Quatro palermas

Olavo de Carvalho

Carta à revista Educação

25 de outubro de 1999

No Brasil de hoje não se discutem doutrinas, opiniões, coisas e fatos, mas pessoas. A linha de fronteira entre as correntes em debate é gostar ou não gostar do fulaninho.

A atividade pensante, nessa atmosfera, reduz-se à mútua esfregação dos egos – asinum asinus fricat –, e a enfezadas manifestações de repugnância coletiva aos que, por falta de tempo ou de interesse, não desejem participar desses jogos de masturbação recíproca em que tanto se comprazem as pessoas maravilhosas.

Infelizmente, como o número de envolvidos dessa atividade lúdica é demasiado grande para que todos as epidermes possam se tocar diretamente, a maioria anônima tem de se restringir a uma forma oblíqua e simbólica de participação, contentando-se com esfregar, à distância, as imagens midiáticas dos jogadores. A disputa entre os blocos de fãs de Marlene e de Emilinha Borba, nos anos 50, marcou para sempre o perfil da nossa fisionomia cultural, tornando-se o arquétipo dos debates filosóficos no país do bunda-lê-lê.

As reações de alguns leitores à minha entrevista em Educaçãoseguem rigorosamente essa linha. Não discutem, aliás nem mencionam, qualquer de minhas opiniões sobre educação. Mas como, de passagem, eu mencionasse o sr. Paulo Freire à guisa de exemplo de alguma coisa que vinha dizendo, quatro palermas se encresparam, agarraram-se ao nome do personagem para fazer dele o centro da discussão e, em bloco, como convém a foliões, saíram gritando: Ele não gosta de Paulo Freire? Que canalha! Tem de gostar! Tem de gostar!

No seu empenho belicoso, empregaram fartamente todo o erudito arsenal do ouvir-dizer, que naquele tempo tinha por fonte bibliográfica a Revista do Rádio e hoje a Rede Globo de Televisão.

Um deles, cuja carta, certamente em razão de sua relevância intelectual, saiu em formato de artigo, escreve uma página inteira contra O Imbecil Coletivo, só para no fim admitir que não o leu. Na página seguinte, oferece como prova de que Alberto da Cunha Melo, Gerardo Melo Mourão e Bruno Tolentino não podem ser grandes poetas o fato, certamente incontestável, de que também não os leu. Desejando pronunciar-se a favor de Paulo Freire, nada diz em defesa de suas doutrinas e práticas – para o que teria sido preciso conhecê-las, o que já seria exigir demais –, porém alega algo de mais decisivo: o tamanho do seu fã-clube. Tal é, de fato, o critério supremo de arbitragem nos programas de auditório.

Já contra minha afirmação de que a esquerda é hegemônica na Rede Globo, o referido articulista recorre a um modus arguendiainda mais irrefutável. Fulmina-a pondo as mãos nas ancas, franzindo o narizinho com ar de desdém e deixando cair dos lábios em bico a sentença implacável com que as empregadinhas, do alto de seus tamancos, provam sua infinita superioridade ante os soldadinhos da PM: “Ah, é, mano?” E sai rebolando, todo vitorioso. Quem, com efeito, ousaria contestar tal argumento? Longe de mim tamanha pretensão.

Um outro, com ar de paternal sapiência, concede que “nem todas” as minhas opiniões são descartáveis, com o que logra obter infalivelmente o efeito desejado: dar à platéia a impressão de que as conhece todas, pintar com o pouco que ouviu dizer a imagem de um saber direto, vasto e notório, posar como o grande crítico que já absorveu e superou o pensamento de Olavo de Carvalho.

Não é preciso dizer que este também sai todo contente, como se tivesse feito realmente alguma coisa, remirando-se deleitosamente no espelho que lhe serve de consciência e pronunciando sobre si mesmo o juízo de consagração definitiva: “Mãe, olha eu.!”

Um terceiro, com ar misterioso, assegura que a expressão “o imbecil coletivo” é um erro de concordância, sonegando porém aos leitores profanos os fundamentos sintáticos de tão profunda assertiva, hauridos decerto numa ciência gramatical destinada, por uma cláusula pétrea da regra iniciática, a permanecer secreta para todo o sempre. Feito isto, nada mais disse nem lhe foi perguntado.

