Maniqueísmo, ignorância e mendacidade

J. O. de Meira Penna

3 de janeiro de 2000

Em 27 de dezembro de 1999, eu estava meio mal de saúde. Quando fico doente, abstenho-me de ler jornais, porque senão demoro mais para sarar. Mas nesse dia me dei mal, porque perdi, no Jornal da Tarde, a melhor coisa que já se escreveu neste país sobre as doutrinas do Dr. Emir Sader, aí honrado com o título de Emir dos Crentes, o mais apropriado, sem dúvida, à sua austera carranca doutrinária. Só agora pude ler esta pequena maravilha, que me foi enviada pelo autor, o meu caro amigo José Osvaldo de Meira Penna, um escritor do qual se deve ler tudo, tudo o que ele publica. – O. de C.

Numa de suas obras principais, A Nova Ciência da Política, atribui Eric Voegelin a Dario Hystapis, o xá que fundou o Império persa no 5.° século antes de Cristo, a primazia de um fenômeno ominoso que perdurou até nosso século. Após haver sido integrado à civilização ocidental, ele constitui, na verdade, a essência da Ideologia, essa “religião civil” de nossa época. Trata-se da iniciativa do rei Aquemênida de atribuir a si próprio a defesa do Bem e da Verdade, projetando sobre seus adversários, quaisquer que fossem, a pecha de serem os defensores da mentira e do mal. O origem dessa dicotomia ética aplicada à política se encontra no próprio dualismo original da religião dos iranianos, desde que seu fundador, Zarathushtra ou Zoroastro, cindiu em dois a divindade, concedendo a Ormudz ou Ahura Mazda as qualidades de bondade e veracidade, a ele opondo Arihman, o “grande satã”, deus do mal e da mentira. O dualismo transcendente tomaria uma forma mais pronunciada nos ensinamentos de um outro profeta, Mani ou Manichaeus, que viveu 800 anos depois e influenciou as seitas gnósticas de princípios de nossa era. Fundador de uma religião conhecida como maniqueísmo, Mani contaminou de mitologia mágica dualística todas as heresias que ameaçariam a ortodoxia católica na Idade Média, Cátaros, Albigenses, etc. Não nos esqueçamos que S. Agostinho, o maior filósofo cristão, professou o maniqueísmo em sua mocidade, a tal ponto que muitos críticos reconhecem em sua teologia reminiscências do dualismo ético, tão entranhado agora na mente humana que é difícil dele nos libertarmos.

Foi Agostinho, no entanto, quem melhor desenvolveu a interpretação correta que S. Paulo fez do Evangelho de Cristo, segundo a qual é em nós mesmos que devemos procurar a oposição entre o Bem e o Mal. No maniqueísmo, ao contrário, somos nós, seus professos, donos da verdade e da justiça, enquanto detestáveis são aqueles que não pensam como nós porque portadores da maldade e da mentira. É fácil avaliar a importância dessa psicopatologia na postura do ideólogo moderno, fiel ao cego dogmatismo de suas mais estapafúrdias doutrinas e sempre disposto a acusar de mentiroso, injusto, perverso e egoísta seus adversários. A dialética do Bem e do Mal que o maniqueísmo provoca leva o alegado defensor da Verdade a recorrer a qualquer instrumento para eliminar o Outro. A faca do assassino (do árabe hashishim, comedor de haxixe), os fogos da Inquisição, o Gulag e Auschwitz, a bomba terrorista da “guerra santa” dos aiatolás, o tiro na nuca no porão do KGB e o paredón para punir o traidor vendido aos interesses alienígenas, tornaram-se banais em nossa época. Orwell descreveu magnificamente o “duplo-pensar” totalitário que justifica o crime. O ideólogo pensa estar defendendo a justiça e a verdade, de tal modo que a prisão moscovita se transforma em “amorzinho” (Lubianka) e o genocídio é a justa recompensa dos “capitalistas burgueses”. Voegelin descobre traços do processo psicopatológico que cinde a realidade histórica, necessariamente complexa e cinzenta, na simplicidade dualística do branco X preto ou, como se prefere hoje dizer, da “esquerda” e “direita”. O nazismo e o marxismo, em suas várias vertentes, são as manifestações mais clamorosas da enfermidade mental. Claro. O nacionalismo xenófobo se tornou, porém, a partir da 1.ª Guerra Mundial, a expressão coletiva mais banal da esquizofrenia paranóica. A corrupção da verdade em seu oposto, a Grande Mentira dialética, é também suscetível de ser diagnosticada como Pseudologia Epidêmica ou Pseudodoxia Fantástica. Assim como o católico atribuía ao protestante todos os males, o nazista os atribui aos judeus, o marxista aos liberais e o latino patrioteiro aos americanos.

As observações acima vêm a propósito da ira incontida, verdadeira rebordosa histérica que maltrata os “esquerdistas” (chamêmo-los assim, já que tanto apreciam esse grotesco termo jacobino) diante do colapso da URSS, da queda do Muro de Berlim e do fenômeno da globalização, aparentemente irreversível. A adoção quase universal das receitas liberais, mesmo pelos partidos tidos como de “esquerda”, o Labour de Mr. Blair, a Gauche de Monsieur Jospin, o regime de Deng Xiaoping e Jian Zemin (Dois Sistemas, Um Só País), a “Concertación de Izquierda” do Chile, o Justicialismo argentino e mesmo, entre nós, o PSDB de FHC – se traduz por programas de abertura ao mercado global e privatizações. Assim mesmo, o annus mirabilis de 1989 (saudemos essa data maior do século 20!) concedeu a esse pessoal um tempo suficiente para que se recomponham. Afinal de contas, a revolução liberal foi uma “revolução de veludo”, como a denominou o presidente checo Vaclav Havel. Os liberais, não somos vingativos, reconhecemos nossos próprios defeitos e insuficiências, não absolutizamos nossas idéias, reconhecemos que elas evoluem e se integram em outras receitas. Se tivéssemos imitado Lenin, Stalin, Hitler, Mao ou Fidel Castro, os socialistas que escapassem do paredón ou da bala na nuca estariam hoje encerrados todos num Gulag apropriado, maior do que a ilha de Cuba. Ao invés, eles voltaram ao poder sob títulos diversos. São “populistas”, “petistas”, “social-democratas” ou “socialistas cristãos”. Agarram-se aos cargos e mordomias. Escrevem nas folhas mais conservadoras do País. Colaboram com os mais opulentos bilionários. Chamam Roberto Campos de Bob Fields. E até mesmo o senador Roberto Freire é convidado de honra num simpósio da Fundação Konrad Adenauer (ó manes do der Alte!).

