Tocqueville e o totalitarismo

1 de maio de 2000

Mensagem de Marcelo Wick

Caro Olavo,

Resolvi comprar o livro Democracia na América após ler os seus elogios sobre ele, mas já na primeira parte, surgiu uma dúvida: Tocqueville fala que a religião protege os homens contra paixões insensatas de tudo conhecer, portanto de tudo mudar, acabando assim com a paixão pela igualdade que ameaçava a liberdade. Mas só que a religião impedia a tirania da igualdade para instaurar a tirania dos costumes. Pois eram os costumes religiosos que influenciavam as leis como a pena de morte para os adúteros, separação das crianças dos pais que não as colocavam na escola, passando a guarda para a sociedade, e até leis que proibiam o tabaco! (Code 1650).

Estas leis não eram impostas mas sim votadas pelo livre concurso dos interessados. Não acho que podemos isentar a religião neste caso, culpando só o estado civil da época, já que “O puritanismo era quase tanto uma teoria política quanto uma teoria religiosa, e que ele se confundia em vários pontos com as teorias democráticas e republicanas mais absolutas.”(Pág.43) A política e a religião eram tendências diversas, mas não contrárias. Os costumes religiosos influenciavam as leis de caráter tirânico, que eram realmente cumpridas, como mostra o autor. Como eu já li a sua apostila Humanismo e Totalitarismo,eu pergunto pro senhor: Será mesmo que as outras épocas não conheceram o totalitarismo? Com certeza era um totalitarismo em menor escala, mas não deixa de ser uma semente do totalitarismo vindouro. Será que a religião não está isenta de culpas pelo totalitarismo na América de outra época? Podemos dizer também que as leis da sociedade puritana não influenciaram em nada o totalitarismo posterior? Segundo uma dedução do próprio Tocqueville, é bem capaz, já que “As leis conservam seu caráter inflexivel,quando os costumes já se submeteram ao movimento do tempo.” Há por acaso uma data ou um período que mostra que os costumes religiosos deixaram de ditar as leis? Se há, será que durante essa transição não houve influência do espírito tirânico dessas leis sobre o novo sistema legislativo? Se a igualdade exagerada é uma ameaça à liberdade, até que ponto também é a religião? Fico por aqui, agradecendo desde já pela atenção.

Um abraço,

Marcelo Wick

kritya@bol.com.br

Resposta de Olavo de Carvalho

Sua pergunta é enormemente complicada, pois não existe “a” religião, e sim uma multidão de fenômenos diversos e às vezes heterogêneos que recebem nome. Já no próprio exemplo que você cita, o puritanismo é uma dissidência de uma dissidência, uma espécie de cristianismo de terceiro grau, e como tal evidentemente haverá pontos de semelhança e de diferença entre ele e o tronco remoto do qual proveio.

De modo geral, a idéia de um controle total do governante sobre os indivíduos só aparece realizada nos antigos impérios “cosmológicos” ~ Egito, Babilônia, China. Já em Platão (República), a vaga recordação de um Estado “perfeito” na qual parecem flutuar resíduos do modelo egípcio é projetada para o futuro, ou para um tempo abstrato: a u~topia é também u~cronia. A idéia reaparece no Renascimento, insuflada pela onda de nostalgia platônica e pitagórica. Vem tingida de três novas nuances: a ciência matematizante da natureza, a autoconfiança prometéica no poder do homem e a influência de seitas gnósticas persuadidas de que o mundo criado é o mal e deve ser substituído por um mundo inventado pelo homem. Eric Voegelin (History of Political Ideas) assinala ainda o impacto que as vitórias de Tamerlão tiveram sobre a mente ocidental, promovendo a imagem do governante todo-poderoso que, pela sua força, engenho e sorte, se coloca acima do bem e do mal (tal a origem do Príncipe de Maquiavel). A influência conjugada das seitas gnósticas e da nova mitologia do rei onipotente está na origem das idéias modernas de absolutismo e de razão-de-estado, sem as quais a possibilidade de um controle oficial sobre as vidas dos indivíduos não é sequer pensável.

Daí por diante, fica difícil distinguir, na ascensão do domínio oficial sobre os homens, o que é de origem estatal, o que vem das autoridades religiosas. O que é certo é que tanto aquele quanto estas já estavam sob o domínio de concepções que não têm nada a ver com o cristianismo tal como conhecido antes disso. Também é certo que, pelo lado oficial, o “ancien régime”, mesmo intoxicado de razão-de-estado, conservou muitas das liberdades medievais pelo menos até a Revolução Francesa. Ninguém compreenderá a brutal diferença entre a liberdade antiga e a tirania moderna se não souber que a idéia mesma de uma lei uniforme para todos os habitantes de um território nacional só se implantou com a Revolução; que, antes disso, a diversificação em direitos regionais e municipais, prerrogativas de casta, de ofício, de família, etc. era tão complexa que nenhum governante nacional podia sequer sonhar em ter sobre a população o controle que desde então se tornou coisa banal e corriqueira; é à luz de uma ilusão retroprojetiva que “leis como a pena de morte para os adúteros, separação das crianças dos pais que não as colocavam na escola, passando a guarda para a sociedade, e até leis que proibiam o tabaco“, para citar os seus exemplos, adquirem alcance comparável aos controles exercidos por governos modernos, seja ditatoriais, seja mesmo democráticos. Só a título de comparação, note que o governante mais poderoso do “Ancien régime”, Luís XIV, para formar um exército de 140 mil homens, o maior da Europa então, teve de ir pessoalmente de cidade em cidade implorar que as pessoas se alistassem, ao passo que o governo da Revolução recrutou um milhão de soldados em poucas semanas implantando o serviço militar obrigatório e a pena de morte para os recalcitrantes. Outro exemplo: até o Renascimento, os papas não tinham sequer a autoridade de nomear os bispos, que eram escolhidos por negociações locais. Outro ainda: a posição dos judeus na sociedade, durante toda a Idade Média, variava de cidade para cidade, numas vigorando sua exclusão dos cargos públicos, noutras esses cargos sendo praticamente monopolizados por eles. Não resta dúvida: o controle central é, no Ocidente, invenção moderna. À luz desse fato, não tem sentido atribuir o mesmo peso a uma lei moderna e a uma lei antiga cujo conteúdo verbal seja semelhante. A idéia mesma de uma lei uniforme para toda a nação surge por obra dos humanistas, que promovem a restauração do Direito Romano com sua concepção de unidade sistêmica, totalmente ignorada na mixórdia do direito local e consuetudinário vigente na Idade Média. Ora, sem lei uniforme é contra-senso falar de totalitarismo. Não deixa de ser elucidativo que o país europeu que mais se conservou imune a qualquer tentação totalitária, a Inglaterra, fosse também aquele que mais conservou os direitos medievais, por confusos que fossem, preferindo a confusão da variedade ao risco de uma unidade tirânica.

