Da servidão hipnótica

Olavo de Carvalho

O Globo, 15 de julho de 2000

Boa parte do noticiário da semana passada descrevia os debates sobre a passeata gay em Roma como um confronto entre o movimento homossexual e a “extrema-direita”. É típico exemplo de manipulação de vocabulário, que, adotada em escala mundial, tem mais força persuasiva do que qualquer argumentação ou campanha de publicidade explícita.

O deslocamento semântico da “extrema-direita” cada vez mais para o centro visa a criar na opinião pública, por meio da sugestão irracional repetida, uma associação entre a imagem hedionda do nazi-fascismo e a de qualquer resistência, por mais mínima e discreta, que se oponha aos caprichos e exigências da militância enragée.

Extremismo é, por definição, o emprego de meios violentos para impor mudanças ainda mais violentas, como por exemplo leis raciais darwinistas ou a supressão forçada da religião. Quando a imprensa em massa, com o maior ar de inocência, passa a chamar de “extremista” qualquer cidadão pacífico que se apegue aos mandamentos de sua velha religião em vez de curvar-se com veloz solicitude às exigências repentinas de revolucionários histéricos, estamos diante de um caso óbvio de manipulação, destinada a forçar a rápida implantação de novos hábitos e valores por meio do engodo, eludindo os riscos do debate honesto e franco.

Se alguém dissesse, com todas as sílabas, que ser contra casamentos de machos com machos é nazismo, a mentira grotesca se denunciaria no ato. Embutida em frases de noticiário, passa como obviedade inofensiva. Repetido o truque algumas vezes, já se pode proclamá-la em voz alta sem risco de contestação: o hábito introjetado bloqueia as objeções conscientes.

A maior parte da Humanidade não tem defesa contra esse ardil. Espremidos entre a hipótese de ceder às novas palavras de ordem e a de tornar-se suspeitos de nazismo, quantos cidadãos terão o tempo e a prudência de tomar um recuo, de rejeitar a formulação do problema, de desmontar a armadilha lógica preparada para limitar sua visão dos fatos e sua capacidade de escolha? A maioria simplesmente aceitará a opção que lhe impõem. É verdade que cada concessão, isolada, significa pouco. Mas o efeito acumulado de milhares de pequenas concessões é o comprometimento integral da alma, a completa abdicação do juízo crítico. Não se pode nem chamar isso de servidão voluntária: é a servidão hipnótica.

Uma imprensa que submete seus leitores a esse tratamento não tem a menor idéia do que sejam democracia e liberdade de opinião, pois se esforça para liquidá-las no ato mesmo em que alardeia defendê-las. Não há debate possível sem o acesso consciente aos problemas em disputa. Tanto quanto a censura ostensiva, a transferência proposital das escolhas para o reino nebuloso das reações inconscientes é um abuso de autoridade, uma prepotência cínica que suprime o direito de saber, fundamento do direito de opinar.

A falsa rotulação de extremismo é só um exemplo entre milhares. Ninguém, hoje em dia, pode se dizer um cidadão livre e responsável, apto a votar e a discutir como gente grande, se não está informado das técnicas de manipulação da linguagem e da consciência, que certas forças políticas usam para ludibriá-lo, numa agressão mortal à democracia e à liberdade.

Essas técnicas são de emprego maciço, constante e pertinaz nos meios de comunicação e nas escolas. Apesar de sua imensa variedade, todas têm por princípio básico a distração induzida, o bloqueio sutil do julgamento consciente. Opiniões que, expostas com nitidez, suscitariam a mais obstinada oposição, são facilmente aceitas quando apresentadas de maneira implícita e envoltas numa névoa de desatenção. Há publicações inteiras, programas de TV inteiros, livros didáticos inteiros que são, de ponta a ponta, desatenção planejada.

Até a década de 70, quando a maior parte das técnicas a que me refiro estava ainda em fase de estudos em laboratório, os intelectuais se interessavam pelo assunto, investigavam, discutiam a imoralidade e a periculosidade da ameaça iminente que elas representavam para a democracia.

Charles Morgan deu o alarma em “Liberties of the Mind”, Aldous Huxley em “Regresso ao admirável mundo novo”, Arthur Koestler promoveu congressos internacionais para discutir o perigo, Ivan Illitch fez pesquisas memoráveis sobre a manipulação das consciências pelo establishment médico e educacional.

