórico, relativo portanto.

Jean Jacques Rousseau fez a teoria do bom selvagem: “O homem no estado de natureza era bom; veio a sociedade e o corrompeu.” Podemos estudar isto do ponto de vista interno para saber se esta doutrina é verdadeira ou falsa, ou podemos estudá-la historicamente. Por que, nas condições da França de então ocorreu esta idéia na cabeça de Rousseau? Resposta: porque as pessoas viviam levando índios, inclusive do Brasil, para mostrar na França, e surgiu uma atmosfera simpática em relação aos índios. Fazia um ou dois séculos que havia um crescente afluxo de índios para a Europa e Rousseau naturalmente viu um destes índios numa feira, ouviu o falatório e naturalmente lhe ocorreu a idéia. Então, você explica o surgimento da idéia em função do ambiente. Agora digam: a teoria de Rousseau é verdadeira ou falsa? Saber que Rousseau teve essa idéia quando viu um índio na exposição ajuda a julgar a veracidade da idéia?

Se você se acostuma a estudar tudo do ponto de vista histórico, fica sabendo por que fulano pensou isto ou por que surgiu tal ou qual idéia, mas desenvolve uma atitude leviana em que não se interessa mais por saber se as idéias são verdadeiras ou falsas. Este é um dos principais motivos da fraqueza do ensino de filosofia neste país. As pessoas “curtem” as filosofias do passado esteticamente, preferindo umas, rejeitando outras, mas sem colocá-las jamais seriamente em exame quanto à sua veracidade. A filosofia aí tende a tornar-se um deleite mental, ou um depósito de argumentos para uso das ideologias, uma técnica retórica, deixando de ser um saber propriamente dito a respeito do real.

A crença de que as idéias mesmas mudam de época para época é totalmente falsa. Há idéias que não mudam nunca, nem mesmo nas esferas mais relativas da vida. A esfera mais relativa é a esfera moral. As idéias morais variam, sim. Mas mostrem-me uma comunidade que tivesse entre seus valores e princípios a sua própria extinção ou a prática sistemática do assassinato, ou em que fosse proibida a procriação – isto não existe. Esses são princípios imutáveis, cósmicos, ou metafísicos, ou biológicos, como queiram, mas não são culturais. Não sendo culturais, não podem mudar com as mudanças de cultura. Mostrem uma comunidade onde fosse proibida toda e qualquer forma de comércio. Ou toda e qualquer forma de propriedade. Portanto, estas coisas correspondem a princípios imutáveis. Agora, se você investiga as formas de casamento, há mil e uma, conforme as culturas. Mas há alguma cultura onde não exista casamento de espécie alguma? Casamento, comércio, preservação da vida são princípios universais que nunca foram mudados em parte alguma e que, enquanto gêneros, não têm história, embora haja história das suas espécies. Assim como as relações entre o quadrado dos catetos e o quadrado da hipotenusa também não têm história. Tem história a descoberta desta idéia, mas não a idéia mesma.

Não sei se esses princípios invariantes são leis naturais ou leis metafísicas – não caberia especular isto agora.

Por enquanto tudo isto está dentro da discussão do método da história da filosofia. Vamos fazer o estudo histórico da filosofia de Aristóteles e para isto temos o o dever de fazer uma série de discussões metodológicas preliminares, deixando tudo bem esclarecido.