Que pudesse haver tiranias locais e diferenças de maior ou menor autoritarismo de época para época é um fato que não as torna de maneira alguma “sementes” do totalitarismo moderno, pois não há relação causal ou continuidade entre uma coisa e outra. Quando mais não fosse, pela razão seguinte: nenhuma dessas tiranias jamais se legitimou através de uma teoria, de uma doutrina, que pudesse permanecer após o fim do regime e influenciar as gerações seguintes. A continuidade de um “modelo” supõe a continuidade da sua fórmula ideal, e a fórmula ideal do governo absoluto só surge mesmo no Renascimento, vinda da fusão do novo modelo do déspota oriental, que enfeitiçava todas as consciências, com o princípio de ordenação racional trazido pelo direito romano e pelas novas concepções científicas. O totalitarismo no fim das contas é isso: despotismo científico. Quando Tocqueville assinala o parentesco entre o totalitarismo e a ilusão de saber tudo, ele acerta na mosca: sem a idéia da ciência total não há legislação total, nem portanto governo totalitário.

A resposta, portanto, é não. Não há em toda a história ocidental antes do Renascimento nada que se assemelhe ao totalitarismo moderno.

Conversa sobre estilo

E-mail de L. B.

28 de abril de 2000

Senhor Olavo de Carvalho,

É um grande prazer poder falar com o senhor. Depois que tomei contato com um artigo de sua autoria, na Revista Bravo!, passei a procurar por mais informações a seu respeito. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que o senhor dispõe de uma homepage? Confesso que me flagrei, a um só tempo, satisfeito e muito surpreso. Explico-lhe, a seguir, a razão de minha surpresa. As primeiras vezes que li seus artigos, logo imaginei se tratar de um grande espírito erudito. Bastou que um curto período de tempo passasse para que eu constatasse minha hipótese. A erudição, a clareza de idéias e o tom incisivamente polêmico de suas ponderações levaram-me a crer se tratar de um intelectual do nível de um José Guilherme Merquior, por exemplo. Não lhe comparo a ele, pois qualquer tentativa neste sentido seria por demais descabida. Contudo, chamou-me a atenção dois traços comuns aos dois: a erudição e o ardor pela polêmica. Estou enganado a esse respeito? Pois bem, passei a freqüentar o site que abriga seus textos, lendo muitos de seus artigos e algumas anotações sobre episódios daquilo que generosamente poderíamos qualificar de “nossa vida filosófica”. Novamente, notei a valiosa dimensão de sua obra.

Alguns comentários de sua autoria deixaram-me um tanto perplexo. Refiro-me, por exemplo, a nota que fizera ao artigo “Marilena Chauí: a segunda excomunhão de Espinosa”. Seria necessário o emprego do termo “peido”, para aquilatar as observações de Marilena? Não seria esta uma maneira muito pouco polida de iniciar um debate? Não imagine o senhor que tomei as dores desta professora. Tenho cá profundas divergências como ela, contudo cumpre lembrar que o mútuo respeito seria altamente proveitoso para elevar o nível de qualquer contenda, dentro e fora, do meio acadêmico. Chamou-me também a atenção os comentários, profundamente agressivos, que fizera sobre os professores Carlos Nelson Coutinho, Luis Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Notei um certo tom de molecagem quando o senhor mencionou que os três deveriam comemorar o aniversário de Gramsci sem se irritar com o senhor…. Creio que os professores acima mencionados sejam dignos do maior respeito. Além de serem pioneiros nos estudos sobre Gramsci no Brasil, são pessoas cuja postura democrática já ficou provada tanto nos anos em que o país vivia seu regime de exceção, quanto no presente.

O senhor poderá imaginar que estou lhe escrevendo para tomar satisfação sobre sua postura. Não se trata disso, em absoluto. Mesmo porque, sou seu admirador. Gostaria apenas de lhe propor uma reflexão acerca de sua conduta no trato com seus eventuais interlocutores. Espero que entenda minhas intenções.

Voltemos a falar sobre a maneira com a qual conduz seus debates… Creio que erudição e, se me permite o uso do termo, truculência não sejam adjetivos complementares. Aliás, seria de supor que à erudição fosse necessário a companhia da elegância, da polidez. Talvez um bom exemplo de intelectual polêmico e elegante seja Antonio Candido. Imagino que o senhor conheça a elegância com a qual ele sempre tratou seus adversários, políticos e intelectuais, durante o longo tempo que se dedicou ao debate público. Não me recordo de um fato sequer em que este grande intelectual tenha preterido a finesse e a elegância. Mesmo quando debatia com figuras adeptas de um certo ranço autoritário, como é o caso de Miguel Reale. Lembro ao senhor que nem mesmo em sua juventude – época em que os homens são mais impetuosos – lograra o uso de termos depreciativos e vulgares. Cito a esse respeito, sua contenda com Oswald de Andrade nos anos quarenta…

Agora, mudando um pouco de assunto, creio que o peso de certas colocações de sua autoria seja excessivamente inadequado. Aqui gostaria que me respondesse, se possível, a seguinte questão: no debate intelectual qualquer uma das partes envolvidas pode “provar” alguma coisa? O termo provar é adequado quando tratamos dos temas versados pelas Ciências Humanas e pela Filosofia? Creio, em minha humilde opinião, que não! Em Filosofia não se prova nada, apenas é possível refutar, contradizer certas colocações. Não se trata, como poderia o senhor imaginar, de uma discussão semântica, mas categorial. Não concorda? Gostaria muito de saber sua opinião, sobretudo porque vi um comentário seu que me chamara a atenção: “lhes provarei por a mais b que gramscismo é totalitarismo”. Como o senhor pretendia “provar” isso? Não seria mais conveniente dizer: “posso mostrar que, em certo sentido, gramscismo pode estar associado a totalitarismo”?

Caro Olavo, sou seu admirador e muito me afligiria que tomasse minhas palavras como uma provocação. Minha intenção não é essa. Gostaria que respondesse a esse e- mail – o que, muito me agradaria.

Deixo-lhe um grande abraço e aguardo, ansiosamente, por suas considerações.