No Brasil, é mais óbvio seu descaramento. Um exemplo supino é o do Emir dos Crentes, mais conhecido como professor Sader. Perdoe-me esse eminente “sociólogo” levantino e guru do PT se lhe renovo o merecido galardão, do “Prêmio Imbecil Coletivo de 1996”, a ele concedido por Olavo de Carvalho. Suas idéias são bastante características. Definem o mecanismo de transferência de culpa, dialética mendaz, deslealdade e cínica hipocrisia “xiita” (mas será que o professor é sunita?). Um exemplo é a tentativa de contrapor ao “Livro Negro do Comunismo” (cem milhões de mortes) um pseudo “Livro Negro do Capitalismo”. Ao denunciar o “desconhecimento da história”, indigitar o “pensamento único” e utilizar o truque de interpretar de modo estreitíssimo os dogmas marxistas-leninistas, ele atribui a 1.ª Guerra Mundial (20 milhões de mortes) ao capitalismo. Admiravelmente simples! Só que em 1914 a França e a Grã-Bretanha eram governados por partidos de esquerda – os dois líderes, René Viviani e Clemenceau, ambos socialistas, e Lloyd George um liberal de esquerda apoiado pelo Labour. Um único prestigioso socialista se opôs ao conflito, Jean Jaurès, e foi assassinado por ser germanófilo. O reich bismarckiano era, similarmente, dirigido pelos social-democratas e, dos dois lados da cerca, todos os socialistas aplaudiram e votaram os orçamentos de guerra de seus respectivos governos. O mesmo em 1939. Atribuir ao “Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães”, os Nazistas de Hitler, um vezo “capitalista” é uma aberração da inteligência. Em 1939, capitalistas eram os judeus… Todos os liberais austríacos e alemães que, no pós-guerra, iriam erguer a “economia social de mercado” e promover o “milagre alemão”, homens como Adenauer, Eucken, Machlup, Ludwig Erhard, von Mises e Hayek, se encontravam no ostracismo, na cadeia ou no exílio.

Mas porventura os militares nipônicos que, em 1932, invadiram a Manchúria, em 1937 a China, promoveram o rapto de Nanking e, em 1941, bombardearam Pearl Harbor seriam também burgueses capitalistas? E o Pacto Molotov-Ribbentrop de agosto de 1939, que desencadeou a guerra (50 milhões de mortes) permitindo a Hitler liquidar separadamente com a Polônia, a Escandinávia e a França, enquanto Stalin, o outro parceiro, se locupletava com a outra fatia da Polônia, os Estados bálticos e a Finlândia – foi por acaso firmado por capitalistas burgueses? E como foi mantido e se expandiu o Império soviético (60 milhões de vítimas)? Quem invadiu a Coréia do Sul em 1950, o Tibet em 1951 e a Índia setentrional em 1963? Não foi o Vietnã de Ho Chimin que assolou a Kampuchea democrática (um milhão de mortes) e entrou em guerra com a China maoísta em 1979? Não foi o Iraque que atacou o Irã e a URSS que ocupou o Afeganistão? E a Iugoslávia de Milosevitch não era comunista quando se desintegrou em sangrenta guerra civil (300 mil mortos)? O ilustre Emir dos Crentes deve aprender história no curso primário antes de escrever “Em Defesa da História” nos jornais burgueses de Brasília, Rio e São Paulo, essas mesmas folhas que acusa de colaborarem no “festival do pensamento único que assola nossa imprensa”. Mas talvez tenha razão: o festival de pensamento único que assola nossa imprensa e o “clima de impunidade” com idéias estrambólicas é a mesma orgia ideológica de que o comendador está, precisamente, gozando com seus comparsas…

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J.O. de Meira Penna é embaixador, escritor e presidente do Instituto Liberal de Brasília. E-mail: meirapen@zaz.com.br

Espírito e cultura: o Brasil ante o sentido da vida

Olavo de Carvalho

31 de dezembro de 1999

Primeira Meditação de Ano Novo

Por vezes, do fundo obscuro da alma humana, soterrada de paixões e terrores, nasce um impulso de libertar-se da densa confusão dos tempos e erguer-se até um ponto onde seja possível enxergar, por cima do caos e das tormentas, dos prazeres e das dores, um pouco da harmonia cósmica ou mesmo, para além dela, um fragmento de luz da secreta ordem trancendente que — talvez — governa todas as coisas.

É o impulso mais alto e mais nobre da alma humana. É dele que nascem todas as descobertas da sabedoria e das ciências, a possibilidade mesma da vida organizada em sociedade, a ordem, as leis, a religião, a moralidade, e mesmo, por refração, as criações da arte e da técnica que tornam a existência terrestre menos sofrida.

Nenhum outro desejo humano, por mais legítimo, pode disputar-lhe a primazia, pois é dele que todos adquirem a quota de nobreza que possam ter, residindo mesmo aí o critério último da diferença entre o humano e o sub-humano (ou anti-humano) e, por conseguinte, para além de toda controvérsia vã, a chave da distinção entre o bem e o mal. É bom o que nos eleva à consciência da ordem e do sentido supremos, é mau o que dela nos afasta. Não tem outro significado o Primeiro Mandamento: Ama a Deus sobre todas as coisas.

Acontece que a esse impulso fundamental corresponde um outro, derivado mas não menos forte: aquele que leva o homem que entreviu a ordem e o sentido a desejar repartir com os outros homens um pouco daquilo que viu. Não há certamente maior benefício que se possa fazer a um semelhante: mostrar-lhe o caminho do espírito e da liberdade, pelo qual ele pode se elevar a uma condição que, dizia o salmista, é apenas um pouco inferior à dos anjos. Tal é, substancialmente, a forma concreta do amor ao próximo: dar ao outro o melhor e o mais alto do que um homem obteve para si mesmo. Amamos o nosso próximo na medida em que o elevamos à altura dos anjos. Fazemos-lhe o mal quando o rebaixamos à condição de bichinho, seja com maus tratos, seja com afagos.