Como parte deste método, digo que nem tudo dá para entender historicamente, que há pensamentos de Aristóteles que não podemos entender em função de sua época e nem da personalidade de Aristóteles e que só entenderemos se olharmos firmemente para seus objetos, situando-nos desde dentro dessas idéias e perguntando: isto é verdadeiro ou falso? Temos de nos colocar dentro do ponto de vista não somente da história, mas da ciência à qual essa idéia pertence. O historicismo é um dos pais do relativismo generalizado que hoje impera. As pessoas estão seguras de que todas as idéias sempre mudaram e de que nunca houve idéia permanente ao longo de toda a história, e isto é completamente falso. Mas hoje passa como se fosse um verdadeiro dogma. Não interessa agora a discussão sobre o fundamento destes princípios imutáveis, se é ontológico, se é natural, – mas que eles existem, isto é óbvio. Konrad Lorenz diz que a perda da capacidade de perceber princípios universais é um sinal de decadência biológica, de degenerescência da espécie. Existem muitas outras leis e outros fenômenos cuja universalidade às vezes nos espanta. Por exemplo: em quase todas as línguas do mundo a palavra pai e a palavra mãe têm as mesmas raízes. A letra M em mãe é universal. Em pai, BPV ou F, que são variantes do mesmo som. Se tudo é produto da história, da mudança cultural, como se explica essa universalidade? Mostre uma língua que não tenha as categorias de verbo e substantivo. Ou que não tenha sujeito e objeto. Não existe, é impossível. Todas as línguas têm uma história mas nem tudo nas línguas tem história.

O historicismo é um movimento recente. Historicamente, o que tem duzentos anos é recente. Importante é que ele é vigente ainda, e determina a maneira de as pessoas pensarem. As pessoas acreditam naquilo como se fosse a realidade mesma e, pior, como se todo mundo sempre tivesse pensado assim. Tudo o que a gente não sabe de onde surgiu nos parece a realidade mesma. O valor dogmático do historicismo provém de que ele esquece que ele mesmo é uma moda histórica.

O exagero historicista nos estudos aristotélicos. Sua origem.

Por outro lado, não podemos esquecer que, nos estudos sobre Aristóteles, o historicismo surge em reação a uma espécie de exagero contrário – o exagero sistematista. Aconteceu o seguinte: Aristóteles escreveu basicamente três tipos de escritos; os que se destinavam à publicação, dos quais se tiravam várias cópias; os escritos que eram apostilas e anotações de aulas, destinados aos alunos; e alguns escritos que eram para seu próprio uso. Destes três tipos, só o segundo sobreviveu – as anotações de aula. Os outros dois tipos, pessoais e publicados, desapareceram. Isto quer dizer que aproximadamente uns cinquenta anos depois da morte de Aristóteles os livros publicados dele já estavam começando a desaparecer; mais tarde não sobrou nada.

No começo da era cristã, séculos I, II, só tinham sobrado os tratados, os textos científicos que eram usados em aula. Ora, a evolução que o pensamento de Aristóteles vai sofrendo ao longo do tempo se manifestaria sobretudo na diferença entre os rascunhos da maturidade e os escritos publicados, obras da juventude. Destas só sobraram fragmentos e citações. Ora, se desapareceram os escritos da juventude, você não tem mais traços de uma evolução, só aparece o produto final. Então, tem-se a impressão de que Aristóteles nasceu com sua filosofia pronta e acabada. O sistema está pronto e não se compõe de partes que se vão dialeticamente formando ao longo do tempo; compõe-se não de partes sucessivas, como numa história, mas de partes simultâneas como num organismo. Toda a interpretação medieval de Aristóteles é feita exclusivamente em cima dos tratados e é uma interpretação organicista, vê o pensamento de Aristóteles como se fosse um organismo completo. Foi só depois, com a redescoberta de fragmentos de escritos de juventude e com a reconstituição a partir destas citações que foi possível ver que Aristóteles nem sempre tinha pensado assim. E daí surge a idéia historicista, que por sua vez tende a se absolutizar e a negar qualquer caráter orgânico e sistêmico ao pensamento de Aristóteles, subdividindo-o em “fases” que são como que várias filosofias diferentes.

O confronto das duas maneiras de pensar se dá sobretudo nos dois últimos séculos. Com as primeiras conquistas da ciência histórica nascente, naturalmente aparece uma interpretação historicista de Aristóteles contra a qual reage Franz Brentano. Este produz aos 24 anos de idade – caso de precocidade raríssimo em filosofia – a melhor exposição da organicidade, da unidade do pensamento de Aristóteles no livro Da Significação do Ser em Aristóteles, que se torna o texto clássico desta interpretação. No nosso século, na década de 20, aparece a obra de Werner Jaeger que representa a outra corrente, ou seja o historicismo.