L. B.

Resposta de Olavo de Carvalho

Prezado amigo,

Muito obrigado pela sua mensagem e pela maneira gentil com que se refere a meus escritos, malgrado a perplexidade que eles lhe causam. Essa perplexidade é natural, porém ela se atenuaria bastante se, em vez de medi-los pelo padrão dos escritores citados em sua carta, você os aferisse pelos meus modelos. A obra de um escritor, afinal, deve ser avaliada pelo que ele está tentando fazer, não pelo que os outros, com ou sem razão, acham que ele deveria fazer. Meus mestres de estilo, para a parte polêmica de meus escritos, foram Tertuliano, São Bernardo de Clairvaux, William Hazlitt, Léon Bloy, Georges Bernanos e Camilo Castelo Branco. São autores muito pouco freqüentados pela nossa intelectualidade acadêmica, a qual, por falta de repertório, escolhe seus modelos no jornalismo da moda, impondo assim, pela repetição fácil, um padrão de polidez fingida que acaba por passar como o único modo elegante e aceitável de escrever. São Bernardo, pregando do alto do púlpito – uma situação de discurso que me permito considerar um tanto mais solene do que um bate-boca entre acadêmicos -, dizia: “Os pregadores esforçados são como os bois que puxam o arado. Os preguiçosos vêm atrás e comem a bosta dos bois.” O dr. Antônio Cândido, que é homem fino, jamais escreveria uma coisa dessas. Por isto mesmo São Bernardo converteu multidões, enquanto o dr. Antônio Cândido só consegue nos mostrar o quanto é chique ter uma alma vacilante.

Não é de espantar que, contrastado ao modelo pó-de-arroz, o estilo de qualquer um que escreva desde a medula de sua pessoa deva parecer “truculento”. No entanto esta palavra, que já se tornou um chavão entre meus desafetos acadêmicos para qualificar meus escritos, e que nâo sem certo automatismo você emprega com o mesmo fim, é obviamente inadequada ao objeto que busca circunscrever, e denota em quem a usa – nâo me leve a mal – apenas a falta de domínio do vocabulário. Um escrito nâo pode ser truculento sem um certo pathos emocional que falta completamente às produções deste jocoso e pedagógico escriba. O que essas criaturas querem dizer no fundo é que tais escritos as assustam, mas, como não fica bem confessar temor ante a simples demonstração de verdades óbvias, recorrem ao clássico expediente dos covardes orgulhosos, que é medir a periculosidade da ameaça pelo tamanho do pavor que lhes infunde, em vez de graduar este por aquela como o fazem as almas dotadas de uma quota normal de valentia e serenidade. Nessa ótica torta e subjetivista, não há meio de distinguir entre a contundência de uma prova e a truculência do puro insulto: não podendo refutar a primeira, fingem-se de alvos do segundo, transferindo a discussão da esfera dos fatos para a das boas maneiras, onde se sentem mais a salvo. Dizer que pessoas capazes de recorrer a esse tipo de subterfúgio são “intelectuais dignos de respeito”, caro amigo, é ter uma concepção bem mesquinha do que sejam intelectualidade, dignidade e respeito.

Se fosse preciso definir com poucas palavras a maneira que adoto nos meus escritos jornalísticos – pois há outros, que requerem outras artes -,eu diria que são antes desconfortáveis ou inquietantes, na medida em que mesclam, às vezes na mesma frase, estilos e tons diversos, passando com a maior sem-cerimônia da fala nobre e solene dos juristas antigos ao deboche grosso dos humoristas populares e sambistas, da melodia sutil ao estridor das dissonâncias bárbaras (coisa que aprendi com o meu amado e idolatrado Heitor Villa-Lobos) ou fazendo mil e um outros arranjos que os doutores cândidos jamais fariam, e que faço no preciso intuito de habituar o leitor ao duplo jogo da fala e das coisas, em cuja apreensão intuitiva reside metade, não menos, da arte de aprender: de um lado, a fala é o caminho para a verdade e deve simbolizar, no seu corpo mesmo, os movimentos da mente que se interroga entre luzes e sombras, movimentos que não são jamais lineares como a demonstração lógica que ex post facto recapitula e celebra a consistência dos resultados obtidos; de outro lado, a verdade não se identifica jamais por completo com a fórmula verbal que a veicula, e o escritor, tendo sempre de deixar a parte final do serviço a cargo dos dons intuitivos do leitor, deve preparar bem o terreno para o lance decisivo, seja por meio daquelas longas oposições dialéticas que afiam a lâmina da inteligência, seja – quando não há espaço para isso, como nos artigos de jornal – por meio de paradoxos verbais que, de maneira compactada e simbólica, façam a mesma coisa. (Explico essa técnica na apostila Debates e provas, que o amigo encontrará nesta mesma homepage.) Eis como, no exíguo espaço do mais desprezível dos gêneros literários, se pode deixar in nuce um leque de demonstrações latentes insinuadas, fazendo da crônica jornalística, em vez da opinião solta que ela habitualmente é, o prefácio ou resumo de aulas e tratados, de modo que, pelo simples ruído longínquo das máquinas que se aproximam, o adversário pressinta o exército de tratores que passaria em cima de suas pobres objeções se ele tivesse – como geralmente não tem – a coragem de publicá-las. E eis a raiz da falsa – ou, em certos casos, fingida – impressão de truculência: o leitor pego em flagrante delito de falsa consciência já se sente de antemão esmagado, e, não sabendo bem explicar a si mesmo as razões de seu desconforto (pois num primeiro instante a apreensão das provas implícitas é apenas semiconsciente), busca um alívio postiço apegando-se à primeira palavra mágica que lhe pareça ter o poder de, xingando o farmacêutico, neutralizar o efeito do remédio. Mas ôôô, coitado! Quando o sujeito se entrega a esse impotente arremedo de exorcismo, é o meu feitiço que já está operando dentro de sua alma, forçando-a a assimilar aos poucos a verdade que rejeitara no primeiro impacto. Muito poucos, quando se completa o processo, têm unidade de consciência bastante para recordar como começou. Daí que aqueles que mais bufam de indignação ou se contorcem em caretas de afetado desprezo ante meus escritos sejam os primeiros a repeti-los, com outras e bem mal disfarçadinhas palavras, meses ou anos depois. Isto já se tornou rotina. Na verdade, não me ofende que, para aceitar o que aprenderam comigo, tenham de atribui-lo a si mesmos. Um professor nada poderia ensinar se não fizesse alguma concessão ao orgulho pueril dos alunos mais bobos.