Nessas duas exigências está contida, dizia Cristo, toda a lei e os profetas.

Para grande escândalo do relativismo pedante que desejaria nos convencer da geral discórdia entre os valores culturalmente admitidos nas várias sociedades, a universalidade desse duplo mandamento é um dos dados mais evidentes da história mundial. Não há com efeito civilização, por mais remota ou “bárbara”, que não tenha valorizado, acima de todas as outras virtudes e motivações humanas, o impulso para o conhecimento e o ensino da “única coisa necessária”. O prestígio universal do sacerdócio — no sentido amplo que Julien Benda dava à palavra clerc, que inclui a presente classe dos “intelectuais” — é o mais patente sinal de que, por trás de toda a confusão aparente das línguas, a humanidade unânime tem plena consciência de uma hierarquia de valores que, se fosse questionada, suprimiria no ato a possibilidade mesma do questionamento, já que não se pode questionar um saber exceto em vista de um saber mais alto.

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A observações gerais, suficientemente óbvias para só terem de ser lembradas explicitamente em situações de desorientação e confusão incomuns, eu desejaria aqui dar alguns desenvolvimentos mais particularizados e mais ligados à existência histórica, concernente, de um lado, à cultura e à civilização — consideradas ainda em escala geral —, de outro à presente e catastrófica situação da cultura brasileira.

Com relação ao primeiro ponto:

1. Embora o impulso ascensional a que me referi seja sempre e universalmente o mesmo, o movimento de doação e repartição que se lhe segue tem de tomar, por força, a forma dos canais de comunicação existentes numa sociedade historicamente dada: língua, símbolos, valores, etc. Daí que se possa sempre observar, no estudo das manifestações superiores da espiritualidade, esse duplo direcionamento, que de um lado atesta a convergência dos caminhos percorridos pelos homens espirituais de todo o mundo (“tudo o que sobe converge”, dizia Teilhard de Chardin), de outro a pluralidade inesgotável das formas assumidas pelos testemunhos incorporados ao legado cultural: textos, obras de arte, leis, etc. (1)

2. Todo fenômeno de ascensão interior, sem exceção, começa sempre com um indivíduo isolado — e que, no curso da sua caminhada, é levado a isolar-se ainda mais da comunidade em busca da necessária condição de concentração espiritual —, e se completa com a irradiação de parte dos conhecimentos obtidos, de início numa discreta roda de companheiros ou discípulos investidos da mesma disposição para o isolamento e a concentração, em seguida em círculos cada vez maiores, até abranger comunidades, sociedades e civilizações inteiras. (2)

3. No processo de irradiação, intervêm a memória e o registro. De início transmitidos oralmente e sustentados pela presença e pelo exemplo do mestre, os ensinamentos não tardam a registrar-se, não raro sob a forma compacta de sentenças lacônicas ou de narrativas alusivas e simbólicas — ou grafismos, ou melodias — que constituirão o núcleo irradiante em torno do qual se formará, com o tempo, a cultura. Esta pode abranger desde simples repetições imitativas das formas originárias até uma infinidade de desenvolvimentos intelectualmente relevantes. Qualquer que seja o caso, é uma fatalidade da constituição humana que a reprodução das condições internas e psicológicas do aprendizado, que depende exclusivamente da livre iniciativa dos futuros aprendizes e só pode ser estimulada mas não determinada pela cultura, não acompanhe jamais a velocidade da proliferação das criações culturais que refletem o núcleo inspirador inicial de maneiras cada vez mais distantes, apagadas, indiretas e finalmente invertidas. O que começou como uma intuição direta da ordem suprema termina como debate entre ignorantes e cegos esmagados sob toneladas de registros materiais tornados incompreensíveis.

4. Esses três momentos refletem, no microcosmo da história humana, os três gunas ou “movimentos básicos do cosmos” de que fala a doutrina hindu: sattwa ou movimento ascensional, rajas ou movimento expansivo, e tamas, ou movimento descendente, degradante e “entrópico”. Rajas nasce de sattwaassim como o Segundo Mandamento decorre do Primeiro. O terceiro momento nasce do segundo, quando se torna autônomo e perde sua raiz no primeiro: quando o amor do ser humano ao ser humano já não visa a elevá-lo acima de si mesmo, mas se limita a desejá-lo e agradá-lo, o amor se degrada em lisonja, a lisonja em manipulação e a manipulação em ódio. No fim já não é possível distinguir uma coisa da outra e o ponto mais fundo do engano se atinge quando o grosseiro e o brutal, a revolta e o fanatismo passam a ser aceitos socialmente como manifestações do “autêntico”, quando são apenas o resultado de uma longa sedimentação de erros e um condensado de todas as idolatrias passadas. Na esfera intelectual, a mesma coisa: quando o ensino e a cultura já não transmitem a inspiração originária mas põem em seu lugar o culto idolátrico das formas acumuladas historicamente (o que pode tomar a forma do dogmatismo seco, ou do estetismo, ou do formalismo social, etc.), ainda resta a possibilidade de uma reconquista do sentido interior, mas a proliferação mesma das criações culturais, ilusoriamente tomada como riqueza, torna isso cada vez mais difícil, e por fim a acumulação de pontos cegos se condensa num aglomerado de erros fundamentais — uma “revelação satânica” — que, justamente por seu caráter compacto, obscuro, brutal e impressionante, é tomado ilusoriamente como uma descoberta libertadora. Que um “filósofo” tenha chegado a explicar a história pela organização econômica, como se a organização econômica surgisse do nada, como se ela pudesse brotar diretamente do substrato animal do homem, como se ela não fosse reflexo e subproduto da elevação do homem em direção à percepção da ordem cósmica — eis um curioso e trágico exemplo dessa inversão onde a densidade mesma das trevas é tomada como uma espécie de fulgor. (3)