Do último, nada tenho a comentar, exceto que desfere contra mim a pergunta fulminante: “QUEM É Olavo de Carvalho?”. Sim, porque no debate intelectual brasileiro o argumento decisivo em todos os domínios do conhecimento é – como diria Léon Bloy – ser aquilo que se convencionou chamar de “alguém”. Quem exige do interlocutor suas credenciais de “alguém” prova, automaticamente, que se trata de um “ninguém” e que ele próprio, por seu lado, é indiscutivelmente “alguém”. Diante da firmeza do interrogante e da mudez do interrogado, o ouvinte fica inibido de admitir para si mesmo que desconhece a ambos, e, para não passar vergonha ante os circunstantes (que também ignoram tudo do caso mas que ele imagina estarem informadíssimos), sai proclamando que o primeiro – ora, quem é que não sabe? – é pessoa universalmente conhecida.

Assim, pois, nada respondo, e deixo ao missivista o desfrute das agradáveis sensações decorrentes de fazer-se passar por “alguém”, lamentando apenas que sejam tão fugazes. Nem tudo é perfeito. Mas resta sempre a esperança: ainda há de se inventar um modo de prolongar esse orgasminho.

Jornalismo e verdade

Entrevista a um grupo de estudantes da PUC-Minas

17 de outubro de 1999

Sr. Olavo de Carvalho,

Somos alunos de Jornalismo da PUC-Minas. Estamos nos formando no final deste ano e conforme exigido pela universidade, estamos realizando uma pesquisa acadêmica sobre a objetividade no jornalismo impresso. O titulo da monografia e “Objetividade Jornalística: Um Conceito Subjetivo”.

Como parte deste trabalho, temos entrevistado vários profissionais de imprensa. Se fosse possível, gostaríamos que o Sr. colaborasse respondendo as questões a seguir:

Desde já agradecemos e aguardamos sua resposta

Adrilles Jorge, Rodrigo Morais e Leonardo Martins

Respostas de Olavo de Carvalho

1) Quais as principais conseqüências, positivas e negativas, da influencia do jornalismo americano e seus conceitos de objetividade e imparcialidade na imprensa brasileira?

A suposição de que a realidade possa ser picotada em “fatos” e de que estes possam ser expressos numa linguagem padronizada não está presente só no jornalismo americano. Há no mundo anglo-saxônico toda uma tradição filosófica que pensa assim e cujo peso na formação das normas jornalísticas vigentes é geralmente negligenciado pelos estudiosos de jornalismo. “O mundo é o conjunto dos fatos. Fatos são alterações de um estado de coisas.” Estas palavras poderiam constar de qualquer manual de jornalismo, mas são o começo do “Tractatus” de Ludwig Wittgenstein. O dano que esta obra trouxe à inteligência mundial é incalculável. As viseiras mentais que o molde jornalístico americano impõe a leitores e profissionais são apenas uma parcela ínfima da herança mórbida da escola de Wittgenstein e Russel.

 

2) A objetividade jornalística e uma utopia ou uma realidade possível?

A objetividade é sempre possível. O que não é possível é garanti-la mediante regrinhas e norminhas padronizadas. A objetividade é, em última análise, humildade perante o real – a humildade da inteligência. É talvez a mais difícil das virtudes. Não é coisa que se conquiste sem uma ascese interior, dificilmente acessível a pessoas que, como os jornalistas, vivem num meio antes propenso à tagarelice do que à reflexão. A probabilidade de que a massa dos jornalistas alcance essas alturas é a mesma de que todos os homens do mundo se tornem virtuosos por força das normas legais. Em geral, o conceito padronizado de objetividade é justamente um refúgio contra a necessidade de um esforço pessoal de descoberta e admissão da verdade.

 

3) A imprensa atual pratica a objetividade jornalística?

No sentido redutivo do termo, sim. Mas no sentido forte da palavra objetividade, não.

 

4) A quem interessa a hegemonia deste tipo de jornalismo (dito objetivo e imparcial) preconizado atualmente?

