Olavo de Carvalho – Entrevista aos estudantes de filosofia da UFPE

Publicado em Minerva – Informe Filosófico da Universidade Federal de Pernambuco. Nº 5, maio de 97.

Minerva: Qual a força de um filósofo dentro de uma sociedade profundamente massificada?
Olavo de Carvalho: É força de um pequeno comprimido de tranqüilizante no corpo de um neurastênico: não vai curá-lo, mas vai lhe dar um breve momento de calma e lucidez no qual ele poderá tomar decisões que mudem sua vida. Se a sociedade souber aproveitar a presença do filósofo, melhor para ela. Se não, o filósofo, sem recriminar ninguém, irá calmamente para o seu canto ensinar a si mesmo o que os outros não quiseram aprender.

Minerva: Qual a importância de Aristóteles para o conhecimento humano?
Olavo: É dupla: a importância do que já nos deu, a importância do que ainda pode nos dar. A primeira consiste das dezenas de ciências que ele fundou – a anatomia comparada, a embriologia comparada, a lógica, a história da filosofia, a teoria literária, a psicologia, etc. – e das concepções metafísicas que inspiraram a Idade Média Cristã.
A segunda consiste, sobretudo, da visão que ele tem de uma unidade orgânica do conhecimento – um ideal que o sec. XX perseguiu em vão, mas para cuja realização a filosofia de Aristóteles pode dar ainda uma ajuda substantiva.

Minerva: Seu livro O Imbecil Coletivo, está indo para a 3ª edição. Qual o alcance filosófico de sua crítica à intelligentzia dominante?
Olavo: Toda manifestação cultural tem por fundo alguma tese filosófica que pode permanecer implícita e inconsciente. A técnica que emprego em O Imbecil Coletivo é explicitar as teses subentendidas na produção cultural brasileira, e em seguida examiná-las criticamente. Em muitos casos, torna-se claro que a única força delas residia no fato de permanecerem escondidas: uma vez trazidas à luz, sua absurdidade salta aos olhos. Às vezes, basta revelar a origem histórica de uma crença dominante para que ela fique instantaneamente desmoralizada. Um exemplo é a crença de que tudo na vida é político, de que a política é uma dimensão onipresente, de que todo ato humano encerra uma significação política e de que portanto tudo deve ser julgado politicamente. Essa crença, que tanta gente na esquerda brasileira professa de maneira ostensiva ou velada, tem origem nas doutrinas de Carl Schmitt, teórico do estado Nazista.
Basta revelar isto, e a pessoa que subscreveu a tese de maneira ingênua vai se sentir tentada, se for honesta, a questioná-la criticamente. Meu livro não tem só o propósito de denunciar um estado de fato, mas de desentranhar as raízes intelectuais de certas crenças e hábitos que deprimem e enfraquecem a inteligência humana.

Minerva: A seu ver, qual a ajuda que a religião pode dar a uma compreensão global do mundo?
Olavo: Que é uma religião? É a encenação ritual de um conjunto de mensagens simbólicas de importância medular para a conservação do estatuto humano do homem. As regras morais fazem parte desse grande teatro, do qual devemos participar com sinceridade e devoção, porque ele é a única fonte de vida e saúde para o espírito humano. Mesmo quando as normas de uma religião parecem estranhas ou absurdas quando vistas desde uma outra cultura ou desde a ingenuidade fingida do cético, elas devem ser aceitas de coração, porque elas só entregam seu sentido profundo a quem as ama. Amá-las não quer dizer obedecê-las de maneira mecânica e burra, mas simplesmente não ter contra elas uma atitude de suspeita, de malícia. A sabedoria que reside no núcleo das religiões não se entrega ao olhar malicioso. É isto que Cristo quer dizer quando pede que nos tornemos como crianças. A malícia, no entanto, é o mandamento número um da intelectualidade moderna, que nasce com Voltaire.
O intelectual moderno, cheio de suspicácia e medo, teme ser enganado pelas mensagens de Moisés, de Cristo, de Maomé, do Buda, e acaba por se deixar ludibriar por mentirosos baratos com Voltaire e Marx, que o arrastam a aventuras políticas sangrentas e sem sentido. Veja você, a Revolução Francesa matou, em um ano, dez vezes mais gente do que a Inquisição tinha matado em seis séculos. Pergunto eu: quem é o ingênuo e quem é o esperto? Aquele que crê em Buda e Cristo ou aquele que crê em revoluções? Apesar disso, na imaginação moderna, é a Inquisição que continua a constar como a imagem mesma da violência. Especialmente no Brasil, e particularmente na USP, tem havido uma epidemia de estudos sobre Inquisição, com farta cobertura jornalística, dando a impressão de que o fenômeno inquisitorial está nas raízes mesmas da violência brasileira, o que é uma besteira descomunal. Em três séculos , a Inquisição, em toda a América e não só no Brasil, não executou mais de trezentas pessoas: uma centena por século, uma vítima por ano. É uma cifra ridiculamente pequena, se comparada ao número de pessoas que os índios matavam na mesma época ou à taxa de homicídios de qualquer município da Baixada Fluminense hoje em dia.