5. Um dos traços marcantes do período entrópico é que a própria administração de uma vasta e crescente coleção de registros culturais requer a formação de uma classe de letrados para a qual esse legado, considerado em si mesmo e independentemente de qualquer referência às suas fontes inspiracionais, se torna objeto de estudo e devoção. Técnicas especiais são criadas para esse fim — a bibliografia e a bibliologia, a filologia, a crítica histórica dos documentos, a análise estrutural — e essas técnicas por sua vez se acumulam até o ponto de constituir um universo cultural de direito próprio. Algumas delas podem visar à simples conservação ou reconstituição dos documentos, outras à sua “interpretação” em função das épocas e ideologias, outras a elucidar sua estrutura interna, etc. Todas são alheias ao problema central: assegurar que o examinador tenha a condição interior de elevar-se à experiência originária da qual o documento é registro. Essa condição é dada por pressuposta ou deixada à casualidade do maior ou menor talento pessoal. Ela está completamente fora do processo investigativo e educativo, que assim tem o seu foco inteiramente voltado, seja para os registros em si, seja para suas circunstâncias, para o que lhes está em torno. Mostrar habilidade no domínio dessas torna-se o critério essencial de seleção e avaliação na vida intelectual, e o decorrente desvio das discussões para uma infinidade de aspectos menores e irrelevantes produz a criação de novas e novas técnicas, tornando a vida intelectual uma insensata demonstração de força e, no fim, produzindo por inevitável reação o surgimento de técnicas para destruir as técnicas e para provar a absoluta inocuidade dos documentos.

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Com relação ao segundo ponto, isto é, à situação atual da cultura brasileira, o que é preciso enfatizar é o seguinte:

1. Em quinhentos anos de existência, a cultura deste país não deu ao mundo um único registro de experiência cognitiva originária. Nossa contribuição ao conhecimento do sentido espiritual é, rigorosamente, nula. Não há nas correntes culturais do mundo um único símbolo, conceito, idéia ou palavra essencial à conhecimento, que tenha sido descoberta de um brasileiro. Toda a nossa “produção cultural” consiste apenas de prolongamentos e ecos de registros absorvidos de culturas estrangeiras. (4) Nesse sentido, nossa cultura é rigorosamente “periférica” em relação à história espiritual do mundo. Periférica, portanto, num sentido bem diverso ao que essa palavra tem no jargão do academismo esquerdista (Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso, etc.), onde centro e periferia são economicamente determinados e daí decorre uma teoria grotesca que identifica o centro espiritual do mundo ao centro do poder econômico — teoria ela mesma periférica, no sentido que dou ao termo.

2. Como entramos no curso da história num momento em que as culturas que nos serviam de fontes já se encontravam elas próprias num estado avançado de decomposição entrópica, perdendo cada vez mais de vista as intuições originárias e enrijecendo-se num formalismo do qual agora tentam desesperadamente sair mediante a decomposição geral das formas (como um homem que, cansado de tentar em vão compreender um livro passa a rasgá-lo na esperança de da sua decomposição física obter a sua quintessência), toda a história da nossa cultura é a do eco de um eco, da sombra de uma sombra. Todos sabemos disso e temos vergonha disso. Procuramos inutilmente aliviar essa má-consciência lançando as culpas no econômico (o que já é reflexo de uma ilusão, portanto duplamente periférico), ou então apegando-nos à quantidade e declarando que o volume de uma produção irrelevante e repetitiva é prova de nossa “criatividade”.

3. Considerando-se os nossos cinco séculos de história, a extensão física e o volume populacional deste país, a nulidade da nossa contribuição espiritual chega a ser um fenômeno espantoso, sem paralelo na história do mundo. O desinteresse, a letargia espiritual da cultura brasileira, a prisão da inteligência nacional na esfera do econômico imediato, são sinais de uma pequenez de alma que jamais se observou em tão impressionante escala coletiva. Se existissem verdadeiros estudiosos acadêmicos entre nós esse tema seria motivo de preocupação e debates. Mas toda a nossa vida acadêmica é ela própria reflexo desse fenômeno, que escapa portanto ao seu horizonte de visão: nossas classes letradas não têm força sequer para tomar consciência da sua própria miséria espiritual.

4. Nem mesmo no domínio religioso, que é aquele onde a busca espiritual tem o seu suporte mais fácil e natural, registramos uma única experiência que atestasse algo como um contato direto, mesmo breve e fugaz, entre um brasileiro e o sentido da vida cósmica. Toda a nossa “religiosidade” é periférica e imitativa, resíduo da decomposição de cultos extintos ou cópia de pseudo-religiões inventadas na Europa ou nos Estados Unidos.

5. É exatamente por isso que toda ideologia nacionalista, entre nós, tem sido simplesmente reativa e oportunista, já que não pode se fundar em valores espirituais inexistentes. A pressa com que nosso povo copia hábitos e modos de falar estrangeiros, dando mesmo a seus filhos nomes ingleses ou franceses, mostra a profunda indiferença popular por uma cultura que nada tem a lhe dizer sobre o sentido da vida e que, no máximo, lhe fornece, na música popular, no futebol e no Carnaval, os meios e a ocasião de se anestesiar, por meio de ruídos sem sentido, contra o sem-sentido da vida. Nosso nacionalismo, por isto, não pode se compor de verdadeiro amor à pátria, exceto em estreitos círculos — por exemplo nas Forças Armadas ou em antigas famílias de altos servidores públicos — que têm sua história comunitária ligada às lutas pela formação política do Brasil e por isto amam sua criação. Pode também haver um certo amor à pátria na constatação direta de certas virtudes espontâneas da sociedade brasileira, mas esta constatação, em vez de ser reforçada no nível da cultura letrada é aí desmentida à força de sofismas de um artificialismo impressionante (produzidos, é verdade, a soldo das fundações Ford e Rockefeller, mas por pessoas que, por outro lado, sendo esquerdistas, se acreditam piamente nacionalistas e anti-americanas, o que já basta para atestar a leviana superficialidade de suas inteligências). Fora disso, o nacionalismo no Brasil se constitui apenas de ressentimento anti-americano — motivado antes pelas culpas recalcadas da classe letrada do que por queixas objetivas, embora estas existam — e não tem nenhum fundamento cultural autêntico.