Há dois grupos de interesse que hoje partilham quase sem conflitos, por um acordo de cavalheiros, o domínio sobre o jornalismo nacional: os donos das empresas e os grupos políticos que fazem a cabeça da classe jornalística. Os primeiros entendem jornais e revistas como produtos, que devem atender à demanda do mercado. Os segundos entendem-nos como meios de criar ressentimento e ódio no povo para produzir uma revolução e tomar o poder. Na perspectiva dos primeiros, objetividade significa dar igual tratamento à verdade e ao erro, de modo que o leitor se torne incapaz de distingui-los. Na dos segundos, consiste em jogar a culpa de tudo sobre alvos previamente selecionados, destinados a perecer como bodes expiatórios numa futura carnificina redentora. Misture essas duas coisas, em doses equilibradas, e terá a fórmula do jornalismo brasileiro atual: a perfeita mistura da amoralidade com o falso moralismo.

 

5) Na sua opinião, quais veículos impressos atualmente fogem a essa regra do jornalismo dito objetivo?

Que los hay, los hay. Mas não vou citar nomes.

 

6) No que se refere a estruturação de linguagem, o jornalismo mantém estreitas relações com outras áreas do conhecimento, tais como a economia, a literatura, a ciência, etc. E possível manter a objetividade adequando essas outras linguagens – nem sempre objetivas – ao padrão de linguagem jornalístico?

É sempre possível converter uma linguagem especializada numa linguagem geral, mas com isto se perde a virtude máxima da terminologia técnica, que é a brevidade, e se torna necessário fazer textos mais longos. Como o jornalismo atual, paradoxalmente, tende a exigir textos tanto mais curtos quanto mais aumenta o número de páginas dos jornais e revistas, o resultado é que a conversão do especializado no geral se faz de maneira estereotipada e falsa, mediante a adoção de cacoetes verbais cuja repetição contínua e cuja aparente simplicidade produzem no leitor uma ilusão de compreensão.

 

7) A crescente despersonalização do jornalismo não seria mais útil a própria empresa jornalística, posto que, com uma liberdade diferenciada do que hoje existe para o jornalista escrever (exceção feita aos colunistas), poderíamos criar um publico especifico do jornalista e ano do jornal?  

A despersonalização do jornalismo é útil aos senhores da imprensa, mas, como expliquei, há dois grupos de senhores e não um só. Há de um lado os proprietários, de outro os mentores políticos. Ambos lucram com a despersonalização: os primeiros conseguem assim definir melhor o “perfil do produto”, tornando o jornal uma coisa tão fixa e repetível quanto uma embalagem de sabonete; os segundos conseguem dar às opiniões do seu grupo um ar de impessoalidade que as faz passar por convicções gerais da sociedade. “Tutto è burla nel mondo”, concluía o Falstaff de Verdi.

 

8) Não ha uma evidente contradição na apologia que se faz ao discurso da objetividade jornalística, sendo que esse mesmo discurso e sustentado por regras e enunciados subjetivos, ou seja, regras produzidas pela própria mídia?

Há sim. Isto já está dito na resposta a uma pergunta anterior.

 

9) A delimitação do espaço e o molde preestabelecido da enunciação da noticia não são fatores que podem superficializar os assuntos tratados e, por conseguinte, prejudicar a chamada “objetividade jornalística”?

Sem a menor sombra de dúvida.

 

10) Qual seria o modelo de jornalismo ideal?

Cada um tem o seu ideal, e o jornalismo ideal seria aquele que desse campo livre à pluralidade de ideais, portanto à variedade das formas também. Se eu fosse dirigir um jornal, me inspiraria na divisa do “Pif-Paf” de Millôr Fernandes – “Enfim, um escritor sem estilo” – e estamparia logo na primeira página: “Enfim, um jornal sem linha editorial.”

Pirro e Savonarola

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 14 de outubro de 1999

Dar uma prova cabal do que quer que seja, num artigo de jornal, é quase impossível. Aí não se vai além da argumentação retórica, ou prova por verossimilhança. Há, no entanto, retórica e retórica. Algumas argumentações retóricas só valem enquanto tais: têm na verossimilhança o limite extremo da sua possibilidade de prova. Outras são apenas a abreviatura provisória de teorias que, desdobradas em todos os seus detalhes, mostram todo o rigor das provas que as sustentam.