Minerva: Como o senhor vê o panorama filosófico brasileiro atual?
Olavo: Há dois panoramas: o visível e o invisível. O primeiro é constituído de uma grotesca pantomima em que os medíocres se bajulam uns aos outros para dar ao público a impressão de que são importantes. O invisível constitui-se do esforço sincero de dezenas de estudiosos, de ontem e de hoje, alguns perfeitamente geniais, dos quais o público nunca ouve falar. Para mim, a notícia mais importante da década, em matéria de estudos filosóficos no Brasil, foi a edição das obras completas de Platão traduzidas por Carlos Alberto Nunes e publicadas pela Universidade Federal do Pará. Em qualquer país do mundo, isso seria um acontecimento seminal (para usar uma palavra da moda). No Brasil, foi solenemente ignorado, enquanto um jornal de São Paulo gastava doze páginas de uma edição especial para elogiar um livreco do dr. José Arthur Gianotti, um sujeito cujo único talento filosófico é ser amigo do presidente [Fernando Henrique Cardoso].
Como se vê, há dois mundos filosóficos no Brasil: um visível, outro invisível, como as duas faces da Lua, tudo o que é mais interessante está no lado invisível.

Minerva: Num momento como este, como fazer com que o filósofo chegue até uma juventude que não tem sequer perspectivas de sobrevivência econômica?
Olavo: A mensagem do filósofo aos jovens estudantes, no que diz respeito à dificuldade financeira, é simples, quanto pior ficar a sua condição econômica, mais se apeguem à sua vocação intelectual. Não cedam à pressão de um mundo que quer matar em vocês o espírito à força de atormentá-los com problemas financeiros. O mundo, no sentido bíblico do termo (isto é, a sociedade mundana), só respeita quem o despreza. Na Primeira Guerra Mundial, o físico Werner Heisenberg, então um adolescente, numa cidade reduzida à miséria pelo cerco e pelos bombardeios, se escondia no porão de uma igreja para ler Platão e discutir com seus amigos a metafísica de Malebranche.
Foram os anos decisivos de sua formação: ele poderia tê-los perdido, aguardando melhores dias para estudar. Mas nada, neste mundo, pode vencer a determinação do homem que é fiel à vocação espiritual. Não se intimidem, não desistam. Quanto mais pobres vocês ficarem, mais se dediquem aos estudos. A porcaria reinante não prevalecerá sobre a sinceridade dos seus esforços. Digo isto com a experiência de quem, ao longo de mais de duas décadas de pobreza, com mulher e filhos para sustentar, jamais deixou de estudar um único dia, aproveitando cada momento livre e abdicando de toda sorte de viagens e divertimentos. Nunca esperei que minha situação melhorasse para depois estudar, e garanto: seja teimoso, e um dia o mundo desiste de tentar dominar você pela fome.