6. Toda aspiração nacional de tornar-se “grande potência” com uma base cultural tão nula está condenada, de antemão, seja ao fracasso, seja a um sucesso que se tornará, caso alcançado, um flagelo para a humanidade, obrigada a curvar-se ante a força bruta de novos bárbaros que nem sequer têm um senso próprio de orientação na História onde interferem cegamente.

7. Todo patriotismo, aqui, é investimento num país imaginário e meramente possível, apenas toscamente prenunciado pelas virtudes populares espontâneas que mencionei, as quais aliás se dissolvem velozmente sob o impacto do discurso destrutivo que hoje é o Ersatz de moralidade entre as nossas classes letradas. Quem deseje contribuir para que esse país se torne realidade só tem um caminho a seguir: lutar para que a cultura brasileira se ligue às fontes centrais e permanentes do conhecimento espiritual, para que a experiência da visão espiritual ingresse no nosso horizonte de aspirações humanas e, uma vez obtida, faça explodir, com a força das intuições originárias, todo um mundo de formas imitativas e periféricas, gerando uma nova vida.

O resto é pura agitação sem finalidade.

NOTAS

  1. Sempre houve por isso uma tensão criadora entre a abordagem “interna” ou espiritual desses estudos e a sua abordagem “externa”: cultural, histórica, sociológica, etc. Um exemplo do primeiro ponto de vista — um corte “estático” no panorama das espiritualidades mundiais, mostrando a substancial unidade das experiências interiores em todas as épocas e civilizações — é dado na monumental antologia de textos sagrados, espirituais e místicos organizada por Whitall N. Perry sob o título A Treasury of Traditional Wisdom (Pates Manor, Bedfont, Middlexex: Perennial Books, 1971, 2nd. Ed. 1981). A abordagem “externa” é também necessária, mas é realizada em geral por diletantes a quem o sentido “interno” escapa por completo — Mauss, Benedict, Mead, Lévy-Strauss, Sapir, para não falar nada da vulgata marxista —, e seu resultado é praticamente nulo. Mircea Eliade, no seu clássico Tratado de História das Religiões, parte de uma efetiva apreensão interior da unidade, mas, diante da variedade dos fenômenos que a manifestam, não consegue passar da primeira etapa do esforço de racionalização científica, que é a classificação. Bem mais longe vai Eric Voegelin em Order and History, 5 vols., Baton Rouge: Louisiana University Press, 1956-1981, gigantesco e bem sucedido esforço de articular, segundo um corpo organizado de conceitos e métodos, a unidade latente da percepção da ordem e a sucessão histórica de suas várias manifestações.
  2. Um breve exame da regularidade invariável com que esse fenômeno se repete ao longo das eras, bem como da constância com que em torno deles se articulam as grandes mutações históricas, basta para notar que o Primeiro e o Segundo Mandamentos não são apenas as banais receitas normativas e devocionais em que os converteu a estúpida pseudo-religiosidade contemporânea (vaticana inclusa), mas a clave reguladora do devir, os princípios fundamentais da ontologia do ser histórico.
  3. Imaginar que essa macabra inversão da realidade pudesse levar a outro resultado que não à criação do Estado mais homicida que já existiu é coisa de hipnotizados. O marxismo é a causa intelectual direta de tudo o que se passou no mundo comunista e todo marxista é cúmplice consciente ou inconsciente do genocídio soviético-chinês. — Aliás, já passei do tempo em que, tendo-me despedido do meu marxismo juvenil, ainda podia falar de Karl Marx com respeito. Quanto mais o conheço, mais o desprezo. Ele nunca foi filósofo, foi apenas um satanista deslumbrado, um mentiroso contumaz e um charlatão capaz das piores falsificações científicas, além de um racista capaz de se referir a negros e orientais como “lixo étnico”, um burguês hipócrita capaz de proibir à mesa da família a presença do filho bastardo que tivera com a empregada, e, o que é pior de tudo, um espião a serviço do governo austríaco, delatando por baixo do pano os mesmos companheiros nos quais insuflava o ardor revolucionário com discursos impregnados de ódio. Se querem tirar a dúvida, leiam, além dos capítulos indispensáveis que lhe dedicaram Paul Johnson em Intelectuais e Edmund Wilson em Rumo à Estação Finlândia, o assombroso Marx and Satan, de Richard Wurmbrand. O pastor Wurmbrand, uma das figuras exponenciais da espiritualidade do século XX, judeu convertido ao protestantismo, foi preso e torturado pelos comunistas durante quatorze anos (as cicatrizes das torturas repetidas foram comprovadas por uma comissão da ONU) pelo crime de levar o conforto religioso aos prisioneiros.
  4. Creio que a obra de Mário Ferreira dos Santos contém mais de um registro de descoberta espiritual originária e que, por isto mesmo, quando a palavra “Brasil” tiver se apagado da memória do mundo, essa obra ainda viverá. Mas, por enquanto, não há lugar para ela numa cultura nacional que ainda não se elevou à altura de compreendê-la, e por isto seria injusto chamá-la de contribuição “brasileira”. Um país não tem nenhum direito de se apropriar de méritos que não soube sequer reconhecer. Trata-se portanto de descoberta de um indivíduo, que por estar fora da sua cultura nacional nada deve a ela e, a rigor, vale mais do que ela inteira.

Gilberto Freyre: maior que a própria imagem

Olavo de Carvalho

25 de dezembro de 1999

Escrevi esta introdução, a pedido do embaixador Jerônimo Moscardo, para a edição romena de Casa Grande & Senzala, em curso de publicação pela Fundação Brasil-Romênia, Bucareste. — O. de C.

Foi o crítico paulista Antônio Cândido quem delineou a imagem consagrada com que Gilberto Freyre aparece, hoje, no panteão da memória nacional. Essa imagem está inseparavelmente associada à “redescoberta do Brasil” na década de 30, movimento que, assinalando um súbito florescimento das ciências sociais e a abertura de novas possibilidades para a compreensão da história nacional, encontrou suas expressões mais altas e mais típicas em três livros que se tornaram clássicos: Formação Histórica do Brasil, de Caio Prado Júnior, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, e Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre.