Eis também como, pela simples variação do estilo, se pode habituar o leitor de boa vontade a aceitar a verdade independentemente da expressão verbal que a reveste, com a condição de que ele tenha imaginação bastante para saber que a escolha de um estilo pode ter razões que a etiqueta desconhece. É só tomando o estereótipo vigente como medida e padrão que se pode tentar caracterizar o meu estilo mediante o apelo a chavões como “agressivo”, “desrespeitoso” etc., categorias que se aplicam antes ao julgamento de trabalhos de classe em escolas primárias do que a uma conversa sobre literatura séria, onde as exigências da polidez banal devem ceder lugar a considerações mais altas. Se há de fato critérios em que minha escrita jamais aspirou a enquadrar-se, são aqueles da literatice bem-educadinha que nos anos 50 as nossas letras pareciam ter definitivamente superado graças à “truculência” de autores como José Lins do Rego, Jorge Amado e Nelson Rodrigues, e que hoje voltam a imperar com toda a força dos mandamentos politicamente corretos, chamando a polícia quando um escritor simplesmente transpõe para o gênero ensaístico e filosófico a liberdade de estilo já consolidada na literatura de ficção. E se algo poderia me deprimir ao ponto de fazer naufragar o respeito que sinto por mim mesmo enquanto escritor, seria constatar no meu jeito de escrever alguma semelhança, mesmo remota, com aquilo que nos manuais de redação jornalística e nas rodas do esquerdismo chique, especialmente uspiano, se tem na conta de bom-tom. Vade retro, Satana! O bom-tom, caro amigo, é péssimo juiz literário. Foi o apego ao bom-tom que fez Voltaire tapar suas delicadas narinas ante a “truculência” (sic) das peças de Shakespeare, predizendo que muito em breve seriam esquecidas pelo público… Note, de passagem, que o termo “truculência” não é totalmente descabido para descrever Titus Andronicus, por exemplo, e que as regras de polidez literária em que Voltaire se escudava para proferir esse julgamento eram genuínos padrões de elegância enobrecidos por uma venerável tradição literária (leia por exemplo Buffon), e não aquele receituário de inibições e macaquices que faz as vezes de elegância entre os Tonton Macoute do jornalismo nacional. Pois nem assim Voltaire acertou.

Já outros pontos de sua carta não necessitam dessas explicações para ser respondidos, porque repousam em simples erros de observação. Por exemplo, sua pergunta sobre se o uso da palavra “peido” para qualificar certas declarações de D. Marilena Chauí não seria “uma maneira muito pouco polida de iniciar um debate”. A resposta é: seria, sim. Mas no caso eu não estava iniciando nada, e sim respondendo a um insulto. Essa senhora, confessando nada conhecer de minha obra e de minha pessoa, me havia qualificado de “cafajeste”. Ninguém apela a tão pesado adjetivo sem ser movido pela raiva, e, se respondo a esse hidrófobo insulto com o meu cálculo do valor relativo dos peidos humanos e símios, quem saiba ler com sensibilidade há de notar que, em vez de dar o troco na mesma moeda, oponho à fúria histérica de minha atacante um imperturbável senso de humor. Nesse e nos casos análogos, quem quer que me chame de “raivoso” está apenas projetando sobre os meus escritos a reação mórbida que eles suscitam nas pessoas de maus bofes.

Na verdade, no caso não havia debate nenhum. Se houvesse, ele teria começado com o meu escrito “Lógica da mistificação, ou: O chicote da Tiazinha”, o qual demonstrava mediante rigorosa análise de texto o caráter mistificatório de certas exposições de D. Marilena. Em vez de responder ou corrigir-se, D. Marilena preferiu dizer que não me conhecia e no mesmo ato provar, por sua explosão de raiva, que me conhecia perfeitamente bem.

Quanto aos srs. Carlos Nelson Coutinho, Luis Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, nem é certo dizer que enquanto intelectuais “sejam dignos do maior respeito”, nem que “sua postura democrática já ficou provada”. Nenhum gramsciano pode ser digno de respeito na esfera intelectual, desde que o próprio Gramsci reduz a atividade intelectual à propaganda revolucionária e quem se presta a isso rebaixa a inteligência em geral – e a sua em particular – ao mais infame dos papéis. Ideologia é prostituição da inteligência: poses auto-dignificantes e badalação na mídia não mudam isso em nada. E não há “postura democrática” nenhuma em pessoas que, reunindo-se às dezenas para fazer a beatificação coletiva do seu ídolo pela internet, se furtam ao debate quando desafiados por um oponente solitário e ainda fazem trejeitos de dignidade ofendida quando ele lhes propõe uma simples troca de links entre as respectivas homepages, que é a coisa mais democrática do mundo. Democrático sou eu, que mesmo não retribuído coloquei na minha página um link para a deles.

Não, meu amigo, não se iluda com a fala mansa daqueles que dominam o meio acadêmico e o subjugam a ambições políticas. Eles podem falar manso porque sua fala não é expressão de sua realidade pessoal, e sim disfarce para encobri-la. O prof. Antônio Cândido, enquanto falava manso em público, não deixava de conspirar, em petit comité, para sufocar a voz de seus desafetos na tribuna uspiana. Parafraseando Theodore Roosevelt, o lema dessa gente é: Speak softly and carry a big stick.

É verdade que Antônio Cândido foi educadíssimo ao discutir com Miguel Reale na imprensa. Mas para quê ser grosseiro com o adversário, quando se pode boicotá-lo pelas costas e ainda fazer bonito aos olhos da multidão? Muita gente se deixou, no caso, iludir pela aparência. Parece que você também.

Em contraste com a máscara democrática das palavras a encobrir o autoritarismo das ações, Miguel Reale sempre foi duro ao falar dos esquerdistas, porém lhes manteve inalteravelmente aberta, ao longo de quarenta anos, a tribuna da sua Revista Brasileira de Filosofia, certamente a única, dentre as grandes revistas de cultura do Brasil, que soube merecer por inteiro o qualificativo de “pluralista”.

Mais absurdo ainda é que, ao enaltecer o tratamento polido que o prof. Cãndido deu a seu adversário, você ainda insinue que isso foi até demasiada honra para alguém que carregava o “ranço autoritário” de Miguel Reale. É isso o que eu chamo raciocinar por estereótipos da mídia, sem levar na mínima conta a realidade dos fatos.

O único “ranço autoritário” que se pode atribuir a Miguel Reale é a sua participação juvenil no integralismo, um movimento que, por mais imbecil que nos pareça hoje, sempre agiu de maneira honrada e conservou as mãos limpas de qualquer cumplicidade em ações tirânicas, tendo sido antes vítima de repressão brutal e tendo partido dele, aliás, o primeiro protesto brasileiro contra a perseguição aos judeus na Alemanha.

Não é vergonha nenhuma ter sido integralista. Vergonha é ter sido comunista. Vergonha é ter pertencido a um movimento que, após sofrer sob a ditadura Vargas perseguições idênticas às que sofreram os integralistas, ainda teve o descaramento de se tornar cúmplice de seu próprio algoz.

Eu, pelo menos, me envergonho do meu passado comunista, e contra o integralismo nada tenho a alegar exceto o pecado de babaquice.