De súbito, as discussões cessaram e as técnicas denunciadas foram entrando, uma a uma, sem a menor resistência, no uso cotidiano de jornais, escolas, canais de TV. Não é de estranhar que essa mudança tenha sido acompanhada de um vasto recrutamento de intelectuais “progressistas” para organismos internacionais, ONGs, serviços secretos e outras entidades interessadas em conduzir a discreta mutação psíquica dos povos. Hoje praticamente não há mais intelectuais independentes. Todos se cansaram de “interpretar o mundo” e aceitaram ser bem pagos para “transformá-lo”.

A elite de intelectuais ativistas que hoje maneja os cordões é tão cínica que chega a inventar as mais artificiosas justificativas ideológicas dessa manobra maquiavélica. É inútil argumentar racionalmente, proclama Richard Rorty: tudo o que podemos fazer, diz ele, é “inculcar sutilmente nas pessoas os nossos modos de falar”. E Antonio Gramsci, antecipando-se aos tempos, já tinha criado toda uma teoria da “revolução passiva” para demonstrar que a sonsa indiferença da multidão distraída vale por adesão explícita e basta para provar que a tomada do poder pelos comunistas foi uma escolha democrática do povo.

Como não enxergar a dose extraordinária de malícia, de presunção arrogante, de desprezo pela liberdade de consciência, que há nessas doutrinas de farsantes e tiranetes?

Prêmio Casa Grande & Senzala 2000: Declaração de Voto

Olavo de Carvalho

14 de julho de 2000

Membro do júri do Prêmio Casa Grande & Senzala 2000, para livros de interpretação da cultura brasileira publicados no ano passado, enviei este relatório à Comissão Organizadora em 14 de julho. Agora tive a satisfação de saber, da Fundação Joaquim Nabuco, promotora do concurso, que o Primeiro Prêmio foi atribuído, por maioria de votos, ao livro que escolhi, a História das Crianças no Brasil, obra coletiva organizada pela Profa. Mary del Priore, do Departamento de História da USP. A Comissão concedeu também Menção Honrosa a Errantes do Fim do Século, da Profa. Maria Aparecida de Moraes Silva, que, como outros membros do júri, recomendei especialmente para isso. Ao divulgar aqui o texto desta Declaração de Voto, expresso a grande alegria que me infunde a vitória das minhas candidatas, às quais auguro uma longa vida de sucessos na profissão científica que tão honrosamente representam. — O. de C.

Dos seis livros que me foram apresentados, dois merecem destaque: a História das Crianças no Brasil de Mary del Priore (org.) (1) e Errantes do Fim do Século, de Maria Aparecida de Moraes Silva (2). Pela profusão dos dados, pela minúcia das análises, pelo rigor da documentação e, last not least, pela limpidez da linguagem, eu votaria neste último, se o quadro teórico que o fundamenta não fosse tão estreito, bem na tradição dogmática de certa ciência social paulista para a qual o esquema marxista do conflito de classes continua a ser o nec plus ultra da explicação sociológica, com todo o cortejo de conotações denuncistas e pejorativas que o acompanha de praxe, pronto a fazer de cada tese universitária uma arma mortífera nos combates políticos e jornalísticos. Que esse esquema venha agora enriquecido pelas conotações da moda acadêmica norte-americana que dão teor de luta de classes às disputas de raças e às discórdias entre sexos, não o torna menos rígido e repetitivo, apenas revela sua ambição imperialista de tudo engolir, mesmo à custa das combinações mais forçadas, e de tudo transfigurar em combustível para sua máquina de guerra ideológica. Esse fundo polêmico nada teria de mais – de vez que ciência e paixão não se excluem –, se não fosse hábito e norma da referida tradição excluir, a priori, toda e qualquer outra hipótese ou explicação possível, não se dando nem o trabalho de mencioná-las, quanto mais o de discuti-las, e formando com a única que sobra, pelo acúmulo das descrições convergentes que a legitimam, uma poderosa impressão de verossimilhança que até o seu meio acadêmico de origem, otário de seu próprio engodo, acaba por tomar como base científica de uma crença racional. O que há de errado aí não é a paixão: é que essa paixão estreite, em vez de ampliar, o horizonte de concepção do pesquisador. É que seja paixão regressiva e não aventureira. É que seja obstinação atávica em vez de arrebatamento criativo.

Errantes do Novo Século é a aplicação, correta e elegante, de um esquema explicativo aprendido, fixo e infindavelmente repetível. Mas é aplicação correta, limpa, digna, com vários momentos notáveis. É produto bom de uma escola ruim.

Se existe menção honrosa neste concurso, peço pois concedê-la à Profa. Maria Aparecida de Moraes Silva.