Pedro Laín Entralgo chegou a definir, por essa diferença, o gênero ensaístico: ensaio é a teoria… menos a prova explícita. Captar nas entrelinhas a prova embutida ou a definitiva e irremediável ausência dela – eis a habilidade que se requer do leitor desse gênero de escritos, habilidade que falta miseravelmente às classes letradas do Brasil de hoje, educadas num dualismo patológico que entre a demonstração matemática e a fantasia poética só enxerga um vasto deserto. A essas, como a crianças, é preciso explicarmos tudo nos mínimos detalhes, tapando com respostas cabais cada hiato que sua mesquinha imaginação não logre saltar por suas próprias forças; e no fim ainda temos de suportar, com infinita paciência pedagógica, que ostentem sua demanda voraz de muletas lógicas como um sinal de rigor intelectual e sentido crítico, valha-nos Deus! Neste país a pura dificuldade de pensar tem a glória e o prestígio dos pensamentos difíceis.

Um cartesianismo de almanaque inoculou em certos círculos da nossa sociedade o culto da dúvida, venerada como suprema virtude filosófica. Mas o que diferencia da insegurança ranheta o autêntico senso crítico é que este sabe quando parar, e aquela continua duvidando onde já não há mais nada que perguntar. O limite é dado pelo senso da evidência, sem o qual toda demanda de provas é jogo fútil ou comichão doentia: se alguém é incapaz de distinguir o certo do duvidoso, para que há de cultivar a dúvida senão por deleite ou compulsão? E como não haveriam estas paixões de fechá-lo em seus prazeres ou dores subjetivos, afastando-o cada vez mais do objeto sobre o qual finge pensar? Por isso, a sã credulidade do cidadão comum é melhor ponto de partida para os estudos filosóficos do que a mania argumentativa que hoje se impinge às nossas crianças a título de introdução ao filosofar. Antes de aprender a duvidar, é preciso aprender as razões de duvidar. Mas como estas não são senão a inversão simétrica das razões de crer, não tendo outra consistência senão a que delas receba por negação, só o homem que crê seriamente é capaz de duvidar a sério, e uma geração educada desde tenra idade no ceticismo pedante e na contestação fútil nunca passará de um bando de simuladores de dúvidas, macaqueadores de discussões filosóficas. Mais tola que a crença ingênua é a dúvida leviana.

Não apenas tola, mas positivamente daninha. A corrosão fácil não destrói as crenças habituais (um efeito que só poderia ser obtido pela crítica rigorosa): cria apenas uma inibição de examiná-las atentamente; inibição que nem por se pavonear de ceticismo voltaireano deixa de ser o que é: um temor à experiência profunda, um recuo defensivo para a superfície. E quando toda a capacidade raciocinativa de um homem está empenhada nessa operação de fuga, é fatal que ele não alcance nunca a verdadeira independência de pensamento, mas viva numa insegurança que, quanto mais duvida, mais necessita de crer. Só que, como sua inteligência está toda a serviço da corrosão, o caminho da crença racional lhe está vedado, não lhe restando senão apegar-se à pura emotividade. E, como as emoções são flutuantes por natureza, não podem lhe dar a segurança que ele deseja, a não ser que algo as regule e discipline de fora: daí a busca da emoção coletiva, que exerce sobre a pobre alma o efeito ordenador, estruturante – e, afinal, calmante – de um Ersatz da razão. Eis por que, na mente das nossas classes letradas, o ceticismo mais corrosivo pode coexistir pacificamente com a adesão aos grosseiros moralismos políticos do dia, ninguém aí enxergando a menor contradição em negar a existência do bem e do mal e clamar, ao mesmo tempo, pelo castigo dos maus. Que essa mistura de Pirro e Savonarola sofra de uma insaciável fome de bodes expiatórios, nada mais lógico: o falso clamor de justiça é a exteriorização padronizada do ódio que a alma moralmente inconsistente tem de si mesma.