O que havia em comum nesses três livros era a introdução, no estudo da sociedade brasileira, de novos métodos de investigação importados dos centros criadores do pensamento mundial. Caio Prado Jr. trazia a primeira interpretação marxista mais consistente (porque inconsistentes já havia muitas) das bases da nossa formação; Buarque de Hollanda aplicava à compreensão da realidade brasileira os instrumentos da nova escola histórica francesa; Gilberto, os da moderna ciência antropológica norte-americana, adquiridos de Franz Boas na Columbia University.

Somadas, essas contribuições davam um giro considerável nos estudos sociais brasileiros, até então dominados pela mentalidade oitocentista do positivismo (mais de Littré que de Comte) e do evolucionismo (mais de Spencer e de Haeckel que de Darwin), interpretados, além disso, mais à luz de intuições literárias improvisadas que de uma discussão científica pesada.

Os efeitos dessa renovação do pensamento propagaram-se muito além dos círculos acadêmicos. Ajudaram a moldar as correntes políticas que então se formavam na esteira da Revolução de 1930 chefiada por Getúlio Vargas, movimento autoritário e nacionalista, mas rico de promessas graças à sua própria ambigüidade constitutiva, na qual haveria lugar para o desenvolvimento de três linhas de influência ideológica reforçadas, se não geradas, pelos três livros de que estamos falando, embora nenhum de seus autores fosse adepto ex professo do regime produzido pela Revolução. É que, mais que um regime político, a “era Vargas”, malgrado todos os conflitos e mesmo as crueldades que a assinalaram, foi uma época de tomada de consciência da nacionalidade, um tempo de extraordinária autoconfiança patriótica que mudou o ritmo da nossa História e marcou, de uma vez para sempre, a fisionomia do Brasil. Uma de suas características mais fecundas — e certamente aí reside a explicação do brilho invulgar que rodeia sua imagem histórica — foi justamente sua capacidade de absorver na ideologia governamental, rapidamente e sem a menor reserva, todas as criações mais notáveis do pensamento, das artes e das letras. Vargas, homem culto e conhecedor certeiro da alma humana, não se contentava em proteger, desde fora e na posição de mecenas oficial, as manifestações da cultura. Ele as compreendia profundamente, com notável visão intuitiva da contribuição que cada uma, com as extremas diferenças individuais que as singularizavam, trazia à definição do perfil nacional. Assim, por exemplo, ele percebeu de imediato a extraordinária elevação de nível que a obra de Heitor Villa-Lobos trazia ao padrão musical brasileiro, e investiu o maestro de plenos poderes para implantar, em todas as escolas do país, o ensino do canto coral. Ao mesmo tempo, promoveu o samba dos morros cariocas ao estatuto de síntese da musicalidade popular brasileira — um papel que esse ritmo, na verdade apenas uma das centenas de expressões regionais num país que é talvez o mais variado do mundo sob esse aspecto, conserva até hoje perante o mundo. Considerada enquanto símbolo da nacionalidade, a mulata sambando na avenida é, a rigor, uma invenção de Getúlio Vargas. Ao mesmo tempo que fomentava as ciências e a discussão filosófica, cercando-se de homens de gênio como o jurista Francisco Campos e o filósofo Djacir Menezes, estendendo a proteção oficial dos cargos públicos até mesmo aos escritores mais notoriamente hostis ao regime, como Graciliano Ramos — comunista libertado da prisão por iniciativa pessoal do presidente —, Vargas incentivava a produção de comédias cinematográficas, as célebres “chanchadas” dos estúdios Atlântida — de uma graça despretensiosa que ainda hoje faz rir.

Definir e realçar a personalidade da nação foi uma das preocupações centrais do governo Vargas — e aqui os três livros que mencionamos desempenharam papéis essenciais. O de Buarque de Hollanda forneceu ao regime um dos temas principais do seu discurso ideológico: o conceito da “cordialidade” como o traço singularizador do povo brasileiro. O termo, que expressa eficazmente a primeira impressão que todo visitante tem da conduta nacional, suscitou polêmicas sem fim e, em tempos mais recentes, teóricos interessados em enfatizar a “violência do sistema” para legitimar a violência revolucionária têm denunciado a “cordialidade” como um mito criado pela propaganda oficial de Vargas. A imputação é falsa. Buarque de Hollanda era um cientista sério e, ademais, um aristocrata paulista que não podia ver com bons olhos o regime do populista gaúcho. Se sua observação exata da conduta brasileira deu um argumento ao regime, isto prova apenas que as ditaduras às vezes podem dizer a verdade.

O livro de Caio Prado Jr. pareceria, dos três, o menos assimilável. Mas o alinhamento tático dos comunistas com a burguesia nacionalista, estritamente seguido pelo autor, fez com que a análise marxista da nossa História se tornasse um argumento em favor da industrialização do país, então iniciada por empresários de São Paulo com o apoio de um governo fortemente imbuído das idéias protecionistas do economista romeno Mihail Manoilescu. Da Formação do Brasil Contemporâneo, as classes dirigentes, com a anuência tácita dos comunistas, só absorveram o que trazia água ao moinho de Manoilescu, deixando a luta de classes para depois.

Finalmente, o livro de Gilberto trazia ao governo Vargas a peça mais importante do seu discurso nacionalista: um anti-racismo solidamente fundamentado e a defesa entusiástica da miscigenação, celebrada como causa da singularidade brasileira, numa linha que depois seria adotada também, com belicosa e sarcástica eloqüência, por Darcy Ribeiro, também antropólogo. E se Gilberto agiu como puro descendente intelectual de Franz Boas, sem qualquer interesse político num regime a que em seguida viria a se opor abertamente como deputado eleito por um partido liberal, Darcy, por seu lado, se tornaria o principal teórico e mentor do governo nacional-esquerdista de João Goulart, o principal herdeiro ideológico de Getúlio Vargas.

Num ambiente em que o evolucionismo anglo-saxônico aliado à moda racista germanizante fazia a elite olhar com crescente desânimo a nossa população de mestiços, a prova gilbertiana da eficácia da adaptação de mulatos e cafuzos ao trabalho nos trópicos despertou subitamente a consciência do valor da nacionalidade e criou uma atmosfera de orgulho e esperança que muito contribuiu para os ambiciosos planos reformistas do governo Vargas.