Mas o Prêmio propriamente dito não posso deixar de atribuir, com alegria, a Mary del Priore e à equipe com que realizou esta magnífica História das Crianças no Brasil. Desde logo, pela originalidade e importância do tema, tão essencial para a compreensão dos mecanismos íntimos da História, e tão abandonado num país onde a atenção obsessiva aos problemas da educação escolar faz esquecer o estrato mais básico e decisivo da formação das mentalidades, que é a educação doméstica, a vida de família, onde se constela, às vezes em formas definitivas, a visão de mundo que vai orientar a existência adulta.

Se é verdade que “the Child is the Father of Man”, uma história que omita as crianças ou que só enfoque nelas a identidade pública e administrativa de futuros cidadãos, sem ir até às raízes emocionais e íntimas da sua mentalidade, é, se me permitem o paradoxo, uma História sem passado, uma História onde as vidas começam no meio, como estátuas que boiassem no ar sem pedestal.

Esta obra merece o Prêmio, também, pela abrangência do tratamento. Abrangência, primeiro, no tempo, que inclui desde os heróicos horrores da vida das crianças nos primeiros navios que aqui aportaram trazendo os colonizadores, até a triste condição dos pequenos trabalhadores e das crianças que vagam pelas ruas no Brasil de hoje, passando pelo cotidiano doméstico de meninos e meninas no Brasil-Colônia e no Brasil Império e pelos reflexos, na vida infantil, das guerras e das grandes transformações econômicas. Abrangência, em seguida, vertical, compreendendo todos os principais grupos e classes sociais. Abrangência, por fim, no sentido da variedade dos pontos de vista, que, sem a pretensão de esgotar as possibilidades de um tema praticamente ilimitado, trata de cercá-lo por vários ângulos, formando, como diz a própria organizadora, “um cruzamento de olhares”.

Não havia mesmo outra forma de devassar um terreno ainda praticamente virgem, no qual a forma do conjunto ainda se escondia sob uma multidão de perguntas setoriais irrespondidas – agora já em parte respondidas.

Se este livro merece um Prêmio que leva o nome da obra capital de Gilberto Freyre, é ainda e sobretudo por ser o primeiro sério esforço coletivo de universitários brasileiros para atender a um apelo do próprio autor de Casa Grande & Senzala no sentido de que se escrevesse “uma história do menino brasileiro – da sua vida, dos seus brinquedos, dos seus vícios – desde os tempos coloniais até hoje” (3). A História das Crianças no Brasil é obra que se insere com posto de honra na tradição gilbertiana – a mais poderosa e vivente nas nossas ciências sociais –, não somente por trazer a resposta a esse desafio científico lançado já em 1921, mas porque, na sua própria tessitura interna, permanece fiel à lição essencial do mestre, que é a de jamais perder de vista, no estudo da sociedade e de suas transformações, o elo vital entre o público e o privado, o grande e o pequeno, as mutações estruturais de longo alcance e os episódios da vida dos personagens de carne e osso.

Destaca-se, na coletânea, o trabalho subscrito pela própria organizadora, onde a força arquitetônica do grande painel não exclui a observação de detalhes por vezes surpreendentes e inusitados, mais reveladores, às vezes, do que todas as estatísticas e todos os registros oficiais.

Não me espanta que tão belo trabalho nos venha de historiadora da USP. Já por várias vezes tenho assinalado na instituição paulista, ao lado da miséria pomposa de sua sociologia e de sua filosofia, a seriedade, a criatividade e a riqueza intelectual do seu Departamento de História. Confirmo-as novamente neste livro. Ele tem desde já seu lugar assegurado na coleção de obras sem as quais não é possível conhecer e compreender o Brasil. É realização tão importante para todos nós que, de certo modo, ter participado dela já constitui, para cada um de seus co-autores, um prêmio. É obra que já nasceu premiada.

Rendo-me, pois, ao fato consumado e, sem a mínima hesitação, voto na História das Crianças no Brasil, de Mary del Priore e sua equipe, para o Prêmio Casa Grande & Senzala deste ano.

Poá, SP, 14 de julho de 2000

Olavo de Carvalho

Notas

1. São Paulo, Editora Contexto, 1999.

2. São Paulo, Unesp, 1999.

3. Cit. em História das Crianças no Brasil, p. 11.

Ser e Conhecer – 3

Tema para uma das próximas aulas do Seminário de Filosofia

§ 1. Definição da Filosofia. — Filosofia é busca da unidade do saber na unidade da autconsciência e vice-versa.

§ 2. Composição do saber. — O saber compõe-se de:

  1. informações dos sentidos internos e externos:
  2. estruturas inatas diretamente condicionadas pela forma do corpo humano;
  3. registros organizados na memória;
  4. estruturas simbólicas transmissíveis.