Estamos cercando Aristóteles por fora – até agora nada falei do conteúdo do pensamento de Aristóteles. Estamos falando primeiro do que os outros pensaram que ele era. Por isso digo que é um personagem múltiplo e ao longo da história foram sendo criados novos Aristóteles, de acordo com interesses de época. Para corrigir este desvio historicista, temos de fazer um recuo em sentido contrário ao que faz o historicismo. Este faz com que as idéias, referidas aos seus momentos no tempo, recuem e fiquem distantes de nós, percam a atualidade. Teríamos de fazer o contrário, revigorar sua atualidade, olhando-as não como idéias surgidas num determinado momento no tempo, mas como idéias que fossem válidas para nós agora. Ou seja, não basta perguntar o que nós hoje pensamos do que Aristóteles pensou há 2400 anos atrás, mas também o que Aristóteles pensaria de nós hoje. E esta opção não é impossível. Aristóteles era gente, pertencia à mesma espécie biológica que nós, não podia ser tão radicalmente diferente de nós e não tem sentido fazer que o distanciamento temporal de dois seres se sobreponha à sua identidade de espécie. Ou seja, entre um boi antigo e um boi moderno pode haver muitas diferenças. Um pode ter mais proteínas, ser mais cuidado, de uma raça que se formou depois – mas no fundo é tudo boi. Aristóteles é gente como nós – esta é a primeira exigência do nosso método. Em segundo lugar, Aristóteles, como qualquer ser humano, vivia no tempo e sabia que ia morrer e que depois disto ia continuar a existir gente neste planeta. Portanto, como todo ser humano, ele deveria ter alguma expectativa sobre o que deveria acontecer depois. Se prolongarmos, ampliarmos esta expectativa por 2400 anos, obteremos o julgamento que Aristóteles faria de nós, assim como podemos nos julgar partindo das expectativas que tínhamos quando crianças ou adolescentes. Este método de fazer com que o julgamento seja de dupla via é o único que pode pode dar equilíbrio e senso de justiça às nossas conclusões. Se absolutizamos um ponto de vista, o do “nosso” tempo, relativizando todos os outros tempos – o que estamos fazendo? Criamos uma espécie de cronocentrismo. Fala-se muito em etnocentrismo, mas pior é o cronocentrismo – achar que o nosso tempo é soberano, como se antes dele não houvesse existido outros e como se ele não estivesse destinado a passar também. Não basta ver as outra épocas com o olho da nossa, temos de ver a nossa com os olhos das outras, senão ficamos cegos, perdemos o fio da continuidade da existência humana. Para fazer estas duas operações é que fiz a lista dos estudos aristotélicos. Vamos estudar brevemente, antes de entrar no conteúdo do pensamento de Aristóteles, a evolução do que pensaram sobre ele ao longo do tempo, examinar por onde o olharam, que questões se levantaram, o que pareceu importante e desimportante, essencial ou acidental na sua obra em cada época. Como o remontaram ou dsmontaram e que soluções deram aos pontos obscuros da sua doutrina.

A variação aí é tão grande que podemos ir não só da escola sistematista para a historicista, mas podemos levantar ainda um outro contraste. Durante muito tempo o pensamento de Aristóteles pareceu o sistema mais completo que existia. Hoje em dia a tese dominante é a de Pierre Aubenque, que diz: “O pensamento de Aristóteles é incompleto e incompletável”. Como viemos parar longe de Brentano! Afinal, o pensamento de Aristóteles é um organismo que se formou e evoluiu no tempo ou é uma estrutura firme e acabada desde o princípio? É um sistema completo e fechado ou é o esboço de um plano que não chegou a se realizar? É um sistema completo ou um projeto incompletável? No confronto entre sistematistas e historicistas, completistas e incompletistas, a impressão que fica é que é impossível entender Aristóteles. As pessoas o entendem das maneiras mais diversas. Um lê: “Aristóteles diz que isto é quadrado”. E outro: “Ele assegura que é redondo.” E um terceiro: “Ele diz que é um triângulo.” Isto é para dar uma idéia de como achar a verdade pode ser difícil.

Aula II – Parte II