Quanto à participação de Reale no movimento de 1964, leia, investigue, estude os atos dele como secretário da Justiça em São Paulo ou como reitor da USP, bem como as contribuições dele à legislação federal, e diga onde, como, quando esse homem atentou contra alguma das liberdades democráticas fundamentais.

“Ranço autoritário” é um chavão de fácil efeito, a que muita gente recorre quando não tem nada a dizer contra personagens que lhe desagradam.

Por fim, devo dizer que sua objeção contra as provas em filosofia ou em ciências humanas é apenas a repetição ingênua de outro chavão. Muitas coisas foram provadas, positivamente, ao longo de vinte e quatro séculos de filosofia. Porém mais numerosas ainda são as cabeças que as desconhecem e as bocas que repetem o que elas dizem. Se deixo esta discussão para outra ocasião e lugar, é porque nesta mesma homepage você encontrará lugares e ocasiões bastantes para comprovar o que digo.

Com meus melhores votos,

Olavo de Carvalho

Karl Marx segundo Eric Voegelin

27 de abril de 2000

Mendo Castro Henriques, professor na Universidade Católica de Lisboa e já conhecido dos visitantes desta homepage, selecionou alguns textos inéditos compostos por Eric Voegelin para o abortado projeto de uma History of Political Ideas e com eles montou um volume, Estudos de Idéias Políticasde Erasmo a Nietzsche, publicado pelas Edições Ática, de Lisboa, em 1996. Foi portanto em português que esses textos, originalmente datilografados em inglês, se publicaram pela primeira vez no mundo. O volume saiu com uma bela introdução pelo próprio Mendo Castro Henriques e uma nota assinada pela viúva do autor, Lissy Voegelin. – O. de C.

Karl Marx (1818-1883)

por Eric Voegelin

Tradução de Mendo Castro Henriques

1.1. Marx: história e lenda.

Ao iniciar o estudo de Marx, nunca é demais acentuar que a polémica partidária dificultou o acesso à obra; muitos escritos considerados secundários permaneceram inéditos até à edição MEGA de 1927-32 e, ainda em vida, a pessoa histórica de Marx desapareceu debaixo da figura mítica. Nos marxistas da primeira geração e nos da revolução russa, cresceu a lenda que não valia a pena conhecer o filósofo precoce que, apenas a partir de 1845 desenvolvera as verdadeiras intuições no Manifesto e em O Capital, e que foi fundador da 1ª Internacional. Debateu-se, depois, se o verdadeiro Marx era o de Bernstein, Kautsky, Rosa Luxemburgo ou Lenine. Só após o Instituto Marx-Engels-Lenine de Moscovo e os sociais-democratas alemães desenterrarem os manuscritos dos arquivos começou uma interpretação séria na qual se destacam as obras de S.Landshut e J.P. Mayer Der historische Materialismus. Die Frühschriften, 2 vols., Leipzig, 1932.

Por detrás desta história de incompreensão e redescoberta está a tragédia do activista. Para passar do velho para o novo mundo, Marx exigia uma metanoia, semelhante à conversão de Bakunine mas obtida através de um movimento revolucionário. A revolução seria uma mudança radical do homem: permitiria derrubar as instituições e purificar a classe operária. Libertaria a classe oprimida da “porca miséria” (Drecke) e permitiria recriar a sociedade. Marx não queria criar primeiro o povo eleito e depois fazer a revolução: pretendia que a criação do “povo eleito” resultasse da experiência da revolução. Esta ideia é profundamente trágica porque, caso não houvesse revolução, o coração humano não mudaria. O carácter insensato da ideia permaneceria mascarado até que a experiência fosse levada a cabo. E ao contrário do que se passou com o anarquismo de Bakunine, este carácter peculiar da ideia marxiana foi agravado pela visão comunista do novo mundo.

1.2. A visão dos reinos da necessidade e da liberdade.

Marx sobressai entre os revolucionários da sua geração pelos superiores poderes intelectuais. Evoca um novo mundo mas não cai nas propostas delirantes de abolição da sociedade industrial e nas utopias socialistas. Jamais aceitaria a metamorfose comteana da tradição francesa católica dos clercs em intelectuais positivistas, desejosos de conquistar o poder temporal. Através de Hegel e dos jovens hegelianos, herdara as tradições do protestantismo intelectualista luterano, defensor da verdadeira democracia realizada em cada homem. No mundo do sistema industrial, o novo reino da liberdade resultaria da experiência emancipadora da revolução.

Esta visão não foi um apenas um episódio da juventude; permaneceu constante até ao fim da vida. Em O Capital vol.3, reflecte na grande vantagem do sistema de produção capitalista: maior produtividade e, portanto, redução do horário laboral. O homem civilizado e o primitivo têm de lutar com a natureza para satisfazer carências; nenhuma revolução abolirá este reino da necessidade natural, que continuará a crescer à medida das necessidades humanas. A liberdade neste domínio será, quando muito, a regulamentação racional do metabolismo humano. O homem socializado, der vergesellschaftete Mensch poderá controlar colectivamente este metabolismo, reduzindo as horas de trabalho e as perdas de produção e organizando os lazeres em vez de os deixar ao acaso. Só depois começa o reino da liberdade, a finalidade que não resulta da base material mas da experiência da revolução.

A distinção entre os dois reinos é bastante clara. A abolição da propriedade privada não é o fim em si mesmo e o controle colectivo só interessa para diminuir as horas de trabalho. As horas de lazer ganhas são o solo no qual o reino da liberdade poderá enraizar-se. A burguesia usa esse tempo para ócio, entretenimento recreio, jogo, divertimento. Mas será isto preencher a liberdade? Dados os conhecimentos filosóficos de Marx, por reino da liberdade dever-se-ia entender a acção concretizadora das capacidades humanas, algo de semelhante às aristótélicas scholé e bios theoretikos. O decisivo é que a liberdade não provenha da base material mas da experiência de revolução. A superação (Aufhebung ) do trabalho convertê-lo-ia em auto-determinação (Selbstbetätigung).

1.3. O descaminho de Marx 1837-1847.

De 1837 a 1847 Marx clarificou os pensamentos que tiveram a expressão tardia atrás esboçada. Após a visão, impunha-se a acção revolucionária. O reino da necessidade seria a indústria menos a burguesia. O reino da liberdade tinha de crescer por si e não podia ser planeado. Entre adoptar a existência romântica à Bakunine, ou o silêncio, optou por preparar a revolução.