Considerados como expressão “do seu tempo”, esses três livros marcaram portanto (1o.) a inauguração do nacional-progressismo como ideologia dominante das elites intelectuais brasileiras; (2o.) a independência das ciências sociais brasileiras em relação a suas fontes tradicionais oitocentistas, e o início de uma nova era marcada pela influência predominante da escola histórica francesa, do marxismo e da antropologia norte-americana.

Assim situado historicamente, Gilberto Freyre, com todas as honras de pioneiro que ninguém lhe nega, pôde ser facilmente datado, catalogado e embalsamado. Quando Antônio Cândido celebra a leitura de Casa Grande & Senzala nivelando-a à dos outros dois livros e fechando-a no nicho das influências decisivas que formaram sua própria geração, a glória máxima do homenageado reduzia-se enfim à de precursor do homenageante. Mas Antônio Cândido não punha, nisso, a menor pretensão pessoal. Homem discreto e sutil, afinado com os seus colegas de ofício, falava em nome de sua geração. Que geração? A dos antigos estudantes que agora, na data em que ele escrevia, se haviam tornado professores e dominavam a maior universidade brasileira — a de São Paulo —, aí implantando, aos poucos e com as mais escrupulosas precauções acadêmicas, a hegemonia marxista que hoje, consagrada, já se escancara sem precaução ou escrupulosidade alguma.

Que a ambígua homenagem de Antônio Cândido objetivava no fim das contas contribuir apenas para esse resultado, neutralizando polidamente qualquer resistência que pudesse inspirar-se no democratismo liberal de Freyre, é algo que se vê pela continuação imediata da história. Após esse prefácio marcante, logo a primeira manifestação da USP a respeito de Gilberto Freyre toma a forma de uma pretensa Aufhebungmarxista do seu pensamento. Ideologia da Cultura Brasileira, de Carlos Guilherme Mota, tirava a conclusão lógica dos postulados de Cândido: se Gilberto tinha sido a expressão da ideologia nacionalista de uma época extinta, essa expressão, considerada no fio do tempo, nada mais podia significar senão uma etapa dialética em direção ao reino uspiano das luzes; e Gilberto, não aderindo à nova corrente, sobrevivera-se a si mesmo e esclerosara-se no reacionarismo, como o provava seu recente apoio ao regime militar, bête noire da intelectualidade esquerdista e da USP em particular. Reconhecendo a presença de sementes “progressistas” no ventre da obra gilbertiana, Mota diagnosticava sua coexistência dialética com outras tantas “reacionárias”, para em seguida colocar-se a si mesmo (e, como perfeito cavalheiro, a seus colegas de universidade) entre os frutos das primeiras, cabendo a Gilberto em pessoa o papel de joio do seu próprio trigal.

Assim, a USP passava, sutilmente, da homenagem ambígua à condenação explícita. Que ao mesmo tempo um homem de idéias bastante similares às de Gilberto — Darcy Ribeiro — fosse poupado de equivalente vexame, graças ao fato de ter-se alinhado aos inimigos do regime militar, mostra até que ponto as idéias no Brasil podem ser julgadas não pela sua veracidade ou falsidade intrínsecas, mas pelas atitudes políticas de ocasião que, com ou sem relação com elas, seus autores venham a assumir. E tão estupidificada pela politização se encontrava o debate público, que ninguém pareceu se dar conta de que, se os dois teóricos máximos da miscigenação brasileira, em tudo e por tudo nela concordes, podiam ter optado por dois campos políticos opostos, era porque, obviamente, essa teoria não falava em favor de um campo ou de outro e não cabia julgá-la politicamente. Mas dizer isto é, ainda hoje, e tragicamente cada vez mais, para um desses campos a prova de que estamos no outro e de que, como inimigos, no sentido que Carl Schmitt dá ao termo, não devemos ser admitidos no debate intelectual.

Gilberto Freyre, homem avesso a disputas ideológicas, reagiu ante esse fenômeno como puro cientista social, investigando as causas que podiam levar homens de formação científica — e da melhor formação — a perverter o aparato conceitual da ciência em puro instrumento de retórica sectária. Foi daí que surgiu, na terminologia sociológica freyreana, o conceito do “intelectuário”, misto de intelectual e funcionário — do Partido, do Estado, da seita religiosa.

Toda a interpretação intelectuária do pensamento de Gilberto Freyre nasce de um erro de perspectiva: toma como centro e ápice da obra interpretada o que é centro dos interesses do intérprete. Casa Grande & Senzala, que para seu autor era apenas um primeiro ensaio aplicativo de um método ainda em fase de concepção, tornou-se, graças ao impacto que obteve sobre uma determinada geração de leitores, a última palavra de Gilberto Freyre. À luz deste livro, ou à sombra dele, foi compreendido o restante do empreendimento freyreano, inclusive nos desenvolvimentos teóricos mais elaborados e consistentes que viria a alcançar nos dois volumes da Sociologia (1945) e nas aplicações mais avançadas de Além do Apenas Moderno (1973). Em vez de subordinar as etapas ao sentido do conjunto, ordenado segundo a enteléquia que o primeiro livro do autor apenas insinua, inverteu-se a prioridade, fazendo do começo o fim e o limite e tornando invisível, ou irrelevante, tudo o que veio depois.

Muito contribuiram para esse efeito, de um lado, as qualidades estilísticas do livro, decerto um dos escritos mais realizados do autor, literariamente, e, de outro lado, a hegemonia que a geração de leitores representada por Antônio Cândido exerceu sobre a opinião média do leitor culto brasileiro, exceto na província natal de Freyre, esse Pernambuco tão forte no caráter quanto independente nas idéias e incapaz de vergar-se à opinião dominante nos centros mais prósperos e ruidosos. Não é exagero dizer que, se todo o Brasil leu Casa Grande & Senzala, só os intelectuais pernambucanos — um Pessoa de Moraes, um Vamireh Chacon — meditaram profundamente as lições posteriores de Gilberto Freyre, chegando a apreender o sentido global da arquitetônica em que esse livro se inseria como pedra inaugural e não como fecho de abóbada, enquanto os sulistas e especialmente os paulistas se cerravam na retrovisão congelada, hipnótica, do impacto inicial de 1933.