§ 3. Divisões do saber. O conhecimento. – I. O saber divide-se em:

  1. Memória pessoal.
  2. Experiência pessoal, isto é, memória assumida e personalizada.
  3. Estruturas simbólicas assimiladas.
  4. Estruturas simbólicas produzidas.

II. Estas duas últimas constituem o campo do conhecimento propriamente dito. Elas absorvem as anteriores e as subentendem.

§ 4. A experiência da unidade. O corpo. Autodomínio e domínio. — I. A unidade funcional do corpo humano é o primeiro modelo do tipo de unidade cujo análogo mais tarde se buscará na esfera do saber. Ela assume a forma concreta de um sistema vivente de órgãos subordinados à vontade individual. Ferimentos, doenças, dores, mutilações, enfraquecimento assinalam rupturas parciais dessa unidade. Ter um corpo capaz de realizar, dentro dos seus limites próprios, a nossa vontade individual, é a primeira condição do autodomínio. O autodomínio é a primeira condição da ação no mundo. No curso da ação no mundo, o corpo encontra limites externos, que, através de aprendizado e adaptações, busca transcender. O conjunto dos limites transcendidos forma o seu domínio. O domínio pode estreitar-se por efeito de fatores externos sem que por isto se estreite o autodomínio, mas toda limitação do autodomínio produz o estreitamento do domínio.

II. A unidade do saber é um autodomínio estendido às estruturas simbólicas assimiladas e personalizadas.

§ 5. Ego. – Ego é a experiência pessoal condensada na forma de uma identidade corporal constante no tempo. É experiência pessoal sistêmica.

§ 6. Autoconsciência. — É o autodomínio no nível do ego. Você tem consciência de algo quando tem em seu poder não somente (a) uma informação, mas também (b) a informação de que tem essa informação e (c) a informação de que essa informação é sua, isto é, de que ela agora faz parte integrante do sistema do seu ego. A fórmula para a é: Sei. Para b é: Sei que sei. A fórmula para c, isto é, a fórmula da autoconsciência, é Sei que sei que sei.

§ 7. Ego e autoconsciência. Consciência autoral. Ego e poder do Ego. — I. A existência do ego supõe a coincidência espaçotemporal da identidade corporal com o sujeito da experiência pessoal, ou, dito de outro modo, a identificação do sujeito objetivo com o sujeito subjetivo da experiência pessoal. Esta identificação, a que doravante chemarei consciência autoral, não é automática, pois só pode se realizar na autoconsciência, a qual, sendo um autodomínio, um poder, só existe mediante o exercício (embora possa se conservar por algum tempo enquanto mera potência). Observa-se, em certos estados patológicos e hipnóticos, a ruptura da consciência autoral (fragmentação do ego). Esta ruptura permanece como possibilidade mesmo quando não se realiza. Assim, pois, a consciência autoral é contingente e não necessária. Nada, absolutamente nada no mundo natural pode obrigar um indivíduo a ter consciência autoral, e, em contrapartida, nada no mundo natural pode abolir a conexão objetiva que faz de um indivíduo o autor dos seus atos (internos e externos), o sujeito de sua experiência pessoal. É o mesmo que dizer: você é você e não pode deixar de ser você, mas que ninguém pode obrigá-lo a admitir isso, exceto você mesmo. (A possibilidade da coerção sobrenatural será discutida bem mais adiante e pode ser deixada de lado neste ponto.)

II. O conhecimento pressupõe a experiência pessoal, a experiência pessoal pressupõe a consciência autoral, a consciência autoral é livremente assumida por um sujeito que, não obstante, se não a assumir, não deixará de ser objetivamente autor de seus atos. Não se pode portanto dizer que o Ego se constitui a si mesmo, porque ele já recebe seu fundamento da unidade corporal objetiva e do fato bruto da autoria objetiva. Apenas, esse fundamento objetivo não pode terminar de constituí-lo sem a anuência dele. Esta anuência é só subjetiva, pois objetivamente ele continua autor de seus atos mesmo sem ela. Mas, pela anuência, o Ego, já existente, se assume a si mesmo como autoconsciência, e é isto que o constitui como poder. O Ego sem poder do Ego é o Ego vazio e inoperante que se observa naqueles estados que a psiquiatria denomina, hiperbolicamente, “perda da identidade”.

§ 8. Consciência autoral e unidade da experiência pessoal. – A experiência pessoal só pode ter unidade quando tem como centro a consciência autoral, que distingue o fazer e o padecer, isto é, o sujeito como autor de seus atos e como receptor de atos seus e alheios. Por outro lado, é evidente que a unidade da experiência pessoal está subentendida em toda aquisição, conservação e transformação de conhecimentos.