1.4. Lenda do Jovem Marx.

Se Marx se sentisse obrigado a produzir uma renovatio revolucionária nos seus contemporâneos através de sua autoridade espiritual, nada resultaria excepto o seu drama pessoal. Mas bastava-lhe mover o Aqueronte no homem, para a liberdade resultar da revolução e a revolução da necessidade. Defendia um ideal de dignidade humana; mas, na acção, desprezava o homem. A revolução que derrubaria a burguesia dependeria de: 1)A análise dos factores do capitalismo que desintegravam o sistema 2) A forja da organização proletária que iria tomar o poder. Em vez de se tornar o dirigente da revolução, Marx escreveu o Manifesto como apelo à organização das forças que iriam executar a revolução inevitável. Em vez de descrever a sociedade futura escreveu O Capital, análise da sociedade moribunda. A partir de 1845 tornou-se o parteiro da revolução. E foi esta transição do fazer a revolução para o preparar a revolução que constituiu o seu descaminho. A imensidade dos trabalhos preparatórios ensombrou a experiência escatológica que motivara a visão revolucionária e a culminância no reino da liberdade.

1.5. O movimento marxista. Revisionismo.

O descaminho ensombrou a ideia mas não aboliu a tensão revolucionária. As actividades preparatórias puderam ser imitadas por quem não tinha a experiência originária de Marx, provocando a morte do espírito e da esperança de renovação num mundo novo após a revolução. Os marxistas eram quase todos almas já mortas que apenas experimentavam a tensão entre o presente miserável e o imaginado futuro radioso e que desejavam a melhoria da sorte dos operários.

O descaminho intensificou-se com a passagem do tempo. A preparação intelectual e organizacional da revolução tornou-se um modo de vida. Bernstein pôde afirmar: “O que vulgarmente se chama a finalidade derradeiro do socialismo nada representa para mim; o movimento é tudo “; e Kautsky no Neue Zeit de 1893:”O partido socialista é um partido revolucionário; não é um partido que faça revoluções“. A revolução foi transformada em evolução. Horários, salários e controles laborais poderiam ser adquiridos por legislação. A ala revisionista tornara-se um movimento de reforma social.

Se no domínio das ideias estes problemas marxistas têm pouco interesse, já no da história são importantíssimos. Para um Kautsky convicto de que revolução é inescapável, o revolucionário apenas tem de esperar que a situação esteja madura para agir. O revolucionário genuíno aguarda; o utópico faz aventuras. Este descaminho quase cómico de Kautsky aparece já no Marx de 1848-50. Até à revolução de Fevereiro, Marx esperava a grande revolução. A secção 4 do Manifesto revela esse estado de espírito: “A revolução burguesa na Alemanha será apenas o prelúdio de uma evolução proletária imediatamente subsequente“. Quando a revolução falhou, foram necessárias muitas explicações. A primeira fase do falhanço foi explicada em A Luta de Classes em França,1850; a segunda fase em O 18 Brumário de Luís Napoleão, 1852. Em 1850, no Discurso à Liga Comunista desenvolve pela primeira vez a táctica da luta de classes, cunhando a palavra de ordem “eevolução permanente”. Depois de grande intervalo escreve A Guerra Civil em França, 1871 para explicar o falhanço da Comuna. Após a morte de Marx, Engels prosseguiu estas explicações. Para a história da Liga dos Comunistas,1885 prevê a revolução para breve, efabulando a existência de ciclos imaginários de 15 ou 18 anos. No prefácio de 1895 à reedição de A Luta de Classes em França, fascinado com a existência de dois milhões de votantes sociais-democratas, Engels louva-se nos excelentes resultados dos processo legais de luta. Na expansão da Social-Democracia, vê um fenómeno semelhante ao crescimento do Cristianismo na decadente sociedade romana. Bismarck é o Diocleciano alemão. E como se vê, Kautsky podia razoavelmente considerar-se o portador do facho marxiano.

1.6. O movimento marxista. Comunismo.

O descaminho que levou à revolução comunista apresentou-se como regresso ao verdadeiro Marx. Após 1890 surgem radicais que já não aceitam o reformismo evolucionista. Lenine perante Kautsky tem a mesma atitude de Marx perante os sindicalistas ingleses. Pretende uma élite partidária, rejeita a cooperação democrática, quer a concentração do poder e despreza as massas que podem ser compradas mediante vantagens, como se vê no discurso de Genebra em 1908. Com as lições ainda frescas da revolução falhada de 1905, Lenine acentua os aspectos violentos do Comunismo. A Comuna de 1870 falhou porque não foi suficientemente radical, não expropriou os expropriadores, foi indulgente para com inimigos, tentou influenciar moralmente em vez de matar, não percebeu a acção militar e teve hesitações. Mas pelo menos lutou, demonstrando assim como lidar concretamente com o problema da revolução. A insurreição russa de 1905 mostra que a lição fôra aprendida e os Sovietes de trabalhadores e de soldados indicavam a actuação correcta .

Reconquistava-se assim a tensão revolucionária ao nível da acção no reino da necessidade. A visão marxiana aparece em parte na obra de Lenine e nas fórmulas da Constituição Soviética de 1936, através do reconhecimento de que a revolução socialista ainda não produziu o verdadeiro reino comunista. A URSS é uma união de repúblicas socialistas guiadas pelo partido comunista em direcção a um Estado perfeito, distinção que remonta à Crítica do Programa de Gotha e Erfurt, 1875. Na fase original da revolução, o comunismo incipiente compensará o trabalho de acordo com a respectiva qualidade e quantidade. Na fase superior, o trabalho já não será meio de vida mas sim a maior necessidade da vida (Lebenbedürfnis). O princípio então será, de cada um conforme a sua capacidade, a cada um conforme a sua necessidade“. Esta fórmula de Enfantin em1831, é parafraseada por Louis Blanc em 1839 e depois usada por Marx. Em O Estado e a Revolução, 1917 Lenine usou-a de modo que se tornou um dos ícones semânticos do comunismo russo. O contexto táctico da distinção reforça a visão de que o comunismo final é remoto (está a décadas de distância segundo Marx, a séculos segundo Lenine) enquanto a fase imediata é de pós-revolução. Os erros repetidos das explicações e das tácticas comunistas acerca do falhanço do milénio como passo necessário e inevitável para o respectivo advento, acabaram por cair no ridículo após a 1ª Grande Guerra, sendo estigmatizadas por Karl Kraus como o tic-tac dos tác-ticos marxistas.