Minerva: Qual a ligação entre a arte e a filosofia?
Olavo: A arte, é na ordem do tempo, a primeira e mais básica das formas de conhecimento. É a síntese imaginativa, que precede toda elaboração conceptual. Logo, a formação artística é a primeira que se deve dar a criança ou a um jovem. Isso inclui o desenho geométrico, como forma de preparação para as matemáticas (um ponto que aqui em Recife o prof. Jarbas Maciel tem ressaltado com muita pertinência), o desenho de observação das formas vivas, como preparação para as ciências naturais, a música, o teatro e as artes narrativas, como preparação para a ciência histórica, as artes oratórias como preparação para a filosofia, etc.
Sem cultura artística, nada feito. A imaginação faz a ponte entre o sensível e o inteligível, já dizia Aristóteles. Sem uma imaginação treinada e apta, o pensamento conceptual fica boiando no vazio como mero formalismo e o sujeito nunca adquire o senso da verdade no pensamento.
As relações entre arte e filosofia podem ser abordadas também de um ponto de vista mais profundo, metafísico, como faz Schelling. Mas, no momento, basta falar do aspecto pedagógico.

Minerva: O que o senhor diz da proposta de José Arthur Gianotti ocupar o lugar de Darcy Ribeiro na Academia Brasileira de Letras?
Olavo: É coerente: pôe o oco no lugar do vazio. Mas o Darcy tinha pelo menos talento verbal, era engraçado e simpático. Era um brilho fácil e superficial, mas era um brilho. Gianotti é a encarnação mesma da opacidade. Se eu fosse votar, escolheria Bruno Tolentino, Franklin de Oliveira ou Antônio Olinto.

Minerva: O senhor disse que as pessoas já não procuram na filosofia uma sabedoria, uma orientação para viver. Então o que procuram nela?
Olavo: Procuram aquilo que o ensino em geral oferece: uma profissão e um poder de ação política – tudo aquilo que, tomado como essência em vez de mero acidente, pode levar o homem para longe da concentração interior necessária à busca da sabedoria. A filosofia torna-se assim uma misosofia – o horror à sabedoria.

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Três sonetos de Olavo de Carvalho

I. O OLHO DIREITO, OU: SONETO PERPLEXO

A vitória do tolo é um mistério sacral
e já arranquei mil vezes meu olho direito,
mas na órbita vazia resplandece, igual,
a glória incompreensível do idiota perfeito.”Sim, sim; não, não” – mas o olho que não vê o que vê
diz sim ou não? Senhor, é a Ti que devo olhar
com o olho que não tenho, e ver o que ele crê
haver por trás do que, nas trevas, já não há?

Eu gostaria, sim, de poder extirpar,
junto com o olho, o mundo, mas não sei dizer
se essa sangrenta mágica vai funcionar:

tornar caolho o justo há de retificar
o mal que ele a si mesmo faz ao pretender
trocar o sim por não em vez de o declarar?

14 de fevereiro de 1997

 

II. AVISO DE COBRANÇA, OU: SONETO CALVINISTA

Quando eu for rico, ostentarei na pança
o emblema da fé bíblica, belíssimo,
provando que não sou o que tu pensas,
e sim aquele a quem se chama “O Próximo”.Como a mim mesmo me amarei, deixando
a ti o encargo do louvor devoto,
que há de me confirmar, a cada instante,
que politicamente sou correto.

Como um cão tu andarás por onde eu ande,
dizendo lá ao teu Deus que, não sei quando,
te fiz um bem do qual já não te lembras

mas que Ele bem conhece, pois nas sombras
onde crês abrigar-te, me esquecendo,
há um boleto bancário te esperando.

14 de fevereiro de 1997

 

III. ADEUS, OU: SONETO DO DEFUNTO BRASILEIRO

— Tendo a terra por único ornamento,
que mau defunto é aquele que, sem nome,
baixa ao fundo mais vil do esquecimento?
Morreu de bala, de velhice ou fome?— O sino que de longe estais ouvindo
redobra só por quem ninguém conhece,
porque não era ninguém, morreu dormindo
e era o tipo que em vida já se esquece.

— Deixou viúva, filhos, testamento?
— Não tinha a quem deixar, e não deixou.
— Pois há de emudecer sob o cimento

sem sequer um adeus de quem ficou?
— Já lhe foi dito adeus quando nasceu
e não adianta falar com quem morreu.

1 de outubro de 1997