§ 9. O sujeito como objeto. Atos imanentes e transitivos. – Nenhum sujeito, enquanto sujeito autoconsciente, pode ser autor de atos (externos ou internos), sem ser, ipso facto, receptor deles. Todo ato tem um feedback, condição de seu registro memorativo e, portanto, de sua continuidade autoral no tempo. Estar consciente de si enquanto autor de atos é estar consciente de si enquanto receptor deles. A noção aristotélica de atos imanentes e transitivos adquire aqui uma nova nuance: o ato é imanente quando o autor é autor e receptor sob o mesmo aspecto; é transitivo quando o autor é autor sob um aspecto e receptor sob um outro aspecto. Por exemplo, se massageio meus próprios músculos, recebo a ação sob o mesmo aspecto em que a emiti, isto é, aplico e recebo a massagem. Mas, se chuto um gato, não recebo meu próprio chute, e sim apenas a informação de que chutei o gato. Todos os atos transitivos são portanto imanentes (sob outro aspecto), mas nem todos os atos imanentes são transitivos (sob qualquer aspecto).

§ 10. Inseparabilidade de autoconsciência, imanência e transitividade. – Estar autoconsciente ao praticar um ato inclui a distinção exata e instantânea entre o que ele tem de imanente e de transitivo, no sentido acima. Se não sei se agi só sobre mim mesmo, sobre um outro ou sobre ambos, e sob quais aspectos, então não sei se agi de maneira alguma.

§ 11. Transcendência da autoconsciência. — A autoconsciência inclui portanto constitutivamente sujeito, objeto e sua reunião-distinção no ato. Uma autoconsciência solipsística não é autoconsciência de maneira alguma, exceto metonimicamente (tem algumas das propriedades ou partes da consciência sem chegar a ser autoconsciência). No sujeito, a autoconsciência é, já na sua constituição mesma, um transcender-se. A autoconsciência solipsística (cartesiana) só pode ser construída ex post facto como hipótese lógica (por abstração e supressão voluntária de dados da memória), jamais ser objeto de experiência. É mais ou menos como um homem normal imaginar-se autista – coisa que um autista não pode fazer.

§ 12. Transitividade, imanência e retenção. Ego e “mundo”. — Se a autoconsciência é, ipso facto, consciência da dosagem de transitividade e imanência do ato praticado, ela o é igualmente, mutatis mutandis, no ato padecido: estar autoconsciente enquanto receptor de um ato é distinguir, nessa recepção, aquilo que é puramente transitivo (isto é, aquilo que me vem de um não-eu) e aquilo que, nela, é imanência minha, por exemplo sob a forma de retenção, no tempo, de uma informação já completada. Por exemplo, acabo de receber um pontapé. O pontapé já terminou, no tempo, mas continuo sentindo a dor que ele provocou: esta dor, que prolonga em meu corpo o ato alheio já terminado, é parte dele na medida em que vem dele como efeito, mas ela, agora, só existe em mim e não nele. Sem esta retenção, nenhum ser pode ser autoconscientemente receptor de nada. Mas também não o pode se a retenção é mera retenção de sensações ou imagens, se ela não contém em si a exata distinção do que me veio como transitividade pura e do que entra nela como imanência minha. Não há portanto autoconsciência sem a consciência do não eu-como agente. Não apenas não existe autoconsciência solipsística, mas não existe a autoconsciência num mundo de puros objetos, num mundo sem outros sujeitos. A existência de sujeitos agentes fora do eu, assim como o pleno reconhecimento dela pelo eu, são elementos constitutivos da autoconsciência mesma. Por isto o eu, quando nega os outros agentes ou os reduz a meros objetos, não cessa de existir, mas cessa de ser um poder, retorna ao estado de pura potencialidade vazia. O Ego só existe como poder num mundo de agentes, num mundo de sujeitos. O “mundo”, portanto, não vem ao Ego desde fora, como um simples “dado”, mas já se impõe desde dentro, como condição da possibilidade mesma do Ego como poder. E não cabe em gnoseologia discutir o Ego-sem-poder, pois este não é sujeito de conhecimento e aliás só existe como possibilidade teórica e construção lógica hipotética, cuja simples formulação já prova, no ato, sua própria irrealidade, exatamente como no caso do “imaginar-se autista”. Por desgraça, o Ego que foi objeto central de atenção durante todo o período que vai de Descartes á fenomenologia de Husserl foi o ego sem poder, ao qual se atribuiu, como hipótese mágica, o dom de conhecer, daí resultando uma infinidade de problemas insolúveis e, na verdade, perfeitamente insensatos.