1.7. Triunfo político do marxismo.

Num artigo de Enciclopédia de1914, Lenine faz curta biografia de Marx e depois expôe o Materialismo Filosófico, baseando-se no Anti-Dühring, na dialéctica em Engels e Feuerbach e na concepção materialista da história, da página famosa da Crítica da Economia Politica. Depois vem luta de classes e doutrina económica, socialismo e táctica. Não há uma só palavra sobre o “reino da liberdade” e as suas precárias realizações. Deste modo, Lenine e os leninistas recuperaram a tensão revolucionária no domínio da necessidade mas perderam-na ao nível da liberdade. A passagem do tempo obrigava-os a considerarem cada vez mais os acontecimentos históricos como passos tácticos. Após 1917 continuou a debater-se se aquela era mesmo a grande revolução, se apenas o seu começo, se deveria ser expandida no mundo, se estaria segura enquanto não fosse mundial, se poderia ser num só país, quanto tempo levaria o Estado a desaparecer,etc. Como após o triunfo russo não surgiu o Pentecostes da liberdade, surgiu a inquietação. O jogo da táctica servia para os dirigentes mas o comum não o entendia. Passaram dez, vinte anos, e o Estado não desaparecia. E a relevância doutrinária de Estaline consiste em ter encontrado um substituto para o milénio – a pátria do socialismo. A injecção de patriotismo no comunismo russo é um apocalipse substituto para massas que não podem viver em permanente tensão revolucionária. Mas a táctica do descaminho não desaparece só porque uma paragem táctica foi oferecida às massas.

2.1. Dialéctica invertida. A formulação da questão.

A dialéctica da matéria é uma inversão consciente da dialéctica hegeliana da ideia, e corresponde a processos semelhantes praticados por sofistas, iluministas e anarquistas. Sob a designação mais respeitável de “materialismo histórico” ou mesmo “interpretação económica da história e da política” é correntemente aceite e surpreende que o diletantismo filosófico de tais teorias não abale a sua influência maciça. Dialéctica é um movimento inteligível das ideias, quer na mente quer noutros domínio do ser ou, então, em todo o universo. Hegel interpretava a história dialecticamente por considerar o logos incarnado na história. No Prefácio à 2ª ed. de O Capital, 1873, afirma Marx que “o meu método dialéctico nos seus fundamentos não só difere do dos hegelianos mas é o seu oposto directo“. Na 1ª ed. declarava-se um discípulo do grande pensador contra os autores medíocres que o tratavam como um “cão morto”. Considera que na forma mistificada hegeliana, a dialéctica é glorificação do que existe. Na forma racional marxiana “explica a forma do devir no fluxo do movimento“. Ao compreender criticamente o que existe positivamente, também implica a compreensão da sua negação e desaparecimento.

A intenção marxiana de inverter (umstülpen ) Hegel, considerado como de pés para o ar, assenta numa incompreensão da dialéctica. Para Hegel a ideia não é o demiurgo do real, no sentido de “real” significar o fluxo de realidade empírica que contém elementos que não revelam a ideia. Hegel debate se a realidade empírica é apenas um fluxo ou se tem uma ordem; como filósofo, tem de discernir entre a fonte de ordem e os elementos que nela não cabem. A dialéctica da Ideia é a sua resposta a este problema. Mas Marx abole o problema filosófico da realidade precisamente antes de praticar a inversão; não inverte a dialéctica: recusa-se sim, a teorizar. Trinta anos antes mostrara na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel,1843 que compreendia o problema da realidade mas que preferia ignorá-lo. Criticara então a concepção hegeliana por não estar à altura de conceito de realidade. (Cf. notas à secção 262 de CFDH). Os filósofos têm o hábito de questionar a realidade. Em vez de deixar a essência como predicado da realidade existente, extraem-na para sujeito, “die Prädicate selbst zu Subjekten gemacht“. Mais do que censurar Hegel, Marx estava a atacar a filosofia. Os filósofos, de facto, não deixam a realidade em paz nem se conformam que a ordem seja produto do real.

2.2. A proibição-de-perguntar ou Fragesverbot.

Mas se afinal Marx compreendia perfeitamente Hegel, como revela a passagem da Crítica da Economia Política, p.lv., onde mostra que a filosofia crítica discorda de visão pré-crítica, foi talvez por desonestidade intelectual que deliberadamente se fez desentendido. É um problema de pneumopatologia: receava os conceitos filosóficos, sofria de logofobia. Engels no Anti-Dühring, ed 1919, pp.10 e ss., dissera que o materialismo moderno é dialéctico pois dispensa uma filosofia acima do discurso das ciências. Enquanto a dialéctica pesquisar leis e processos de evolução, a filosofia é supérflua. Cada ciência quer clareza no contexto total das coisas e dos conhecimentos das coisas (Gesamtzusammenhang ); mas uma ciência particular do total é supérflua e pode ser dissolvida em ciência positiva da natureza e da história. Também aqui, apenas uma pneumopatologia pode conferir sentido a estas afirmações de Engels. Os conceitos críticos conduziriam ao contexto total da ordem do ser ou ordem cósmica. Um contexto total não deve existir para o sujeito autónomo de que Marx e Engels são insignificantes predicados; a existir, é só como predicado de todos os sujeitos, nomeadamente Engels e Marx.

Atingimos aqui o estrato profundo da revolta marxiana contra Deus. A análise levaria a reconhecer a ordem do logos na constituição do ser, esclarecendo como blásfémia inútil a ideia marxiana de estabelecer um reino da liberdade e de mudar a natureza do homem através da revolução. Como Marx se recusa a utilizar uma linguagem crítica, temos de compreender os símbolos a que recorre. Marx criou um meio específico de expressão: quando atinge um ponto crítico, apresenta metáforas que forçam as relações entre termos indefinidos como se viu no já citado passo do Prefácio, p.xvii “ o ideal nada mais é que o material transformado e traduzido na cabeça do homem “. Seria uma afirmação brilhante se condensasse numa imagem o que já fôra dito de modo crítico. Mas o problema é que não existe esse contexto crítico. O que é “pôr na cabeça” ? É milagre fisiológico ? Actividade mental ? Acto cognitivo ? Processo cósmico ? Atente-se de novo na passagem da Kritik p.lv:

1ª “Na produção social dos seus meios de existência, os seres humanos efectuam relações definitivas e necessárias que são independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um estádio definido de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais“. O estilo é fraco mas passagens anteriores explicaram cada um destes termos. 2ª “O agregado destas relações de produção constitui a estrutura económica da sociedade“. Nada a dizer. 3ª “A estrutura económica da sociedade é a base real na qual uma superestrutura jurídica e política surge e a que correspondem formas definitivas de consciência social“. Por que razão é a economia a base ? Nada no texto o justifica. 4ª “O modo de produção dos meios materiais de existência condiciona todo o processo da vida intelectual, social e política“. Mas que significa condicionar ? Não se explica ! 5ª “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é, pelo contrário, o seu ser social que determina a sua consciência“.Então passa-se sem mais de condicionar para determinar ? E o que é ser e consciência ? Esta passagem célebre ilustra como Marx salta de problemas concretos de economia e de sociologia para uma especulação com símbolos não-críticos. A metáfora é um intrumento ditatorial que impede o debate. E em rigor, é impossível uma análise crítica da doutrina marxiana, porque não existe uma teoria marxiana do materialismo histórico.