É evidente que Casa Grande & Senzala, por si, já trazia em germe toda a ciência freyreana, mas, como dizia Hegel, quando perguntamos o que é um carvalho não nos contentamos com que alguém nos mostre uma bolota. O sentido pleno desse grande livro, só o conquista quem consinta em examiná-lo à luz de tudo o que dele foi provindo, aos poucos, no curso de uma carreira de cientista, pensador e escritor que foi marcada pela auto-renovação constante numa linha de fidelidade a um projeto inicial. Aí revela-se que esse projeto não foi só o de renovar os estudos sociais brasileiros mediante a aplicação de novos métodos aprendidos no Exterior, especialmente de Franz Boas, mas, ao contrário, o de renovar toda a ciência social mundial mediante a invenção de métodos revolucionários, que ao mestre de Columbia deviam bem menos do que Casa Grande & Senzala, tomado isoladamente, daria a perceber.

De Franz Boas Gilberto aprendeu, em primeiro lugar, o comedimento extremo e quase tímido nas generalizações; em segundo lugar, a ponderação dos fatores culturais, psico-sociais, educacionais e médico-sanitários no exame das relações entre as raças, que acabava por neutralizar as pretensões de superioridade intrínseca de qualquer delas.

Isso, no Brasil de 1933, bastou para virar tudo do avesso, tornando em motivo de orgulho o que era motivo de descrença e fazendo de Casa Grande & Senzala o marco unanimente reconhecido de uma nova etapa não só das nossas ciências sociais, mas da nossa autoconsciência nacional.

Já é muito, para um livro só. Mas reduzir a esse primeiro capítulo a contribuição de Gilberto Freyre, fazendo do restante de sua obra apenas a acumulação de detalhes comprobatórios a uma tese já vitoriosa, é, francamente, ocultar uma vida de glórias sob a sombra de uma juventude promissora.

No conjunto, a obra de Freyre representa a constituição de toda uma nova ciência social — ou melhor, de um novo edifício inteiro das ciências humanas — com base no pressuposto ecológico, eco-histórico ou eco-cósmico, da unidade biológica da espécie humana e da unidade espacial do cenário onde se desenrola a sua história. É dessa dupla unidade, Homem e Terra, considerada na diferenciação dos tempos, das condições locais e das ações possibilitadas pela liberdade humana, que decorre a unidade múltipla das perspectivas que a ciência gilbertiana permite lançar sobre seu objeto. Recusando-se a estatuir entre os vários fatores determinantes da vida humana uma hierarquia a priori, ou mesmo a buscar essa hierarquia por indução, o método de Gilberto Freyre não se dissolve numa proliferação de enfoques díspares porque, no fim das contas, tudo é remetido de volta aos postulados iniciais — unidade planetária e unidade da espécie —, que tudo ordenam por si mesmos, espontaneamente, sem necessidade de qualquer camisa-de-força lógica para reduzir a uma unidade artificial a multidão dos fatos e visões.

Foi por ter-se situado desde o início nessa perspectiva ao mesmo tempo central e abrangente que Gilberto Freyre pôde tornar-se o inaugurador — nem sempre reconhecido — de tantos métodos e enfoques que, parecendo marginais e esquisitos na época, viriam mais tarde a se tornar universalmente dominantes. Já nas páginas de Casa Grande & Senzala o leitor comprovará que Gilberto, no início da década de 30, já praticava com a naturalidade de um velho conhecedor as técnicas interdisciplinares, o enfoque sistêmico, o holismo, a abordagem ecológica, a “história das mentalidades”, a “história da vida privada” e não sei mais quantos estilos de pensar que depois entraram na moda sob os nomes de outros autores. E basta comparar este livro com o tratado Sociologia para perceber que essa antecipação não foi apenas o golpe de sorte de uma inteligência notavelmente intuitiva, mas sim um esforço de ciência sistemática, fundada na mais explícita consciência dos problemas metodológicos envolvidos nessa tentativa pioneira e bem sucedida.

A mais cruel das homenagens que se pode prestar a um sábio, a um artista, a um filósofo, a um escritor, é enfatizar um de seus méritos parciais com o intuito de ocultar a grandeza maior do todo. O suprassumo dessa atitude reducionista é caricaturado no folclore literário brasileiro numa fala que se atribui ao sambista Ary Barroso, quando lhe perguntaram o que achava do maior dos compositores brasileiros, Heitor Villa-Lobos:

— Foi um grande jogador de bilhar.

Um dos traços mais repulsivos da mentalidade das classes letradas brasileiras é precisamente seu temor das alturas, sua inibição paralítica de reconhecer qualquer grandeza que suba acima daquele nível em que a palavra “gênio” pode ser aplicada, metonimicamente, a um sambista ou jogador de futebol. Admite-se, portanto, que Gilberto ou Villa-Lobos foram gênios… tanto quanto Mané Garrincha ou Chico Buarque. Mais que isso, para essa mentalidade, já é idolatria, “culto da personalidade”, devoção mórbida.

Esse tipo de homenagem amesquinhante foi abundantemente praticado com a figura de Gilberto Freyre, principalmente após sua morte, quando, calada a voz do maior dos nossos cientistas sociais, subiu ao palco uma geração de talentos menores empenhada em tudo nivelar à sua modesta estatura.

Não vejo o menor sentido em transigir com isso. Para mim, Gilberto é uma das encarnações permanentes do gênio brasileiro no que ele tem de mais alto e portanto de mais inassimilável à “cultura brasileira”, no sentido redutivo de medianidade típica que hoje se dá correntemente a essa expressão. Ele tem o perfil inconfundível de um sábio universal, de um supremo historiador e teorizador da vida social, alguém apenas menor que Weber e certamente maior que Braudel ou Hobsbawn.

Diante de tantas obras que reduzem a vida humana a uma de suas dimensões, a obra de Gilberto se notabiliza precisamente pela universalidade e abertura de suas perspectivas, às quais nada, nada do que é humano é indiferente.

Somente nessa escala é possível falar, sem figura de linguagem, de “ciência humana”. O que o leitor romeno vai encontrar neste livro é ciência humana no sentido mais forte e mais belo da expressão: uma ciência do homem feita na medida do homem. Não mais, nem menos.