2.3. Especulação pseudológica.

Então que faz Marx ? Para referirmos a sua “teorização” efectuada com uma linguagem não-teórica, podemos falar de especulação pseudológica, uma teoria aparente apresentada como teoria genuína e que supôe uma filosofia genuína do logos que pode ser pervertida. A inversão marxiana é a transformação pseudológica da especulação de Hegel. Não inverteu Hegel porque o material não é a realidade de Hegel nem o seu ideal é a ideia de Hegel. A vulgata materialista afirma que tudo é disfarce de interesses materiais (económicos, políticos, etc.). Marx era um pouco mais sofisticado. Reteve a visão de Hegel de que a história é a realização do reino da liberdade. E Engels louva Hegel que se ocupou da ordem inteligível da história mas aponta-lhhe a contradição entre a lei dinâmica da história e a insistência de que já existe o Inbegriff , o total da verdade absoluta. Censura a tentativa de interpretar a história como desdobramento de uma ideia que alcançou conclusão no presente. Reconhece, portanto, a falácia da gnose histórica: o decurso empírico da história não deve ser interpretado como o desdobramento da Ideia.

Mas Engels engana-se redondamente ao argumentar que o processo da história, por natureza, não encontra conclusão natural mediante a descoberta de uma verdade absoluta. Pelo contrário, esse seria o único modo possível de encontrar uma conclusão para o decurso empírico da história; pela mesma razão, a história não é fechada mas permanece processo transcendental. A falácia desta gnose consiste na imanentização da verdade transcendental. Se quissesse dizer a verdade, Engels deveria afirmar que o fim-da-história imanentista não pára a historia e, portanto, não deve ser usado. Mas para Engels apenas a realidade empírica tem significado como desdobramento da ideia mas sem a conclusão, um eterno fluxo de Heraclito. A realidade hegeliana do desdobramento da ideia é abolida e fica só a realidade empírica como se fosse uma Ideia. Do mesmo modo se explica a incompreensão do problema de Hegel por parte de Marx como-se-fosse deliberada. Arrasta-se o significado da ideia para a realidade, sem encontrar o problema da metafísica da ideia.

A confusão entre realidade empírica e a realidade da Ideia arrasta a dialéctica da ideia para a realidade empírica. O marxiano apresenta o filósofo como uma criança da escola que ainda acredita na conclusividade dos sistemas metafísicos. Mas então o marxismo não seria também um dia ultrapassável ? Na confusão em que Engels se move, as dificuldades deste género são ultrapassáveis pelo simples esquecimento. Cem páginas adiante, Engels reconhece que Hegel descobriu que o decurso da história é a realização da liberdade; Hegel compreendeu que a liberdade é a intuição da necessidade.”A necessidade é cega apenas enquanto não compreendida“. A liberdade da vontade é apenas a capacidade de tomar decisões baseadas em conhecimentos (Sachkentnnis). E a liberdade progride com as descobertas tecnológicas. A máquina a vapor é a promessa da “verdadeira liberdade humana“. Que a incarnação do logos seja substitida pela máquina a vapor é bem um sintoma da indisciplina intelectual de Engels, na qual se conjugam várias tendências da desintegração ocidental.

1. A gnose de Marx-Engels difere da de Hegel apenas por afastar um pouco o fim-da-história, para abarcar a curta etapa da revolução.

2. Como só a forma da conclusão intelectual é de Hegel, não a substância, o intelecto programático torna-se o portador do movimento. Há um salto revolucionário para a natureza revolucionada do homem. Elimina-se o bios theoretikos. Só fica o conhecimento do mundo exterior. Quem conhecer o problema do propósito que causa indecisão, será livre. E Lenine, que se baseia mais em Engels do que em Marx, louva aquele no artigo de Enciclopédia em1914 sobre Os Ensinamentos de Marx por transformar a coisa-em-si em coisa-para-nós. É a destruição da substância humana.

3. A fórmula de que a liberdade consiste no domínio do homem sobre a natureza e sobre si próprio, lembra as posições de Littré, Mill e de outros intelectuais positivistas e liberais que são fontes de Engels. Há bastante espaço entre as capas do livro para desenvolver esta especulação pseudológica. Apesar de ter dissolvido a existência humana, Engels ocupa-se da moral cristã-feudal, burguês moderna e da moralidade proletária. Não existe outra ética absoluta a não ser o sistema proletário, tema maior daEndgültigkeit como sistema moral de sobreviver no fim.

2.4. Inversão.

Vimos de que modo o ataque anti-filosófico marxiano, estabelecendo a realidade empírica como objecto de investigação, utiliza um meio linguístico especial; a destruição logofóbica dos problemas filosóficos. Dentro do novo meio de expressão, nada se inverte; a gnose hegeliana é traduzida em especulação pseudológica. A inversão surge numa terceira fase em que o resultado das duas primeiras operações é construido como uma interpretação dos reinos do ser a partir da base da hierarquia ontológica.

Para analisar esta tarefa de Marx, seria aqui necessária uma filosofia da cultura. Seria preciso explicar: 1) A natureza dos fenómenos culturais; 2) Que tais fenómenos podem ser considerados a partir de uma base da existência, por exemplo, a matéria; 3) E finalmente, o que é esta base da existência. Marx só fornece a fórmula de que a consciência é condicionada pela existência. Surgem ainda passagens sobre “ideologia”. KPO pp.lv e ss. As revoluções começam na esfera económica e arrastam a superestrutura. Se isso significa que o conteúdo da cultura mais não é senão luta pelo domínio da esfera económica, não é verdade.

Em relação à base do fundo da existência, veja-se a nota 89 de O Capital, 1 sobre a tecnologia. A história dos elementos produtivos é mais relevante e mais fácil que a história das plantas e dos animais de Darwin porque, como afirma Vico, foi o homem que fez a história do homem. A tecnologia revela o comportamento do homem perante a natureza e portanto as concepções mentais, geistigen Vorstellungen, que delas provêm. É também mais fácil encontrar o cerne terreno das religiões, do que ir pelo caminho oposto e desenvolver as formas tornadas celestiais,”verhimmelten Formen” fora da relação com a vida. Um dos defeitos do naturwissenschaftenlichen Materialismus é excluir o processo histórico. Marx critica pois a história psicologizante que se reduz aos motivos terrenos das religiões. As religiões têm motivos económicos, como se lê no Anti-Dühring, p.31: é preciso um princípio. E são estas as ideias que abalam o mundo?